McKEW PARR COLLECTION
MAGELLAN
and the AGE of DISCOVERY
PRESENTED TO
BRANDEIS UNIVERSITY • 1961
CONTINUAÇÃO
DA ÁSIA
D E
JOÃO DE BARROS
POR
DIOGO DE COUTO,
DA ÁSIA
D E
DIOGO DE COUTO
Dos FEITOS , QUE OS PoRTUGUEZES FIZERAM
NA CONQUISTA , E DESGUBRIMENTO DAS
TERRAS , E MARES DO OrIENTE.
DÉCADA QUARTA
PARTE PRIMEIRA,
LISBOA
Na Regia Officina Typograficá.
anno mdcclxxviií.
Com Licença da Real Meza Cenfovla , e Privilegio KcfiU
JL*JíOoxíL
<nt,
í/uya, ae/cn .
tJÁ-OUf ^íouUi ,
VIDA
D E
DIOGO DE COUTO
Chroniíla do Eftado da índia, e Guarda mor
da Torre do Tombo delia.
Por MANOEL SEVERIM DE FARIA.
EM tanta força as obras dos Ho-
mens doutos para fazer eílimar
feus Authores em toda a parte ,
que não fomente ganham com par-
ticular aíFeição as vontades dos que os vem ,
mas ainda levam apôs íi os defejos dos au-
fentes para pertenderem fua communicaçao.
Eíles me fizeram procurar com cartas defde
cfte Reyno a amizade de Diogo de Couto
na índia ; e agora me obrigam a que ponha
em lembrança a noticia , que alcancei de
fuás CO ufas 5 aííi por cumprir em parte neíle
ojfficio com o que lhe devo , como por en-
tender., que com iíTo faço huma obra agra-
dável a todo efte Reyno , de que pelo mui-
to que trabalhou no ferviço público , com
razão he tido por merecedor de outras avan-
tajadas memorias.
Foi Diogo de Couto filho de Gafpar
de Couto , e de Ifabel Serrão de Calvos ,
peíToas nobres , e ella foi filha de Vafco
Serrão de Calvos , por cuja via ficava Dio-
go
VI Vida
go de Couto fegando primo daquelle in-
íigne Pregador , e grande Religiofo o P.
Luiz Alvares da Companhia de Jeíus. Naf-
ceo Diogo de Couto em Lisboa no anno
de 1542. eílando feu pai Gafpar de Cou-
to em ferviço do Lifante D. Luiz , a quem
o dera EIRey D. Manoel. Por eíla razão
entrou Diogo de Couto , como teve idade ,
no ferviço do Infante , o qual o mandou
cftudar em Lisboa , e de onze annos come-
çou a ouvir Grammatica entre os primeií-os
eftudantes do Collegio de Santo Antão da
Cidade , que foi o primeiro Collegio que a
•Religião da Companhia teve em toda Eu-
ropa. SeuMeílre na iingua Latina foi o P.
Manoel Alvares, célebre Humaniíla , eAu-
thor da Arte da Grammatica , que lioje fe
lê em todas as Univeríidades , e eíludos ,
que a Companhia tern a feii cargo. ARhe-
torica ouvio do P. Cypriano Soares , que
compoz a Rhetorica , perque fe eníina eíla
Arte nas efcolas da Companhia. E fe he
verdadeira aquella Sentença , que o primei-
ro fervor 5 e motivo da fabedoria lie a
excellencia dos Meftres , com razão fe po-
dem ter cm muito as obras de Diogo de
Couto 5 pois além de ferem nafcidas de feu
grande engenho , foi elle cultivado per tão
célebres , e doutos varões daquelle tempo>^
Acabados os eíludos da Humanidade,
pa-
DE Diogo DE Couto vii
parou Diogo de Couto na continuação das
efcolas 5 porque ainda então fe não liam
em Lisboa mais que as letras humanas ,
e aíli ficou continuando no íerviço do In-
fante ; o qual mandando algum tempo de-
pois o Senhor D. António feu filho ao
Mofleiro de Bemfica para ouvir a Filofofía
do fanto varão Fr. Bartholomeu dos Mar-
tyres, que depois foi Arcebifpo de Braga,
vendo a boa, e natural habilidade, que
já em Diogo de Couto fe defcubria , lho
deo por condifcipulo. Aprendeo Diogo de
Couto defte infígne Meílre não fomente as
Artes liberaes , em que ellc foi eruditiíli-
mo , mas juntamente as virtudes , que nelle
mais refplandeciam , como bem o moílrou
depois na temperança , modeília , e pieda-
de , que em toda fua vida guardou , aíli no
eftado de foldado , como no de Cidadão ,
fem lhe as delicias da índia poderem fazer
mudança nos coílumes cm tão largos an-
nos , como teve de vida.
Faleceo o Infante ao tempo que Dio-
go de Couto acabava a Filofofía , e pouco
depois defta perda recebeo a fegunda com
a morte de feu pai , e aíli cortando-fe-íhc
o curfo de fuás efperanças , foi conftrangi-
do a mudar eftado , e deixando as letras,
fcguio as armas , a que feu animo não pou-
co o inclinava. E com»o já naquelle tempo
não
vm Vida
não havia outra conquiíla , fenao a do Ori-
ente, por quanto ElRey D.João III. tinha
largado os higares de Affica , fuftenrando fo-
mente aquelles que podiam íervir de fron-
teira de Hefpanha , determinou paíTar á ín-
dia 5 como o fazia então a mòr parte da
nobreza de Portugal , por neíla empreza te-
rem muitos em breve tempo ganhado hon-
ra , e proveito , o que fempre aííi aconte-
cera 5 fe os que depois vieram quizcram
continuar no valor , e virtudes dos primei-
ros 5 que áquellas partes paíTdram , e não
feguíram os vicios da fenfu alidade , e ava-
reza 5 com que corromperam aquelle tão
bom procedimento antigo.
Embarcou-fe Diogo de Couto no an-
no de 15' 5*6. militou na índia oito annos ,
achando- fe noS mais dos feitos aílinalados
defeu tempo, moílrando com particular va-
lor 5 que as letras não impedem , antes favo-
recem as armas , como deram a entender
antigamente os Gregos na imagem de Apol-
lo , a quem pintavam armado de arco , e
fettas , e o veneravam juntamente por Deos
das fcicncias. Cumpridos dez annos de mili-
cia contínua , tornou ao Reyno a reque-
rer o premio de feus trabalhos ; e ainda
que chegou a Lisboa , quando com maior
força ardia o mal de pede , que vulgarmen-
te fe chama grande, foi brevemente, e bem
def-
DE Diogo DE Cou TO dc
defpachado. Com eíle defpacho fe partio
logo para a índia, o.nde fe cafou na Cida-
de de Goa com Luiza de Mello , peíToa
nobre , cujo irmão foi o P. Fr. Adeòdato
da Trindade , da Religião de Santo Agof-
tinho , Que depois cá no Reyno lhe aíTiílio
á impreísáo das fuás Décadas.
Tanto que o eílado de Cidadão pacifi-
co 5 e livre das occupaçoes da guerra , lhe
deo lugar para fe lograr do ócio, tornou a
renovar no animo os antigos eíludos das le-
tras humanas ; e aílí por eilas , como por fua
cortezia , e boa condição , fe fez mui conhe-
cido na índia , e amado de todos os dou-
tos 5 nobres , e curiofos , e até dos Princi^
pes Pagãos daqucllas partes.
Foi Diogo de Couto mui douto nas
Mathematicas , e particularmente na Geo-
grafia : foube bem a lin.o^ua Latina , e Ita-
liana , nas quaes compoz alguns Poemas , e
afil na noíTa vulgar , em que teve particu-
lar graça , tudo obras lyricas , e pafioris ,
de que deixou hum grande tomo de Ele-
gias , Eglogas 5 Canções , Sonetos , e Grofas,
Teve particular amizade com o noífo ex-
cellente Poeta Luiz de Camões , o qual o
confultou muitas vezes , e tom.ou feu pare-
cer cm alguns lugares dos feus Lufiadas,
e a feu rogo commentou Diogo de Couro
çfle feu heróico Poema , chegando com os
Com-
XII Vida
lima 5 ajuntar outra vez o que naquelbs duas
Décadas tratava ; de que fez hum fó volu-
me , recupilando nelle as coufas de mòr im-
portância , e relatando as maiores mais lar-
gamente 5 com que fe remediou efte furto
de maneira 3 que quando alguma hora appa-
recerem , aííi pela ordem , como pela ma-
téria , publicarão claram.ente feu Author.
Deílas Décadas eílam fomente até agora
impreíTas a quarta , quinta , fexta , fetima ;
porém á fexta fuccedeo hum grande defaf-
tre, efoi, que eílando a imprefsâo acabada
em cafa do impreíTor , fe accendeo o fogo
nas cafas , e arderam todos os volumes , ef-
capando fomente féis delles , que acafo eíla-
vam já em o Convento de Santo x\goftinho
de Lisboa. As mais Décadas não fahíram
ainda á luz , e quando faleceo Diogo de
Couto ficaram em poder do P. Fr. Adeo-
dato da Trindade feu cunhado.
O eílilo , que neftas Décadas guardou
Diogo de Couto , he muito claro , e chão ,
mas cheio de fcntenças , e com que julga
as acções de cada hum , e moíira as caufas
dos fuccefros adverfos , e proiperos , que
naquellas partes tiveram os Portuguezes. Po-
rém ainda que nefta parte pode fer com
outros comparado na verdade do que efcre-
ve , que he a alma da hiítoria , no que tra-
ta dos Principcs do Oriente , nos coftumes
da-
DE Diogo de Couto xiri
daquclles povos , e remotas Províncias , na
íiruaçao da fua verdadeira Geografia , levou
a muitos conhecida vantagem ; como fe po-
de claramente ver das íuas Décadas , nas
quaes fe moítram os erros, que neítas m.ate-
rias tiveram os que antes delle efcrevêram
as coufas do Oriente. Para efta noticia , além
da grande applicaçao , com que íe deo ao
eíludo dos Geógrafos antigos , e modernos ,
lhe valeo a aíliílencia , que teve naquellas
partes por mais de fmcoenta annos , nos
quaes vio por razão da milicia , e commer-
cio muitos daquelles Reynos ; e depois
fendo Cidadão de Goa , cabeça daquelle El-
tado, pode bem alcançar a verdade dos fuc-
ceíTos que refere , pois naquella Cidade af-
íiílem todos os Viíb-Reys , e delia fahem
todas as Armadas , e a ella fe tornam a re-
colher , de maneira , que recebeo as infor-
mações dos mefmos que fe acharam nas
emprezas , c a tempo que as teílemunhas
de viíla , que na mefma Cidade havia , os
obrigavam a fallar verdade. A efta razão
fe lhe accrefcentou outra , que foi a do of-
ício de Guarda mor da Torre do Tombo
do Eílado da índia , o qual cargo lhe deo
ElRey D. Filippe L quando mandou orde-
nar efte arquivo pelo Vifo-Rey Mathias d'AI-
boquerque , no qual fe recolheram todos os
contratos de Pazes , Provisões, Regiftos de
Chaa-
XIV Vida
Chancellaria , e os mais papeis de íinpor-
tancia , que coílumavam andar em poder
do Secretario , e de outras peflbas daquellc
Eftado , com que lhe ficou huma noticia
original de tudo o tocante áquella hiílo-
ria 5 donde com razão podemos ter eíla por
não menos verdadeira , que a de Polibio ,
e Saluftio , a quem eíle deícjo levou de Gré-
cia a Itália , e de Itália a Numidia , para
verem os fitios das Províncias , de que ha-
viam deefcrever, e alcançar as informações
dos feitos , de que tratavam , dos quaes
( por ferem paíTados muitos annos antes )
de força lhe faltaria a noticia em muitas
partes eflenciaes , tendo juntamente o meí-
mo tempo mudada a face das terras , e lu-
gares 5 como cada dia vemos.
Não he menos de eílimar efla obra por
fua grandeza ; porque além de efcrever Dio-
go de Couto noventa livros neftas nove
Décadas , numero a que raros Efcritores che-
garam , foi toda cfla hilloria efcrita por el-
le novamente , e não tomada de outros Au-
thores , no que fe moílra bem a grandeza,
e valor de feu engenho , a que não chegou
Livio , ainda que lhe excedco no número
dos volumes , por quanto a maior parte de
fua hiftoria foi tomada de outros , e prin-
cipalmente de Polibio , o qual também con-
feíTa de íí , que das obras que muitos Efcri-
10-
DE Diogo de Couto xv
teres tinham publicado de cada conquifta
dos Romanos em particular , compuzera a
fua univeríal hiítoria. Mas Diogo de Cou-
to foi o primeiro que tirou á luz a hifto-
ria da índia , do tempo , em que a deixou
João de Barros, (íenão foi o que até o prin-
cípio do governo de Nuno da Cunha tinha
efcrito Fernão de Caflanheda;) por quanto
a quarta Década de João de Barros , que
acaba com o governo do mefmo Nuno da
Cunha , íahio muitos annos depois.
Para aperfeiçoar eíta obra , e dar huma
confummada noticia do Oriente, compoz ou-
tro livro , a que chamou Epílogo da htfio*
ria da htdia , no qual , tratando de cada for-
taleza noíTa , aponta as coufas principaes que
alli aconteceram , as em que faltaram os
KoíTosHiftoriadores, e outras, que de novo
foram fuccedendo , de maneira, que neíle
volume eftá fummariamente tudo o que to-
ca á hiítoria , commercio , e policia Orien-
tal , accommodando o ePiilo a eíle compen-
dio com muita clareza , e brevidade. Não
foi menos eloquente no eftilo Oratório ; por-
que além do que fe vê nas fuás Décadas,
que não he pouco , por iníigne neíla facul-
dade foi efcolhido para fazer as praticas
aos m.ais dos Governadores , e Vifo-Reys ,
que em feu tempo entraram em Goa ; mas
ifto não era fó pela linguagem , e ornato de
pa-
XVI Vida
palavras com que fallava, mas pela verda-
de , e defengano com que as dizia , das
quaes algumas andam imprcíTas , que nao
defdizem de íeu Author.
Acompanhou a Diogo de Couto deílie
feus primeiros annos hum grande zelo do
bem público da pátria , que junto com o
entendimento , e experiência , de que era
dotado , lhe fez confiderar as caufas de al-
guns inconvenientes , que havia no gover-
no da Republica , e principalmente no cita-
do da índia , onde elle aíTiília , e onde por
aufencia dos Reys , e excelTos dos Minif-
tros hiam as deíbrdens a maior crefcimen-
to. Para remediar eíle miai , vivendo ainda
ElRey D. Scbaíliao, compoz hum livro, a
que chamou o Soldado pratico , no qual
introduzio per modo de Dialogo hum Vi-
fo-Rey novamente eleito , fallando com
certo foldado velho da índia , que andava
na Corte em feus requerimentos , para íè
informar das coufas que lhe importavam
para a jornada , e do mais que tocava ao
governo da Fazenda Real , e milicia daquel-
le Eftado , e em todas eftas coufas aponta
com cortezão eílilo , e brevidade o que fe
deve feguir , ou evitar , dando os exem-
plos 5 e razoes fundamentaes de maneira,
que pode fer huma excellente inftrucçao pa-
ra aquelle governo. Porém antes de aper-
ÍQÍ'
DE Diogo de Couto xvií
feiçoar cfta obra , lhe foi furtado o origi-
nal delia 5 e fem mais o poder haver as
mãos 5 chegou a efte Reyno fem nome de
Author 5 aonde fe trasladaram algumas co-
pias 5 que foram tidas em grande eílima dos
que as puderam haver. Sendo diílo adver-
tido no anno de i6io. por hum amigo
feu , tornou a reformar efta obra , ou quaíi
a fazella de novo , porque introduzio por
peíToas do Dialogo hum Governador , que
tinha fido da índia , com hum Soldado pra-
tico delia 5 amibos em cafa de hum defpa-
chador , tratando fobre as coufas daquelle
Eítado j trazendo-as ao tempo prefente ,
com tanta ponderação , e juízo , que não
fomente pode fervir de norte aos que o
governarem , mas em todo o tempo de claro
defengano das coufas delle. Efta obra dedi-
cou ao Marquez de Alemquer , e o original
eftá na livraria de ?vlancel Severim de Fa-
ria Chantre de Évora , a quem elle o man-
dou.
Efte zelo da honra da pátria lhe fez ef-
crever hum livro , contra o que compoz o
P. Fr. Luiz de Urreta Dominico , da hií-
toria 5 e policia do Reyno da Ethiopia , a
que vulgarmente cham.amos Prejle João , no
qual o Padre com a pouca noticia que ti-
nha do Oriente , e fem. ler as hiílorias da
índia , nem deíle Reyno , (como quem efcre-
veo entre os bofques , e delicias de Valen-
Cotito, Tom. L P. L ** ça ,
XVIII Vida
ça 5 fem ver mais que hum fó homem , que
o informou , e a quem creo ) diíTe muitas
coulas contra toda a verdade da hiiloria ,
fendo todo o feu livro huma obra fabulo-
fa, e temerária. E pofto que os Padres Fer-
não Guerreiro , e Nicoláo Godinho da Com-
panhia tinham rcfpondido ao P. Urreta com
particulares Apologias ; os mefmos Padres
da Companhia de Goa pediram a Diogo
de Couto refpondeíle também pela honra
defte Reyno , o que elle fez , eílando já
quaíi com o corpo na fepultura ; mas com
tanto vigor de animo, que bem parece que
fe lhe fakavam as forças corporaes , que as
do entendimento hiam fempre em. maior
perfeição. Efte livro trouxeram os Padres
da índia ao Arcebifpo de Braga D. Fr. Alei-
xo de Menezes per ordem de feu Author,
Com eftas cccupaçoes não pode acabar
de rodo outra emipreza , que deixou come-
çada para luz do commercio da índia , em
que tratava de todos os tempos , e mon-
ções , em que fe navega para todas as par-
tes do Oriente , e dos pezos , medidas , e
moedas , com todas as mais coufas que a
eíle particular pertenciam.
Neílas taes obras gaftou Diogo de Cou-
to a maior parte de fua idade, exercitando
o talento que lhe foi entregue , como bom ,
e util fervo, até o anno de 1616. no qual
fendo de 74. annos o levou Deos para fi ,
fab-
DE Diogo de Couto xix
fabbado a lo. de Dezembro, para lhe dar d
premio que luas obras mereceram. Foi Dio-
go de Couto hom.em de meã cílatura , de
alegre , e venerável prefença , olhos viv^os y
cor atereciada , o nariz algum tanto aquili-
no , mui laboriofo , como o mcílra a nuil-
tidao de feus eícritos , teve grande confe-
Iho , e por cila caufa era chamado muitas
vezes dos Vicc-Reys a elle nos negocies
de mor importância. Era pouco cubiçofo ^
que para homem, que vivco tantos annos na
Índia , he grande maravilha , e aííi foi mais
rico de partes , e merecimentos que de fa**
zenda , pofto que efta lhe não faltou em feií
eílado , com que fempre paíTou honradamente.
De fua mulher , com que viveo largos
annos , teve huma fó íilha , que morreo antes
de cafar, donde não ficou delle geração, o
que os antigos julgavami por infelicidade ,
porém não tal , que lhe poíTa tirar a bema-
venturança , que os mefmos antigos tinham
por grande, que era efcrever feitos alheios,
e dar matéria para que fe efcreveííem os
feus próprios , o que elle fez na fua mili-
cia , e hiíloria , compondo , e pelejando.
Pelo que com razão lhe puzeram aquelle
Diftico ao pé de feu retrato , que como ef-
lava immortaí , lhe imprim.íram nas fuás Dé-
cadas , que diz :
Expriíuít effigies ^ (jiwd J^ohm in C^fare vj/tuji ejl.
Hljhruim calamo ti-aílat , 2?* arma níami,
** ii NO-
XX
NOTICIA DOS AUTHORES,
QUE ESCREVERAM
DIOGO DE COUTO,
E Catalo^ço das Obras , que compoz , extrahidas da Bi-
bliotheca de Diogo Barbofa iVIachado Tom. i.
pag. 648. até Ó49. e Tom. 4. pag. 98,
Screveo a fua Vida o douto Manoel
Severim de Faria nos difcurfos vários
deíde pag, 148. até 15:7. Nicoláo António
Bibl, Hjfp, T. I. pag, 215'. col. I. fallando
delle , diz : Stitdiis de nu o fe reftituens re-
hus quidem per totós qtúnquaginta annos
terra , marique in ijlo Orientis orbe geflis
Jíue miles prius , Jive Proregum familiaris ,
^ ad negotiorum momenta fuhinde admif-
jus non fine magno rerum Lujitanarum in-
cr emento haud mhius animo , attentaque oh-
ferva tio7te , quampr^fentia interfuit, João
Soares de Brito in Theatr, Lufit, Lit, D.
num, 12. Hift, da Etiop, Alt, Liv, i. Cap.
27. e Liv, 2. Cap, 7. infigne Hijioriador.
Ni cero n Memor, pour fervir a P Hift* des
Hom, llluft. Tom, 12. pag, 94. Souía Flor.
de Hefpan, Cap, 8. excelL 1 1. num. 7. Morery
Diccion, verb. Couto. António de Leão BibL
Jnd,Tit. 3. Faria ElencJio dos Aiithores Por-
tug. no princípio do Tom. I. da Afa Portug,
D. Franciíco Manoel na Carta dos Au-
thores Portug. efcrita ao Doutor Themudo.
Ca^
DE Diogo de Couto xxi
Catalogo das obras , que fahíram d luz
pública da imprefsão.
Década quarta da Afia dos feitos , que
os Portuguezes fizeram na conquifia , e def-
cubrimento das terras , e mares do Orien-
te , em quanto governaram a índia Lopo
Vaz de Sampaio , e parte de Nuno da Cu-
nha, Lisboa por Pedro Crasbceck no Gol-
legio de Santo Agoílinho 1602. foi.
Década quinta da Afi,a , (^c, em quan^
to governaram a índia Nuno da Cunha ^
D, Garcia de Noronha , D. Efievao da Ga-
ma 5 Martim Ajfonfo de Soufa. Lisboa pe-
lo dito ImpreíTor 161 2. foi.
Década fiexta da Afia , Í3^c, em quanto
governaram a índia Z). focio de Cafiro ,
Garcia de Sd ^ 3^^K^ Cabral^ e D, Affon-
fo de Noronha, Lisboa pelo dito Impref-
Jbr 16 14. foi.
Década fetima da Afia , Ò^c, em quanto
governaram D, Pedro Maficarenhas , Fran-
cifco Barreto , D, Conftantino , o Conde de
Redondo , D, Francifco Coutinho , e João
de Mendoça, Lisboa pelo dito ImpreíTor
1616. foi.
Década oitava da Afia , cí^r. em quan-
to governaram a índia D. Antão de No-
ronha , e D. Luiz de At ai de, Lisboa por
João da Coíla , e Diogo Soares i6j^. foi,
^Sin-
XXII Noticia das Obras
Sinco livros da Década Duodécima da
hiftoria da Índia, Paris ló^iy. foi. Compre-
jiende o governo do Vice-Pvoy D. Franciíco
da Gama Conde da Vidigueira , que fahio
á luz pública por diligencia do Capitão Ma-
noel Fernandes Villa-real, Conful dos Por-
tuguezes na Corte de Paris.
Todas eítas Décadas com a Nona , que
nunca foi impreíla , fahíram novamente á
luz pública em 3. Tomos com índices mui-
to copiofos na Oíiicina da Mufica. Ánno
1736. foi.
Da Década Decima foram fomente im-
preíTas 120. paginas , e de toda ella ha al-
gumas cópias , que conílao de dez livros.
A TJndecima Década nunca fe defcu-
brio , applicando-fe infruflucfam^ente multi-
plicadas diligencias para que appareceffe , a
qual certamente efcreveo , como teftemunha
o grave Antiquário Manoel Scverim de Fa-
ria na Vida de Diogo de Couto , pag. 15:2.
¥alla que fez em nome da Camera de
Goa a André Furtado de Mendoça , Í7ido
for Governador da índia er,i fuccefsão do
Conde da Feira D, João Pereira , dia da
Efpirito Santo de 1609. Lisboa por Vicen-
te Alvares 16 10. foi.
Relação do naufrágio da não S, Thomé
na terra dos Fumos no anno de 15" 89. e dos
grandes trabalhos ^ que pajjou D. FauJo de
Li'
DE Diogo de Couto xxiíí
Lima nas terras da Cafraria até fua mor-
te, Sahio impreíTa 7ia hijloria Tragico-Ma-
ritima ^ lom. 2. a pag. ifj. até 21:^. Foi
efcrita efta relação em o anno de 161 1. á
jnílancia de D. Anna de Lima irmã do di-
to D. Paulo de Lima.
Vida de D. Faulo de Lima Pereira Ca-
pitão mor de Armadas do Eflado da índia ,
com huma defcripçao defde a terra dos
Fumos até ao Cabo das Corroítes, Lisboa
por Jofé Filippe 1765'. 8.
Obras Manufcritas,
Epilogo da hijloria da índia, Nellc tra-
ta de cada fortaleza noíía , e o que fucce-
deo mais digno de memoria.
Soldado perfeito, Neíla obra introduz
por modo de Dialogo hum Vice-Rcy no-
vamente eleito , fatiando com hum foldado
veterano da índia , que andava na Corte
requerendo para fe informar de tudo , que
pertence á arrecadação da fazenda Real , e
milicia daquelle Eííado , fendo humia ex-
cellente iiiílrucçao para o que deve obrar
hum Vice-Rey. Antes de pôr a ultima mão
a efta ob^a lhe defappareceo o original , o
qual chegando a efte Reyno fem nome do
feuAuthor, feextrahíram delle algumas co-
pias 5 porém fendo advertido por hum feu
amigo 5 a reformou em o anno de 1610. e
fa-
XXIV Noticia das Obras
fahio com eíle titulo : Dialogo entre bum
Fidalgo^ e htrm Soldado da Índia. Dedica-
do ao Marquez de Alcmquer. O original
Ic coii ferva na livraria do Conde do Vi-
aiiieiro.
Hijloria do Reyno da Et hi opta , cha^
mado vulgarmente Prejie João , contra as
faljidades , que nefta matéria efcreveo Fr.
Luiz Urretã Dominicano, Foi oíFerccida
çíla obra pelos Padres Jefuitas ao Arcebif-
po D. Fr. Aleixo de Menezes.
Commento ds Lujiadas de Luiz de Ca^
7nÕesÍQix.o á petição defte incomparável Poe-
ta , em cuja empreza não paíTou do quinto
Canto , que confervava D. Fernando de Caí-
tro Cónego de Évora por lho ter deixado
leu tio D. Fernando de Caílro Pereira , a
quem o Author o tinlia remettido.
Poezias varias. Confiavam de Elegias,
Eglogas , Sonetos , Canções , e Glozas.
Falia que fez na Caniera de Goa ao
Conde D, Francifco da Gama , quando nella
puzeram o retrato de fcu bifava D, Vafco
da Gama, Começa: A coufa de que fe pre^
zavar/L aquellas famofas Képuhlicas , í^c.
Falia cfue fez ao Vice-Rey Ayres de Sal-
danha , quando entrou em Goa a rogo da
Cidade, Começa : Aquelle grande Theopom-^
po Rey dos Lacedemonios , ii^c.
Oração que tinha feito para o dia que.
DE Diogo de Couto xxv
fe levajttafje a FJfatua do Conde Ahni-
rante a Jegunda vez que fe reftituio a feu
lugar donde a tiraram , a qual não houve
ejjeito. Começa : Aquelle Príncipe de toda
a eloquência Latina M, Tullio Cicerao , cb"r.
Oração que fez a rogo da Cidade de
Goa ao Vice-Rey D, Martim Ajfonfo de
Caftro 5 quando entrou na Cidade de Goa,
Começa : Daquelle grande Alexandre Mo^
narca do Mundo , Ò^c,
Oração que fez ao Arcebifpo Z). Fr,
Aleixo de Menezes , quando por morte do
Vice-Rey D, Martim Affonfo de Caftro fuc-
cedeo 7ia governança da índia eyn 1 1 de
Fevereiro de 1608. Começa: Efcrevem gra-
vijjimos Authores , ÍTc,
Oração que fez ao Vice-Rey Lourenço
Pires de Távora , quando entrou na Cida-
de de Goa, Começa : Hoje que me era ne-
cejjario hum animo arrebatado ^ hum efpi-
rito fervor ofo , é^r.
Oração que tinha feito pêra o dia da
entrada do Vice-Rey D, ^eronymo de Aze-
vedo, Todas eftas orações confervava na
fua grande Bibliothcca o iníigne Antiquário
Manoel Severim de Faria.
Tratado de todas as coufas fuccedidas
ao valorofo Capitão Z). Vafco da Gama ,
primeiro Conde da Vidigueira , e Almiran-
te do viar da Índia 710 defcubrimento , e
con-
XXVI NoT. DAS Obb. de Diogo de Couro
conquijla do mar , e terras do Oriatte , e
de todas as vezes , que d Índia paffòu , e
das coufas , que fuc cederam jwlla a todos
Jeus filhos. Dirigido a D. Francifco da Ga-
ma , Conde da Vidigueira , Almirante do
mar Índio , e Vice-Rey da Índia, Foi. Ms.
Confta de duas partes , a primeira compre-
hende vinte e oito capítulos , e a fegunda
trinta. Foi feito em Goa a i6. de Novem-
bro de I5'99.
De todos os tempos , e monções , em que
fe navega para todas as partes do Orien-
te , e dos pezos , medidas , e moedas , com
tudo o mais pertencente a efte argumento.
Eílaobra não acabou impedido pela morte.
AO
XXVII
AO INVICTISSIMO
MONARCA DE HESPANHA
D. FILIPPE
REY DE PORTUGAL
O PRIMEIRO DESTE NOME.
EPISTOLA.
A COUSA a que a Natureza mais
inclinou todas as creaturas alíí ra-
-cionaes , como irracionaes ( fegundo os
Filofofos afíirmam, INVICTISSIMO Monar-
ca ) foi a confcrvação de fua própria
efpecie 5 trabalhando por produzirem
outras femclhantes a íi. ívlas ao homem
como mais excellente de todas lhe deo
além diílo hum appetite quaíí fobrena-'
tural 5 que he defejar^ e íblicitar mais
que tudo a confervação de feu próprio
nome, trabalhando por deixar delle hu-
ma memoria eterna por feitos 5 e obras
hc-
xxvíii Epistola
heróicas , antes que por impérios , Rey-
nos 5 e fenhorios. Difto temos hum
iniiico claro exemplo no grande Ale-
xandre 5 que fendo já fcnhor do Mun-
do y quando parecia que a cubica hu-
mana ellava fatisfeita, então lhe entra-
ram novas invejas , vendo o fepulcro
de Achiles , porque não tinha outro
Homero pêra lhe acabar de rematar
fua bemaventurança , pêra em tudo fer
maior que todos. E por tanto maior
tinha efta gloria de ficar no Mundo vi-
vendo por fama, que o império de to-
do elle; pois eftando pêra morrer, não
deixou feus Reynos a feu filho polo
não achar digno delles , fenão ao vir-
tuofo Perdica 5 porque aíli accrefcentava
mais em fua fama , que não quiz arrif-
car no filho poía inclinação que lhe fin-
tio. A mefma opinião teve Phartes Rey
dos Parthos , que tendo também filhos
deixou feus Reynos ao famofo Mithri-
dates, porque eíperava com feus feitos
perpetuar mais fua memoria. Apôs efte
appetite natural corriam aquelles famo-
fos
Epistola xxix
fos Capitães Thcmiftocles , e Jiilio Ce-
fâv y quando hum muito pcnfacivo dizia,
que os troféos de Miiciadcs o não dei-
xavam quietar ; e o outro quando vio
cm hum templo efculpidas algumas fa-
canhas de Alexandre , entrifteceo-fe ,
por fe ver em idade em que o outro
conquiftou o Mundo ^ e elle náo tinha
feito nada. E alíí he na verdade ; por-
que nenhuma coufa puxa mais porhimi
varão de honra , que cftes deíejos de
gloria 5 e fama , porque tantos obraram ,
e fizeram tantas , e tão altas maravi-
lhas, que pareciam paiTar os termos, e
limites da natureza humana. Ifto fintio
muito bem Thucidides , quando dizia
que aquclle feria famofo, e grande que
ccrrcfíe apôs aquillo que andava mais
perto da inveja ; entendendo que necef»
fariamente havia ella de andar apôs
a virtude, que he omefmo que Plutar-
co aflírma. Defta gloria eram os an-
tigos Gregos tão amigos , que o mor
galardão, que davam aos feus famofos,
eram eftatuas , que fe punham em lu-
£ra-
XXX Epistola
gares públicos pcra memoria. E aflí
cuítumavam a dar a feiís novéis cfcn-
dos brancos , pêra que fazendo faça-
nhas tão notáveis ^ que mereceíTem fi-
car em memoria ^ as pudeíTem pintar
nelles , pcra com ilTo os obrigarem a
fazerem feitos dignos de ferem por el-
]es eternizados. Ifto fignificou Virgiíio
no quarto livro de fna yEneida fallan-
dô de Heleno, dizendo que morreo na
guerra com feu efcudo branco fem glo-
ria ; porque o mataram tao moço , que
não teve tempo de fazer coiifa digna
de fe pintar nelle. E efte tão gloriofo
coftume guardaram aqueiles famofos
Principes D. Reimão de S. Gil de Pro-
ença , D. Reimão de Tolofa , e Dom
Henrique feu fobrinho , de quem Vossa
Macestade direitamente defcende. Que
fahindo juntos pelo Mundo a ganhar fa-
ma j levaram os efcudos brancos , e
com elles chegaram ao Reyno de Caf-
tella 5 e ajudaram a ElRey D. Affonfo
o Sexto contra os Mouros, e pelos ga-
lardoar os cafou com três filhas. E def-
tas
Epistola xxxi
tns coube em íbrte a D. Henrique o
Icnhorio de Portugal , que feu filho Dom
Atfonío Henriques tanto dilatou. Efte
valerofo Príncipe depois daquella tão
famofa , e niilagroía vitoria do Campo
de Ourique , em que venceo os finco
Reys Mouros , logo pintou em leu ef-
cudo, que ainda era branco*, aquelle fi-
nal de noíTa Redempção , que nofíb Se-
nhor por muito particular mimo , e
mercê lhe quiz moílrar no ceo por lhe
dar efperanças da vitoria. Eftas armas,
por ferem tão gioriofamente ganhadas,
deixou por herança aos Reys de Por-
tugal, como Vossa Magestade as tem,
Eíla gloria das elíatuas , e dos efcudos
brancas paíTáram depois os Áthenien-
fes as efcrituras , por verem que as
imagens , e pinturas eram mudas , e
não podiam recitar feus feitos. Daqui
fe eílenderam aos Romanos, e a todas
as mais nações do Mundo, tão defejo-
fas todas de huma perpétua fama, que
lhe não fica coufa , que não feja logo
por muitos, e vários modos efcrita. Só
a ef-
xxxii Epistola
a efta noíTa nação Portngueza faluoii ef-
ta gloria , como fe fora menos merece-
dora delia 5 de que nós mefmos temos
a culpa , parecendo-nos que fó o obrar
feitos illuítres , e infignes nos bafta ; não
vendo que efta gloria em cada hum fe-
paffa 5 e que eftoutra vive em todos
eternamente ; e que allí ficam fendo fuás
obras mortas , como o eftavam muitas ,
e mui dignas de grandes efcrituras,
que nefte Oriente paíTáram y que em
toda a outra nação haviam de andar
em mil volumes porefpantofas ao Mun-
do. Efta perda , que tanto nos deve
envergonhar, quiz Vossa Magestade re-
mediar com me mandar profeguiíFe a
Hiftoria da índia , começando donde
João de Barros acabou, pêra que fahif-
fem á luz os feitos, que eftes vaífallos
Portuguezes tem obrado neftes Eftados.
E tanta ventagem faz efta mercê a to-
das as que fez a todos , depois que her-
dou efla Coroa de Portugal , quanto
vai da vida á morte, e do que fempre
dura ao que logo fe acaba. Porque os
ju-
Epistola xxxiii
juros , as fortalezas , as commendas,
as tenças , e tudo mais de que encheo
todos os Porrjguezes aíli deíTes Rey-
nos , como deftes Eftados , coufas fo-
ram que acabaram já em muitos , e
nao tardará muito que o faça em os
mais. Mas ter Vossa Magestade tanta
lembrança de todos , que até os que
acabaram 5 já ha tantos annos, quiz que
participaíTem da grandeza de fuás mer-
cês 5 mandando-me que lhe traga feus
feitos á luz , coufa foi em que parece
quiz imitar a Deos , que he em refuf-
citar mortos pêra tornarem a viver em
fama outra vida , que nunca fe acabará
cm quanto durar o Mundo. E nifto
quiz V^ossA Magestade também reme-
diar o defcuido Portuguez tanto pêra
cftranhar , que as Décadas de João de
Barros noíTo natural (que afíi por fua
muita erudição , como pelos grandes
feitos que de feus naturaes efcreveo ,
são dignas de muita eítima ) aílí foram
eftimadas de nós , que não houve mais
que a primeira imprefsão , que o tem-
Couto, Tom,L P.I. *'*^* po
xxxiv Epistola
po tem tão confumida , que não fei íe i
ha em Portugal dez volumes , e na ín-
dia hum fó. O que não he cm Itália,
onde andam traduzidas por Affonfo
Ulhoa , e dirigidas a Guilhermo Gon-
zaga terceiro Duque de Mantua. E fo-
ram tão cllimadas delie , e o são hoje
de todos os Grandes y que as trazem ás
cabeceiras das camas , como Alexandre
trazia a Iliada de Homero. E certo ,
que vendo tamanho efquecimento , pu-
déramos cuidar que por algum occulto
juizo de Deos não merecemos andar
na memoria dos homens, não negando,
que o mefmo Senlior nos tem feito
muito particulares mercês nas muitas ,
e raras vitorias , que dos inimigos de
fua Santa Fé cada dia alcançamos , co-
mo pelo decurfo da hiftoria íeverá. Fui
ainda continuando por Décadas por fe-
guir a João de Barros , como Vossa
Magestade me mandou. E porque elle
acabou com a morte do Governador
D. Henrique de Menezes , que na go-
vernança da índia fuccedeo ao Conde
Al'
Epistola xxxv
Almirante , comecei com a fuccefsão de
PeroMafcarenhas, e differenças que te-
ve com Lopo Vaz de Sampaio , que
nefta Década fe verão. E tenho aca-
badas féis Décadas , as três cumprindo
o tempo de 28. annos y e nove Gover-
nadores. Pêro Mafcarenhas ; e Lopo
Vaz de Sampaio, que conto por hum,
por governarem ambos juntos , e de
Nuno da Cunha , D. Garcia de Noro-
nha , D. Eílevão da Gama , Martim
AfFonfo de Soufa , D. João de Caítro ,
Garcia de Sá, Jorge Cabral, e D. Af-
fonfo de Noronha. As outras três Dé-
cadas começam no dia que Vossa Ma-
GESTADE foi jurado por Rey neíles Efta-
dos j c a primeira contém o tempo de
três Governadores, fc. Fernão Teles,
D. Francifco Mafcarenhas , e D. Duar-
te de Menezes. Eftas tinha feitas quan-
do Vossa Magestade me mandou ^ornar
atrás. O tempo que fica em meio (ten-
do vida , e favor de Vossa Magestade)
trabalharei por efcrever. Efte volume,
que contém em 11 a quarta Década,
*** ii oí-
XXXVI Epístola
ofFereço humilmente aos pés de Vossa
Magestade. E fó com pôr os olhos nel-
le haverei por muito bem empregadas
todas as defpezas , c trabalhos de tan-
tos annos quantos gaftei , e defpendi em
ajuntar coufas tão efquecidas. Ahi verá
Vossa Majestade as muito grandes , e
admiráveis façanhas feitas por aquelies
antigos Governadores , que com haver
tão poucos annos que foram, parecem
coufas fonhadas , aíli pelo efquecimcnto
em que eftavam , como pela mudança
que o tempo tem feito em tudo. E he
bem faiba Vossa Magestade a caufa del-
ias, que verá pelo decurfo da hiftoria.
E efta era a razão , porque Demétrio
Falereo aconfelhava a ElRey Ptolomeu
que fe occupaíTe em ler livros , porque
nelles achavam os Reys coufas , que
ninguém Ihesoufava dizer peílbalmente.
Pelo decurfo deftas Décadas verá Vossa
Magestade nos raros , e efpancofos fei-
tos , que eíles feus vaífallos tem feito,
ecada dia fazem, com quanta mais ra-
zão pôde dizer por elles o que dizia
Pir-
Epistola xxxvii
Pirro , qne fe tivera os Romanos por
foldados 5 que facilmente fora fenhor
do Mundo , ou elles fe o tiveram a elle
por Capitão. E pois nós temos em
Vossa Magf.stade outro Pirro , e elle
neftes feus vaiTallos Portuguezes outros
Romanos ; mande-os , porque elles lhe
levarão fuás columnas mais adiante , e
polias- hao onde Semiramis , e Alexandre
não chegaram. E elles com a efpada ,
e eu com a penna moftraremos ao Mun-
do, queaíli como em Vossa Magestade
fe acha a ventura de Cefar^ a prudên-
cia de Fábio , o esforço de Scipiao;
aííl lhe não falta a humanidade, e cle-
mência de Filippo pêra com os feus,
com o que romperão com hum animo
fcguro por todos os perigos da vida,
ate arvorarem as Reaes bandeiras da mi-
licia de Chrifto , e as porem nos mais
altos coruchéos da nefanda cafa de Ma-
famede ; pêra que no lugar de fuás tor-
pezas , e abominações , offereçam ao Al-
tiílimo Deos muitos facrificios de lou-
vor, com que o nome de Vossa Mages-
TA'
XXXVIII Epistola
TADE fique muito allima de todos os
que celebra a Fama. Defta Cidade de
Goa a vinte de Novembro de 15' 9 7.
annos.
Diogo de Couto.
IN-
índice
DOS capítulos, que se contém
NESTA PARTE I.
DA DÉCADA IV.
LIVRO I.
CAP. I. De como por morte do Go-
vernador Z). Henrique de Menezes
fuccedeo na governança da índia Ve-
ro Mafcarenhas , que eftava por Capitão
de Malaca : e do modo por que Affonfo
Mexia Veador da f aze tida ahrio a ter-
ceira fuccefsão , em que fuccedeo Lopo
Vaz de Sampaio, Pag. r.
CAP. II. T>e como Jlffonfo Mexia entregou
a Índia a Lopo Vaz de Sampaio : e de
como o Governador fe partio pêra Goa :
e da grande vitoria que houve de huma
Armada do Qamory no rio de Bacanor, 7.
CAP. III. Do que o Governador pajjou em
Goa com Francifco Deça , Capitão da-
quella Cidade , fohre o não querer rece-
ber nella : e de alguns Capitães que def-
pachou pêra fora : e de como o Governa-
dor partio pêra Ormuz, 18.
CAP IV. Do que aconteceo aEitor da Sil-
veira no eftreito de Meca: e de como foi
ter a Maçudy e mandou bufe ar D, Ro-
dri-
Índice
di'igo de Lima ao Prefle João : e do que
lhe fuccedeo na 'viagem de Ormuz. 24,
CAP. V. Do que aconteceo a Eitor da Sil~
veira na viaíiem até Onnuz : e de como
o Governador recebeo o Embaixador do
V refle João. 31.
CAP. VI. De como Ajfonfo Mexia mandou
a Malaca chamar o Governador Pêro
Mafcarenhas : e do que e l/e fez depois
que foube as novas : e do que aconteceo
na jornada a Martim Ajfonfo fufarte ,
e a Francifco de Sd, 37.
CAP. VII. De como Eitor da Silveira -par-
tio de Ormuz a efperar as nãos de Me-
ca \ e de como Melique Az Capitão de
Dio tratou de dar aquella fortaleza aos
Portuguezes. Do fundamento daquella
Ilha , e do tempo em que os Mouros con-
quifldram a que lie Reyno : e do que paffou
Eitor da S ih eira com Melique Az. 42.
CAP. VIII. De como Hag Mamude tirou
a Melique Saca de entregar a fort ale-
za a Eitor da Silveira , e elle fe foi pe-
■'^'ra Chaul fem concluir em nada : e de
como o Hag Alamude lhe tomou a fort a-
-\'leza por traição^ e a entregou aElRey
de Camhaya. $2,
CAP. IX. Da Armada que efte anno de
vinte e féis par tio do Reyno : e das no-
vas fuccefsoes que EW^ey mandou : e de
CO-
DOS C APITU LOS
como Ajfonfo Mexia Veador da fazenda
abria a primeira fuccefião , em que fuc^
, cede o Lopo Vaz de Sampaio, 6i.
CAP. X. Do que fez o Governador em Co-
chim ; e das nãos que partiram pêra o
B^eyno ; e de como ElRey D. João rece-
beo o Embaixador Abexi, 71.
LIVRO IL
CAP. I. T) a origem ^ e princípio doRey^
no , e Reys de Malaca : e do tempo
em que receberam a lei de Mafamede :
e do fundamento , e defcripçao da Ilha
de Bintão, Pag. 80.
CAP. II. De como Pêro Mafcarenhas par-
tio pêra Bifttao , e de como desbaratou
huma Armada d''ElRey de Fão : e do
grande trabalho que os noffos tiveram,
na entrada do rio, Zj,
CAP. III. De como os inimJgos commettê-
raWu o navio de Fernão Serrão , e do rif-
CO em que fe vio : e de coyiio o Governa-
dor o foccorreo , e commetteo a Cidade
de Bintão , e a tomou» ^2.
CAP. IV. Do alvoroço que havia na gen-
te da índia fobre o governo de Lopo Vaz
de Sampaio : e de como fe elle fez preftes
pêra ir bufe ar as galés dos Rumes, 107.,
CAP. V. Do que aconteceo a Pêro Maf
ca-
Índice
carenhãs até chegar a Cochim : e de co-
mo Aífonfo Mexia lhe defendeo a defem-
harcação : e do que pajjou em Cananor ,
e de como fe partio em hum catúr pêra
Goa, I IO.
CAP. VI. Do que fez Lopo Vaz de Sam^
paio tanto que teve novas de Pêro Mas-
carenhas : e de como o mandou efperar
na barra , e o prenderam tm ferros , e
o levaram a Cananor, 117.
CAP. VII. Do que Chrifiovão de Sou f a Ca-
pitão de Chaul efcreveo a Lopo Vaz de
Sampaio fohre as coufas de Pêro Maf-
care7íhas : e de como chegou a Goa pre-
zo Rax Xarrafo Guazil de Ormuz : e
dos requerimentos que Pêro Mafcare-
nhãs mandou fazer a Lopo Vaz de Sam-
paio. 125'.
CAP. VIII. Das revoltas , que em Goa
houve fobre as coufas dos dous Governa-
dores : e de como Eitor da Silveira , e
Diogo da Silveira fe lançaram da parte
de Pêro Mafcarenhas, 1^3.
CAP. IX. Do protefto , que Pêro Mafca-
renhas mandou aos Vereadores , e Fidal-
gos de Goa : e de como os aprefentdram
a Lopo Vaz de Sampaio, 139.
CAP. X. Do que Lopo Vaz refpondeo aos
proteftos de Pêro Mafcarenhas, 147.
CAP. XI. De como os do bando de Pêro
Maf
DOS Capítulos
• Mafc are nhãs trataram de prender Lopo
Vaz , e das uniões que fohre ifjo howve :
e de como Lopo Vaz os foi prender a
todos, iSS*
LIVRO III.
CAP. L Do que aconteceo na jornada
de Francifco de Sd , v\ da defcripçao
da Ilha de Jaoa , e de qual he a maior ,
e menor de Marco Polo : e de como Fran-
cifco de Mello rendeo huma não de Tur-
cos na barra de Achem, Pag. 163.
CAP. II. T>e como D, Garcia Henriques
fez pazes com ElRey de Tidore , e a
razão porque logo as quebrou , e de co-
mo faleceo a que lie Rey : e das fufpeitas
que houve fer ajudado a iffo com peço-
nha que fe lhe deo, 173.
CAP. III. Do que aconteceo a D. Jorge
de Menezes na jornada de Maluco , e
de como defcubrio as Ilhas dos Papuas:
e da Armada que partio de Cafiella pê-
ra aquellas Ilhas de Maluco , e da der-
rota que levou até chegar a ellas, 178.
CAP. IV. De como D, Jorge de Menezes
chegou a Maluco , e de como fez tregoas
com os Cajielhanos , que fe quebraram
logo : e de como faleceo ElRey Bayano ,
e fuccedeo feu Irmão Ayalo, E de como
El-
Índice
ElRey de Lobu matou os Portuguezes
que eftavam em feu porto , e tomou hu-
ma galé por engano, 192.
CAP, V. De como D. Simão de Menezes
foltou Fero Mafcarenhas : e dos requeri-
mentos que mandou fazer a Lopo Vaz :
e da Armada que efie anno de vinte e
fete partia de Portugal : e de como duas
nãos delia fi perderam na Ilha de S.
'Lourenço, 199.
CAP. VI. Da Armada , que o Turco So-
leimão mandava contra os Portuguezes :
e das dijfcrenças que houve entre os Ca-
pitães : e de como mataram o Generxil ^
e a Armada fe desfez, 208.
CAP. VII. De hum ajjinado , que António
de Miranda de Azevedo deo a Pêro Maf-
carenhas de lhe obedecer : e do que af-
fentãram o mefmo António de Miranda ,
e Chriftovão de Soufa fobre as coufas
dantre os Governadores, 218.
CAP. VIII. De como fe rnoflrou a pauta
a Lopo Vaz , e de como jurou de a cum-
prir , e fe partio pêra Cochim , aojíde fe
havia de julgar a contenda : e do que
pa/Jòu em Cananor com Pêro Mafcare-
nhas, 227.
CAP.. IX. De algumas de [avencas , que
houve em Cochim. entre os Governadores :
e de como fe accrefcentáram mais dous
Jui-
DOS Capítulos
Juizes por -parte de Lopo Vaz , e do
que mais pajjou. 235'.
LIVRO IV.
CAP. I. Dos Juizes que fe accrefcen-
tarara de novo : e de como Je deo a
fentença por Lopo Vaz de Sampaio : e
de como Vero Mafcarenhas Je embarcou
pêra o Reyno, Pag. 241.
CAP. II. Do que pajjou D. Jorge Capi^
tão de Maluco com D. Garcia Hciiri-
que fobre certos apontamentos que leva-
va ^ e de como mandou a Malaca pe-
dir foccorro , e prendeo D, Garcia em.
ferros, iço.
CAP. III. De como os de Z). Garcia .0
induziram que prenàejje D, Jorge : e
de como o fez , e fe metteo na forta-
leza, 2^7.
CAP. IV. Do que fizeram os amigos de
Z). Jorge fabendo fua prizao : e das con-
fias que fiuc cederam até ofioltarem : e do
que aconteceo aos que D, Jorge tinha
mandado a Borne o, 263.
CAP. V. Das cmfias em que o Governador
provéo , em qtianto efteve em Cochim : e
das Armadas , que defipachou pêra fiara :
e da grande vitoria , que Z). João De ca
houve de huma Armada de Calecut : c
de
Índice
de como Chrijlovão de Mendoça foi etí'
trar na fortaleza de Ormuz , e da mor-
te do Guazil Rax Hamede, 272.
CAP. VI. Do que acontcceo a António de
Miranda no eftreito do mar Roxo , e das
prezas que fez, 278.
CAP. VII. De como Simão de Soufa Gal-
vão , que hia pêra Maluco , foi com tem-
po fortuito tomar a barra do Achem \ e
da grande , e efpa^itofa batalha que te-
've com huma Armada fua j em que foi
morto ^ e a galé tomada, 282.
CAP. VÍII. De coyno Gonçalo Gomes de Aze^
vedo , que hia pêra Maluco , chegou a
Banda , e do que alli pajfou com D, Gar-
cia Henriques : e de como chegou a Tido-
. re Álvaro de Sayavedra Ceron , que par-
tio da nova Hefpanha , e do que aconte-
ceo a D. Jorge com elle, 292.
CAP. IX. Do que aconteceo a António de
Miranda , que invernou em Ormuz : e
de como Diogo de Mef quita foi cativo
da Annada de Cambaya , e foi mettido
em huma bombarda , pêra que fe fizejfè
Mouro 5 e da grande conflancia que te-
ve : e de como efla Armada pelejou com
Henrique de Macedo^ e da brava bata-
lha que tiveram. -504.
CAP. X. Do que aconteceo 71a jornada a
Martim Affonfo de Mello Juzar te : e de
CO-
DOS Capítulos
como fe perdeo na cojla de Bengala ; e
dos grandes trabalhos que pafjbu até fer
cativo, 3 1 !•
LIVRO V.
CAP. I. De como ElReyD. joao vian-
dou por Governador da Índia Nuno
da Cunha : e do que aconteceo na jor-
nada, Pag. 325'.
CAP. II. Tio que fuccedeo ás mais nãos
- da companhia do Governador Nuno da
Cunha : e de como elle fe perdeo na Ilha
de S, Lourenço : e do que aconteceo d
gente da companhia de Manoel de La-
cerda, 333.
CAP. III. De huma Armada nojfa , que
par tio de Cochim , e fe perdeo no rio de
Chatud : e de como o Governador Lopo
Vaz de Sampaio partio pêra Cochim , e
desbaratou huma grande Armada do Ca-
morim, 3 3 ç),
CAP. IV. De como o Governador Lopo Va^
de Sampaio defiruio o Arei de Porca :
e da Armada que do Reyno partio : e
do que lhes aconteceo 7ia jornada até
chegar a Cochim, 348.
CAP. V. De como o Governador Lopo Vaz
de Sampaio foi avifado de huma Arma-
da de Cambaya que andava fora : e de
Índice dos Capítulos
como a foi hufcar , e pelejou com ella , e
a desbaratou de todo. 3 5" 2.
CAP. VI. Da guerra que Heitor da Sil-
veira fez na cojla de Cambaya : e de
como dejiruio a Cidade de Baçaim , e
as Villas de Tanà , Bombaim , e outras :
e do que o Governador Lopo Vaz de
Sampaio fez em Goa , e do que acoute-
ceo no Malavar, 362.
CAP. VII. De como Qhrijlovâo de Mendo-
ça Capitão de Ormuz mandou António
Tenreyro por terra ao Reyno com as nO"
vas das galés , e da jornada que efte ho-
mem fez pelo deferto de Arábia : e de
como chegou ao Reyno, e ElRey mandou
Manoel de Macedo a Ormuz a prender
Rax Xarrafo, 370.
CAP. VIII. Das coufas que aconteceram
em Malaca até chegar Garcia de Sd:
dos ardis de que o Achem ufou com Fe-
ro de Faria , por ver fe podia colher em
feu porto algum navio : e de outras cou-
fas que mais paffdram, 378.
CAP. IX. De como ElRey do Achem to-
mou por engano hum galeão , de que era
Capitão Manoel Pacheco : e de como fo^
ram defcubertos huns tratos que Sinaya
de Raya Chely de Malaca trazia com ê
do Achem y e de como foi morto, jSj.
DE-
_...™..- .-™. }
DÉCADA (QUARTA.
LIVRO I.
Dos Feitos 5 qiie os Portuguezes fizeram
no defcubrimento , e conquifta dos
mares, e terras do Oriente , em
quanto governaram a índia Lo-
po Vaz de Sampaio , e par-
te de Nuno da Cunha.
CAPITULO I.
De como por morte do Governador Dom
Henrique de Menezes fuccedeo na gover^
nança da Índia Fero Mafcarenhas , que ef-
tava por Capitão de Malaca : e do jnodo
for que Affonfo Mexia Veador da fazenda
a brio a terceira fuccefsao ^ em que fuccedeo
Lopo Vaz de Sampaio,
Alecido o Governador Dom
Henrique de Menezes na for-
taleza de Cananor , no fim de
Janeiro defteanno de 15' 26, em
que com o favor Divino en-
tramos , como no fim da terceira Década
Couto. Tom, L P. L A de
2 ÁSIA DE Diogo de Couto
de João de Barros fe conta, eílando feu cor-
po depofitado na Capella da Igreja , lendo
prefentes D. Simão de Menezes Capitão de
Cananor , AíFonfo Mexia Veador da fazen-
da , Vicente Pegado Secretario do Eftado ,
o Licenciado João deOíouro Ouvidor Ce-
rai 3 D. Vafco Dcça , Ruy Vaz Pereira ,
Dom AíFonfo de Alenezcs tiiho do Conde
de Cantanhede , Manoel de Brito , António
da Silva de Campo maior , Lopo de Mef-
quita , e Diogo de Mefquita ambos irmãos ,
Djogo da Silveira , Manoel de Macedo ,
António de Miranda de Azevedo , Dom
Vafco de Lima, Martím AíFonfo de Mello
Jufarte , D.Jorge de Menezes, D. António
da Silveira, D. Jorge de Caílro, Francifco
de Ataíde , e outros Fidalgos , e cavalleiros.
E prefentes todos , abrio o Veador da fa-
zenda hum cofre , em que eftavam guarda-
das as fuccefsoes da governança da índia ,
que eram três , que trouxe comíigo o Con-
de Almirante D. Vafco da Gama quando
veio porVifo-Rey, que foram as primeiras
que á índia vieram ; porque antes delle não
havia eíta ordem , nem nós pudemos faber
a queElReyD. Manoel tinha dado, fendo
cafo que faleceíFe o Governador da índia ;
porque nem João de Barros , nem Damião
de Góes o declaram. Aberto o cofre , tirou
o Veador da fazenda delle a fegunda fuc-
cei-
Década IV. Liv. L Ca?. L 3
Cefsâo , porque a primeira fora aberta por
morte do meímo Conde Almirante , na qual
tinha fuccedido D. Henrique de Menezes ,
cujo corpo eílava prefente j e dando a íuc-
ceísão ao Secretario , elle a amoftrou a to-
dos pêra que viíTem que eftava ferrada , e
fellada com o lêllo das armas Reaes fem fe
nella bolir , nem tocar , e a deo ao Capi-
tão, e ao Ouvidor geral pêra que a exami-
naíTem bem , e elles a tomaram ao Secreta-
rio que a abrio , e achou- fe nella Pêro Mas-
carenhas 5 que eílava por Capitão de Mala-
ca. Eíie Alvará de fucceísao moftrava fer
feito em Évora aos 10. dias de Fevereiro
de 1524. Nomeado Fero Mafcarenhas por
Governador , ficaram todos embaraçados ,
porque não podia vir de Malaca fenao dalli
a quatorze mezes. E porque fe não pude-
ram logo determinar no que fe devia fazer ,
enterraram o corpo do Governador D. Hen-
rique de Menezes. Ao outro dia fe ajunta-
ram todos em cafa do Capitão , onde o Vea-
dor da fazenda lhes fez hum.a breve falia ,
em que lhes reprefentava as neccílidades cm
que o Eílado eftava ; aíli pelas novas que ha-
via de galés de Rumes , como pela guerra
que eílava aberta com Cambaya , e com o
Camorim ; pêra o que era neceíTario tomar-
fe determinação fobre aquelle negocio do
Governador, pois Fero Mafcarenhas eítava
A ii tão
4 ÁSIA DE Diogo de Couto
tão longe. Sobre iílo fe moveram grandes
alterações , fendo quaíl todos de parecer que
fe efperaíTe por Fero Mafcarenhas , e que
entretanto fe ordenaíTem regentes , que go-
vernaíTem em feu lugar. Eftando a coufa af-
íi baralhada em porfias , diíTe o Licenciado
João de Ofouro , que fe fe pudera faber qual
era o Fidalgo da terceira fuccefsao , que ef-
fe fe poderia eleger pêra aquellc negocio,
Affonfo Mexia deitando a orelha áquelle pon-
to difle : Que mão feria , Senhores , abrir-
fe a terceira fuccefsao ^ e entregar fe efe go-
verno ao que Jtella eftiver , jurando primei-
ro todos os .que aqui eftam , que qualquer
que fe achar nella goveritará^ a Índia até
'vir Pêro Mafcarenhas , a quem a tornará a
entregar ; e que tanto que elle chegaffe , ne-
nhum conheceria mais outro Governador fe-
ndo a elle ? Não pareceo mal aquillo a al-
guns Fidalgos , que cuidavam poderiam fuc-
ceder naquelie lugar , dizendo , que o me-
lhor meio , que naquelie negocio fe pudera
tomar , era aquelle ; mas fó D. Vafco De-
ça , reprovando aquelle parecer , fallou mui-
to alto , dizendo , que nas fuccefsoes da ín-
dia fe não podia bulir fenão pela ordem que
ElRey mandava , que era por falecimento
da peífoa que governaíTe o Eftado; e que
Pêro Mafcarenhas , que fuccederá per mor-
te do Governador D. Hemúque , eílava vivo ,
e que
Década IV. Liv. I. Cap. I. $
C que abrindo- fe outra fucceísão , fe daria
matéria a grandes divisões ; porque pela
ventura que o homem , que fuccedeíte na ou-
tra via , nao quereria depois entregar a ín-
dia a Pêro Mafcarenhas , no que forçado
havia de haver defconcertos , e bandos , por-
que Pêro Mafcarenhas era hum Fidalgo mui-
to cavalleiro , de grandes merecimentos , e
muito aparentado , e que das defavenças que
diíTo fuccedeíTem , todos os que prefentes ef-
tavam haviam de dar conta a EIRey. Pa-
receo iílo tão bem a alguns que eftavam do
outro parecer , que fe retrataram , e dilTe-
ram , que aquillo , que D. Vafco Deça tinha
dito 5 era o que cumpria ao ferviço de Deos ,
e d'EiRey , e que elles eram do mcfmo pa-
recer. Mas o Veador da fazenda como fi-
cava então fendo a prim.eira peíToa da ín-
dia pelos poderes de feu cargo , diíTe , que
elle tomava fobre íi aquelle negocio , e que
fe abriria a fuccefsão , c o que nella fe achaf-
fe aíHnaria hum auto , em que fe obrigaíTe
a entregar a índia a Pêro Mafcarenhas ; e
que elle Veador da fazenda com todos os
Fidalgos 5 e Officiaes, que alli cílavam, fariam
hum juramento folemne, que Ihefiriam en-
tregar a índia tanto que chega ífe de Mala-
ca. E logo o Ouvidor geral deo juramento
a todos , que obedeceriam a Pêro Mafcare-
nhas tanto que viefle , e não ao que gover-
naf-
6 ÁSIA DE Diogo de Couto
naíTe pela terceira fuccefsão , porque não ha-
via de fer Governador mais que até fua vin-
da. Difto tudo fez o Secretario Vicente Pe-
gado hum auto , em que fe aílináram todos ,
e juntos na Igreja tiraram a terceira fuccef-
são , e abrindo-a , achou- fe nella Lopo Vaz
de Sampaio , que cílava por Capitão de Co-
chim. Efte Alvará moftrava fer também fei-
to em Évora aos 26. de Fevereiro do anno
de I5'24. dezefeis dias depois do de Pêro
Mafcarenhas , e logo alli o Veador da fa-
zenda , e todos os que tinham alTuiado no
auto 5 tornaram a ratificar o paíTado , jurando
de novo de não obedecerem a Lopo Vaz
mais que até á hora que chegaíTe Pêro Maf-
carenhas, a que logo fariam entregar a ín-
dia. Diílo tornou o Secretario fazer outro
auto , em que todos fe tornaram a aííinar ,
que foi feito aos 3. de Fevereiro de 1^26.
e logo íe embarcaram todos pêra Cochim
pêra irem. entregar o governo a Lopo Vaz
de Sampaio.
CA-
Década IV. Liv. I. 7
CAPITULO II.
De como Affonfo Mexia entregou a índia
a Lopo Vaz de Sampaio : e de corno o
Governador fe par tio pêra Goa : e da
grande vitoria que houve de hu-
ma Armada do Çamory no rio
de Bacanor»
Oucosdias píizeram oVeador da fazen-
da 5 e todos aquelles Fidalgos até Co-
chim 5 e defcmbarcando em terra, fe ajun-
taram logo na Sé , onde mandaram chamar
Lopo Vaz de Sampaio , e o Veador da fa-
zenda lhe deo conta do que eflava aíTenta-
do , e lhe leo os autos , e juramentos que
eftavam feitos entre todos aquelles Fidalgos ,
e Capitães primeiro que fe abriífe a tercei-
ra fuccefsão em que clle eílava , notiíican-
do-lhe o modo de como havia de ter o go-
verno, que era até vir Pêro Mafcarcnhas ,
a quem todos haviam de obedecer como
a verdadeiro Governador. E acceitando Lo-
po Vaz a fuccefsáo por aquelie modo , lo-
go alii fe lho. deo juramento em hum Mif-
fal , que tanto que Pêro Mafcarcnhas vieíTe
lhe entregaria a governança , e qWq ficaria
depois como peíToa privada , e debaixo de
fua jurdicao : e de tudo ilío fez o Secreta-
rio outro auto em que Lopo Vaz fe alli-
nou ,
8 ÁSIA DE Diogo de Couto
liou, e com clle oVeador da fazenda, Fi-
dalgos 5 Capirães , e todos os Officiaes da
juftiça 3 e fazenda , os quaes tornaram a ju-
rar de novo de obedecer a Pêro Mafcare-
nhas tanto que chegaíTe de Malaca. Aca-
bado efte auto , foi logo Lopo Vaz entre-
gue da govern-mça da índia , dando a ome-
nagem delia pela forma coftumada nos Rey-
rios de Portugal , declarando nella que go-
vernaria até chegar Pêro Mafcarenhas , que
era o legitimo Governador , a quem logo
a entregaria. Daqui por diante começou Lo-
po Vaz de Sampaio a correr com fuás obri-
gações 5 e a primeira coufa em que proveo
foi na capitania de Cochim , quedeo a Dom
Vafco Deça , e em defpachar pêra Bengala
RiiyVaz Pereira 5 a quem deo aquella via-
gem 5 que era de muito proveito. E dando
ordem a muitas coufas , embarcou-fe com
muita preíla por fer avifado que no rio de
Bacanor eílava huma grande Armada de Ca-
lecut, de que era Capitão CotialeMarcá Mou-
ro grande coiTairo. Levava o Governador
alguns gnlcoes , de que eram Capitães Dio-
go da Silveira da Tereva , D. Aífonfo de
Menezes , D. Pedro Manoel , Manoel de
Brito , Manoel de Macedo , António da Sil-
va , Diogo deMcfquita, Lopo deMefqui-
ta 5 a fora aIg^.lns catúres , e navios de re-
mo y cuja cópia , e Capitães não achámos.
O
I
Década IV. Liv. I. Cap. II. 9
O Governador hia embarcado na galé baf-
tarda , de que era Capitão D. Vaíco de Li-
ma 5 e com toda eíla Armada fe fez á véla a
dezefeis de Fevereiro ; e tomando Cananor ,
achou cartas de D. Jorge Téllo , e de Pêro
de Faria , que eílavam com dous galeões no
Malavar , em que lhe faziam a faber que
ficavam fobre a barra do rio Bacanor , e que
tinham dentro encerrada huma Armada do
Camori de mais de fetenta velas , em que
havia mais de três mil Mouros , e que efta-
vam favorecidos de hum Capitão d'EIRey
de Narilnga , cuja a terra era , que tinha der-
redor de vinte mil homens. Tanto que o
Governador vio as cartas , e que foube o
poder dos inimigos , vendo que em toda a íua
Armada não haveria mais de fetecentos ho-
mens , defpedio hum catúr muito ligeiro pê-
ra Goa com cartas a Chriílovao de Soufa ,
e a António da Silveira , que lá eftavam com
feus galeões , pêra que logo fe foflein pêra
elle ; e defpedio Manoel de Brito no feu ga-
leão 5 pêra que fe foíTe ajuntar com D. Jor-
ge 5 e Pêro de Faria no rio de Bacanor , pê-
ra que a Armada dos inimigos não pudefle
fahir pêra fora. Partidos eíles navios , tomcu
o Governador alguns mantimentos, e agua ,
e logo fe fez á véla. Coíiale Capitão mor
da Armada Malavar logo foi avifado de co-
mo o Governador era partido de Cochim
em
IO ÁSIA DE Diogo de Couto
em biiíca dellc •, e não fe atrevendo a pele-
jar com os galeões , que eítavam fobre a
barra , determinou de o efperar em terra ,
pêra o que mandou com muita brevidade
fazer defronte da Cidade , onde tinha a Ar-
mada , algumas tranqueiras , em que aíTeílou
muita artilheria , e no rio de huma, e de
outra parte mandou atravefiar muitas eftaca-
das de páos groíTos pêra impedir a paíTa-
gem aos ncíTos navios , deixando-lhe pelo
m.eio hum canal tão eílreito , que não pu-
deíTem por elle entrar fenão hum , e hum
a fio 5 pêra das tranqueiras os m.etterem no
fundo ; e de humas eílacadas a outras man-
dou atraveíTar viradores groíTos por de bai-
xo da agua , pêra que os navios encalhaíTem
nelles. O Governador foi feguindo fua via-
gem até chegar a Bacanor , onde furgio , e
foube daquelles Capitães o modo de como
os inimigos eftavam fortificados, fazendo-lhes
a entrada duvidofa ; mas o Governador co-
mo era muito cavalleiro, e fora de todo o
medo , fem embargo de todas as difficulda-
des que lhe repreíentavam , determinou de
entrar o rio, e pelejar com os inimigos em
terra , fem efperar pelos Capitães que tinha
mandado chamar a Goa , e mandou logo
ordenar em quatro batéis grandes, e fortes,
mantas , e arrombadas , e em cada hum man-
dou metter hum camelo de marca grande
pe-
Década IV. Liv. I. Cap. IL ii
pêra baterem as eftancias ; e pondo eftc ne-
gocio em confelho , diíTe neJJc a todos os
Capitães 5 que a Qlle lhe parecia bem com-
mctter os inimigos fem eíperar pela Armada
de Goa , porque não era credito do eílado
deixar-fe eftar fobre aquella barra fem. n en-
trar 5 e ir commetter os inimigos em fuás tran-
queiras 5 porque haveriam elles que os recea-
va , que o eílado da índia não fe havia de
fuftentar , e dilatar fenão com a reputação ,
e opinião com que fe ganhou , a qual tanto
que os Portuguezes a perdeíFem com os inimi-
gos , logo fe perderia tudo , e que fobre if-
to lhe podiam livremente dizer o que lhes
parecia. E votando aquelles Capitães , foram
todos de parecer , que fe não arrifcaiTe o ef-
tado da índia em hum feito tão duvidofo ,
€ em que nada fe ganhava , antes fe perde-
ria muito 5 acontecendo hum. defaílre, que
o tempo não fugia , que os inimigos dentro
os tinham feguros , que fe efperaífe pelos
Capitães que tinha mandado chamar a Goa ,
e que então fe commetteíTem os inimigos , e
que Deos lliQ daria a vitoria ; mas que era
neccíTario ter-fe primeiro alguns cumprimen-
tos com o Capitão d'ElRey de Bifnagá qlie
alli cftava , pois era amigo do Eftado. Al-
guns cuidaram , que alguns deftes Capitães
de inveja de Lopo Vaz governar a índia
lhe queriam tirar aquella vitoria, e honra
das
12 ÁSIA DE Diogo de Couto
das mãos. E Fernão Lopes de Caftanheda
diz 5 que andavam os mais delles pejados no
governo de Lopo Vaz , porque cuidava ca-
da hum que lhe cabia aquelle higar melhor
que a elle : o que parece foi imaginação ,
porque primeiro que Lopo Vaz foffe entre-
gue da índia , podiam elles eílorvallo , por
ferem muitos , e muito principaes Fidalgos ,
que fe quizeram , não confentíram a Aífbn-
fo Mexia o que fez , nem acceitáram em
Cochim a Lopo Vaz por Governador ; mas
a verdade he , que o feito era temerário ,
que na vitoria todos haviam deter tamanho
quinhão como Lopo Vaz. Vendo eJle todos
aquelles Capitães daquelle voto , diíTe , que
fícaíTe a couía fem fe refumir até ver o rio ,
o que elle em peíToa queria fazer de ma-
drugada 5 e até mandar recado ao Capitão
d'ElRey deBifnagá. E logo defpedio hum
Mouro 5 que fe lançou em terra com reca-
do aquelle Capitão , em que lhe fazia a fa-
ber, que elle era alli chegado pêra pelejar
com aquella Armada do Çamorim , que era
inimigo do Eftado da índia , c que foubera
eftar elle Capitão alli ; e como EIRey de
Portugal era grande amigo do de Bifnagá ,
e elle como quem eílava cm feu lugar não
queria deferviilo cm nada , lhe pedia que
lhe mandaífe entregar aquelles navios que
eftavam dentro.^ pois eram de Mouros feus
ini-
Década IV. Liv. I. Cap. IL 13
inimigos 5 fcnáo que foubefle de certo que os
havia de ir bufe ar , e que não quizeile elie
romper a paz , que eftava feita entre feus
Reys 5 porque o de Bifnagá não fc haveria
por fervido delle. Efte recado fe deo ao
Capitão , que refpondco , que aquelia Arma-
da fe recolhera naquelle rio , e que não era li-
cito entregalla elle , pois fe recolheram alli
de baixo do amparo , e favor d'ElRey de
Bifnagá : e que ainda que elle os quizeile
entregar, os Mouros eílavam tão fortes que
fenão atrevia com elles : que íhdlc os que-
ria ir tomar 5 que muito bem o podia fazer,
porque elle fe não fahiria da fua Cidade ,
nem lhe daria favor, e ajuda. Eíla refpof-
ta veio ja de noite , com a qual o Gover-
nador fe determinou de ir pelejar com os
Mouros. E fendo meio quarto d'alva ren-
dido , efcoiheo três catúrcs os mais ligeiros
de todos , e embarcando-fe em hum , levou
comíigo os outros , dos quaes eram Capitães
Manoel de Brito , e Paio Rodrigues de Araú-
jo 5 e com a enchente foi entrando pelo rio ,
e notando o modo das eftacadas : iílo não
pode fer em tanto íilencio , que não foffeni
fentidos dos Mouros , que defcarregáram
nelles huma tempeílade de bombardas , que
lhes não fizeram damno , por irem os catú-
res cofidos com a terra. O Governador foi
paliando por todos os pelouros até chegar
a ver
14 ÁSIA DE Diogo de Couto
a ver as tranqueiras , que eíleve reconhecen-
do á fiia vontade , fem as bombardadas que
choviam fobre elie o divertirem. Depois
de bem notado tudo , tornou a voltar pelo
rio a baixo , e mandou por homens de con-
fiança cortar os cabos , que atravelTavam as
eílacadas , deixando o caminho deíimpedido.
Chegada a Armada , mandou chamar os
Capitães , e lhes deo conta do que vio , fa-
cilitando-lhes a deíembarcaçao , e vitoria y
mas nem com iíTo deixaram de lhe dizer ,
que fe efperaíTe pela gente de Goa , com o
que o Governador fobreeíteve , porque não
quiz commetter eíle feito contra vontade dos
homens , porque o gofto , e o defgofto del-
les algumas , e muitas vezes dá , e tira a
vitoria ; m.as todavia não tardaram os de
Goa dous dias que não chegaíTem , trazendo
Chriílovão de Soufa , e António da Silvei-
ra nos léus galeões de ventagem de trezen-
tos homens. O Governador fez novo ajun-
tamento , e tornou a tratar o negocio , dan-
do de novo informação do que vira , pa-
ra aquelles Capitães que eram chegados de
novo laberem o que paíTava. E tornando a
votar fobre aquillo , foram os mais dos pri-
meiros de parecer 5 que fe havia de diílimu-
lar com aquelie negocio , aííi pelo feito fer
temerário , como por não romper com o
Rey de Bifnagá , cuja a terra era j masChrif-
to-
Década IV. Liv. I. Cap. II. 15*
tovão de Soiifa , e António da Silveira dif-
leram , que em nenhum modo dcixaíTcm de
commetter os inimigos de toda a maneira que
eftiveílem , ainda que íe arrifcaíTe tudo ; por-
que fe deixaíTem de o fazer , cobrariam os
Mouros tanto brio , que os iriam commet-
ter dentro a Goa ; que pêra o Governador da
índia diííimular , nao havia de tomar aquel-
lã barra j mas já que eftava fobre ella , e ti-
nha mandado recado ao Capitão d'ElRev
de Biínagá de cumprimentos , que não con-
vinha ao credito, e reputação dos Portuguc-
zes, e do Eftado deixar de commetter os inimi-
gos. Aííentado niílo , em que quaíi todos
tornaram a conformar , deo-lhes o Gover-
nador recado que íe fizeíFem preíles pêra o
outro dia , que eram vinte e cinco de Fe-
vereiro 5 ordenando alli com os Capitães o
rnodo que fe havia de ter na defembarca-
ção 5 que havia de fer por efta maneira. As
quatro barcaças na dianteira , pcra invefti-
rem as eftacadas , e baterem as tranqueiras ,
c nellas poz Capitães de muita confiança ,
de que nao acho os nomes mais que a Ma-
noel de Brito , e Paio Rodrigues de Araú-
jo. Apôs os batéis havia de entrar o Capi-
tão mor do Malavar D. Jorge Téllo com
todos os navios de remo , os Capitães dos
galeões em feus batéis , e em outros navios ,
e detrás de todos o Governador com alguns
Ca-
i6 ÁSIA DE Diogo de Couto
Capitães velhos. E fazendo-fe todos preftes
no quarto d'aíva , foram entrando o rio com
grande eílrondo de pifaros , tambores , trom-
betas 5 e outros inftrumentos de guerra , paf-
fando as barcaças pelas eítacadas , fazendo
caminlio aos catúres até pojarem de fronte
das tranqueiras , indo rompendo por meio
de nuvens de bombardadas , e efpingarda-
das , e frechadas ; e pondo-fe a tiro de ef-
pingarda , começaram a bater as eítancias
dos Mouros , em que fizeram grande dam-
no até chegar toda a Armada. D.Jorge Téi-
lo , que levava a dianteira , endireitou com
a terra por meio daquella infernalidade , in-
do já de miftura com clles Manoel de Bri-
to , e Paio Rodrigues de Araújo , que fe
pafTáram a navios pequenos , deixando as
barcaças á bateria , e pojando em terra fal*
taram dos dianteiros Manoel de Brito y e
Paio Rodrigues com huma companhia de
foldados 5 e apôs elles o Capitão mor com
perto de quinhentos homens , e poílos em
terra , acharam os Mouros fora das tranquei-
ras , que os eiperavam com grande deter-
minação ; e travando com elles huma for-
moía batalha , em que houve damno de par-
te a parte , foram os noíTos lançando os inimi-
gos do campo , e mettendo-os pelas tran-
queiras , onde fe defenderam com muito va-
lor muito grande efpaço. Mas como osnoí-
fos
Década IV. Liv. I. Cap. 11. 17
fos hiam com aqiiclle furor , e determina-^
çao 5 paíTando por todos aquelles impedimen-
tos , e rifcos , cavalgaram as tranqueiras ,
onde fizeram nos inimigos grande eílrago , e
vendo-íe tão apertados , largaram tudo , e
acolhéram-fe á Cidade , que cllava hum pou-
co pelo fertão , na qual eftava o Capitão
d'ElRey de Narfinga com toda a gente pof-
ta em armas pêra a defender, fe os noíTos
a quizeíTem. commetter. O Governador , que
vio noíTas bandeiras arvoradas nas tranquei-
ras, chegou a ellas, e mandou tocar a rer
colher , e diíTe aos Fidalgos velhos que fe
puzeíTem nas portas que hiam pêra o fertão ,
pêra que não deixaíTem. fahir ninguém pêra
fora , porque receou que houveífe algum def-
arranjo , e que quizeíTem os foldados fe-
guir os Mouros até á Cidade , onde eftava
o Capitão d'ElRey de Narfinga , já que lhe
elle teve tanto refpeito que não fahio delia.
Depois de ter ifto feguro , mandou dar fo-
go ás tranqueiras , e a todas as embarcações
dos Mouros , e a hum grande armazém de
todas as drogas que eftavam pêra carregar,
mandando embarcar oitenta peças de artilhe-
ria que havia nas tranqueiras , e navios. Fei-
to efte negocio , que foi hum dos grandes
da índia , e de menos perda , porque não
morreram mais de quatro Portuguezes , em-
barcou-fe o Governador, e deo á vela pe-^
' CQuto,TonuLF,L B ra
i8 ÁSIA DE Diogo de Couto
ra Goa. Andava nefte tempo de Armada nas
Ilhas de Maldiva Jorge Cabral , que o Go-
vernador D. Henrique tinha defpedido de
Cochim a efperar as náos de Meca , como
fe.vê na terceira Década de João de Barros,
Andando efte Fidalgo entre aquellas Ilhas ,
chegáram-lhe novas de Cochim da fuccefsão
de Pêro Mafcarenhas , e como era muito
feu amigo, determinou de o avifar, e en-
tregando a Armada , que era de fete navios
de remo , a hum dos Capitães , elle na fua
galeota deo á vela pêra Malaca , e de fua
jornada adiante daremos razão.
CAPITULO III.
Do que o Governador pajjott em Goa com
Francifco de Sã , Capitão daquella Cida-
de , fohre o itao querer receber nella :
e de alguns Capitães que defpachou
pêra fora : e de corno o Governa-
dor par tio pêra Ormuz.
EStava por Capitão da Cidade de Goa
hum Fidalgo velho de muitos ferviços
chamado Francifco de Sá Veador da fazen-
da da Cidade do Porto , filho do fegundo
João Rodrigues de Sá Alcaide mór daquel-
la Cidade , e fenhor de Matofmhos , e das
terras de Sever , Baltar , e Paiva. O qual
Francifco de Sá tinha ElRey D. João man-^
í A /•.•..: da-
Década IV. Liv. I. Cap. III. i^
dado em companhia do Conde Almirante ,
quando veio por Vifo-Rey , pêra ir fazer
huma fortaleza no porto da Sunda , por fer
avifado que em Sevilha fe tratava de man-
dar fazer alli outra por cafo do trato da
pimenta , por fer alli huma grande efcala
delia. E porque o Conde Almirante não te-
ve tempo de o aviar , quando fuccedeo o
Governador D.Henrique, Ihedeo a capita-
nia de Goa. Eíle Fidalgo como era grande
peíToa na índia , fabendo o que fe fizera cm
Cananor nas fuccefsoes , e como o Veador
da fazenda , fem confultar os Fidalgos , e
Capitães da índia abrira a terceira fuccefsão ,
eftando declarado na primeira Pêro Mafca-
renhas , teve-o muito a mal , e houve que
Affonfo Mexia tomara mais do que era feu ,
e que fora contra o ferviço d'ElRey ; e con-
fultando eílas coufas com os Vereadores da
Cidade, e com as peíToas principaes delia,
aíTentáram que o Veador da fazenda , no
abrir da terceira fuccefsão , tinha defacerta-
do , e que não eílavam obrigados a obede-
cer por Governador da índia , fenão a Pê-
ro Mafcarenhas. Concluídos niílo , fabendo
que Lopo Vaz hia pêra aquella Cidade , af«
fentáram de o não recolherem , e de lhe fa-
zerem, feus proteílos , porque o não conhe-
ciam por Governador , porque não eílavam
obrigados nem por juramento , nem por ai-»
B ii gu-
IO ÁSIA DE Diogo de Couto
guma outra coufa a iíTo , e aíTi fecharam as
portas da Cidade , e puzeram nellas gran-
des guardas , e vigias , e mandaram pór hu-
ma fuíla na barra com humTabelliáo pêra
notificar a Lopo Vaz o que citava aíTenta-
do. Náo tardou muitos dias que elle che-
gaíTe, centrando pelo rio, lhe fahio o na-
vio , e o official lhe notificou Jium proteílo
que levava , requerendo-lhe que nao entraf-
lè dentro , que o nao haviam de recolher
na Cidade , porque nao conheciam por Go-
vernador fenão a Pêro Maícarenhas 5 que
era feito por ElRey , e não a elle , que era
feito peio Veador da fazenda , fem ordem 5
nem inílrucçao d^ElRey. Lopo Vaz ficou
enfadado , e fem refponder coufa alguma ,
foi entrando pelo rio acima até furgir de-
fronte da Cidade. Alli lhe tornaram a fa-
zer o mefmo requerimento , e elle mandou
outro á Cidade , no que íè gaitou grande
efpaço , refumindo-fe os da Cidade em lhe
não abrirem as portas. Os Fidalgos , e Ca-
pitães da companhia de Lopo Vaz vendo
a coufa daquella feição , receando hum def-
aítre , commettêram aquelle negocio a Chri-
ftovão de Soufa por fer hum Fidalgo mui-
to refpeitado de todos , e defembarcando
em terra , foi-fe ver com a Cidade , e com
o Capitão 5 que eílavam poltos em armas ,
edetal maneira osperfuadio^ que os abran-
dou ;
Década IV. Liv. I. Cap. III. 21
dou 5 e confentíram na entrada de Lopo Vaz ^
que logo deíembarcou , e le apoíentou cm
terra , e começou a correr com as couías
do governo, E porque fe receou que vindo
Pêro Mafcarenhas foííe Francifco de Sá da
fua parcialidade , determinou de o faílar de
íi , e tratou logo cora elle de o mandar a
Sunda a fazer a fortaleza que ElRey man-
dava ; e porque achou também cartas da-
quelle Rey , em que pedia ao Governador
da índia , que mandaíTe fazer huma forta*»
leza naquelle feu porto, que lhe daria pêra
ella íltio 5 e rodo o neceíTario , porque de-
fejava muito de ter commercio , e amizade
com os Portuguezes ; Francifco de Sá fol-
gou miuito com a jornada , pois viera do
Reyno aíUnado pêra ella , e aííi fez feus
apontamentos , concedendo-lhe o Governa-
dor tudo o que lhe pedio , que foi hum ga-
leão , huma náo , duas caravelas , duas ga-
leotas , cinco fuílas , e quatrocentos homens.
Com efta Armada começou a correr Fran-
cifco de Sá 5 e Lopo Vaz deo a capitania
de Goa a António da Silveira , que depois
teve aquelle efpantofo cerco de Dio , o qual
antes de Lopo Vaz fucceder no governo,
o tinha defpoíado com huma filha Ria por
palavras de futuro. E porque D. Jorge de
Menezes filho de D. Rodrigo de Menezes
eftava provido pelo Governador D. Henrií-
que
:i2 ÁSIA DE Diogo de Couto
que da capitania de Maluco , o defpachou
pêra ir entrar nella , dando-lhe dous navios
com cem homens , e muitos provimentos ,
e com gUq pêra Capitão mór daquelle Ar-
chipéiago Simão de Soufa Galvão íilho de
Duarte Galvão. E por ter já recado que Jor-
ge Cabral era partido pêra Malaca , c que
ficavam aquelles canaes das Ilhas de Maldi-
va fem guarda , defpachou com muita preí^
fa Martim AíFonfo de Mello Juíarte , a que
deo huma Armada de cinco fuílas , c huma
caravela em que clle hia. Todos eíles Ca-
pitães defpedio em Março , indo D. Jorge
de baixo da capitania de Francifco de Sá
até Malaca. Partidas eftas Armadas , vendo-
fe o Governador vago , determinou de ir a
Ormuz a temperar as coufas de Diogo de
-Mello com o guazil Rax Xarafo , por lhe
virem cartas que o tinha prezo , avexado ,
^ tyrannizado íobre o que já o Governador
D. Henrique lhe tinha efcrito , fem lhe dar
nada de fuás cartas , nem fe moderar em fua
condição , por fer hum Fidalgo forte de na-
tureza. Tinha prezo o guazil em huma aC-
periííima prizão debaixo de huma efcada ,
cm tempo das calmas de Ormux , (cuja quen-
tura fe ha coufa na terra que fe pofla com-
parar a huma femelhança do inferno, aquel-
la fó o he) não lhe dando de comer fenão
muito rnal , e de beber peior. O que lhe
não
Década IV. Liv. I. Cap. III. 25
mo perdoaram os pragiicntos da índia , em
hans porquês que íizeraai , fallando hum com
Diogo de Mello , fobre o que Xarafo , e
ElRey de Ormuz eíbrevêram muitas cartas
ao Governador D. Henrique , que foram
aquella mouçao ter ás mãos de Lopo Vaz.
E parecendo-ihe que lhe convinha acudir
áquellas coufas primeiro que vieíTe Pêro Maf.
carenhas , porque o conhecia por homem
muito inteiro na jufliça , e que não havia
de foffrcr áquellas coufas a Diogo de Mel-
lo , que era feu tio irmão de fua mãi , de-
terminou de o ir fazer amigo com, o gua-
zii 5 e atalhar áquellas defordens. Eíla ida
poz em confelho dos Capitães , que lho en-
tranharam , lembrando-lhe que o Malavar.
eftava de guerra , e que fe fallava em galés
de Rumes , e que era neceíTario , fe foUem
as novas certas , tomarem-no em Goa , pê-
ra fe preparar contra ellas , e não fora da
índia , e em parte que não podia vir fenao
com monções , no que fe arrifcava a mui-
to ; mas fem embargo deftas razoes fe em-
barcou , deixando nomeado por Capitão mor
do mar a António de Miranda de Azevedo y
a quem deixou todos os navios de remo ,
e eile por fím de Março fe fez á vela , le-
vando a galé baftarda , de que era Capitão
D. Vafco de Lima , em que elle hia embar-
cado , e quatro galeões, de que eram Can
pi-
24 ÁSIA DE DíOGO DE CoUTo'
piráes D. Affonío de Menezes , Diogo da
Silveira , Manoel de Aí acedo , e Manoel de
Brito , defpachando prinieiro Cliriílovao de
Soufa pêra ir entrar na capitania de Chaul ,
de que era provido.
CAPITULO IV.
Do que acoute ceo a Eitor da Silveira no
ejlreito de Meca : e de como foi ter a
Maçuâ , e mandou bufcar D. P^odrigo
de Lima ao Prefte ^oao ; e do que
Ihefuccedeo 7ia viagem de Ormuz,
TVT A terceira Década de João de Barros
JL^ íe conta, como o Governador Dom
Henrique de Menezes primeiro que faleceí-
íè 5 defpcdio pêra o eíireito de Meca Eitor
da Silveira por Capitão mor de huma Ar-
mada groíTa 5 levando por regimento , que
foíTe eíperar as náos de Meca a monte de
Félix , e que alli efperaíTe por elle até mea-
do Março , (porque tinha elle determinado
ir áquelle eítreito por haver novas de galés.)
E que tardando elle até então , fe foíTe a
Maçuá efperar D. Rodrigo de Lima , que
eftava por Embaixador na Corte do Empe-
rador da Abaília , ao qual tinha efcrito que
efte Abril o mandaria bufcar , e depois de
o recolher fe foíTe invernar a Ormuz. Par-
tio Eitor da Silveira , e fem achar contraf-.
te
Década IV. Liv. I. Cap. IV. 25*
te chegou ao cabo de Gardafui , onde íe
deixou andar até meado Março , íem lhe
acontecer coula digna de cfcritura ; e ven-
do que o Governador tardava , por cumprir
com feu regimento fc fez á vela , e entran-
do as portas do eftreito , foi demandar a
Ilha de Daleça , onde chegou o primeiro
de Abril : dalii defpedio hum correio com
cartas a D. Rodrigo de Lima, em que lhe
fazia a faber de fua chegada , e de como o
efperava alli. Eíla carta mandou ao Capitão
de Arquico , pêra que lha déíTe , ou man-
daíTc. Eftava D. Rodrigo de Lima em Bar-
vá , onde havia pouco era chegado com
hum Embaixador do Emperador de Erhio-
pia chamado Zagazabo , o que tinha des-
pachado pêra ir a Portugal com cartas , e
prefentes pêra ElRey D. João , e pêra dal-
ii paflar a Roma em companhia do P. Fran-
ciíco Alvares , a quem vinha entregue pê-
ra o aprefentar a Sua Santidade pêra em feu
nome lhe dar obediência , como filho Ca^
tholico. Eítavam D. Rodrigo , e os mais
muito triftes receando houveíTe algum eílor-
vo ainda eíte anno pêra não ir a Armada
por elles , com.o o Governador lhe tinha
promettido , e dalli defpedíram. dous Portu-
guezes pêra eftarem no porto de Arquico
efperando a Armada , que havia de vir da
índia, pêra tanto que a viíTem lhe mandai
rem
^6 ÁSIA DE Diogo de Couto
rem recado. Eftando eftcs vigiando o mar,
chegaram áquelle porto humas náos dos
Mouros com grandes fcílas , e tangeres , dan-
do por novas que os Portuguezes eram to- i
dos mortos , e que tinham perdida a índia, fl
Com ellas novas que pela terra fe efpalhá- I
ram houve grandes alegrias , e alvoroços
entre os Mouros. Os Portuguezes que alli
eílavam tanto que viram as feílas , e ouvi-
ram as novas , com grande dor, e triíleza
de feus corações, fe partiram logo pêra Ba r-
vá , e as deram a D. Rodrigro de Lima.
Era efte dia do fabbado Santo vefpera de
Pafcoa , cm que todos eílavam mui alvoro-
çados pêra feílejarem a Reíiirreiçáo do Se-
nhor , e em ouvindo as novas aíli ficaram
cortados , que como homens pafmados nao
fabiam o que fizeiíem ; mas como já nao
havia outro remédio , fizeram feus difcur-
fos, affentando de fc tornarem pêra a Cor-
te do Preíle João , e alli acabarem fuás vi-
das , e bufcarem recolhimento , e quietação
conforme ao que lhes o tempo oíFereceíTe ;
nas como Deos NoíTo Senhor Pai de mi-
fericordia , e confolaçao via que feus fervos
andavam em feu ferviço naquella Chriftan-
dade tão efcondida ao Mundo , nao quiz
que fua triíleza duraíTe muito , e ordenou
que o dia de Pafcoa á noite , dia todo de
mercês fuás , lhes vieífem diíFerentes novas ,
que
Década IV. Liv. I. Cap. IV. 27
que foram fcr chegada a noíla Armada a
Maçuá , e logo apôs ellas chegaram as car-
tas de Eitor da Silveira , com o que todos
como doudos de alegria nao fabiam o que
fizeflem. D. Rodrigo quizera logo partir,
mas o P. Francifco Alvares lho impedio ,
dizendo , que pois Deos naquelle dia lhes
fizera huma tão aílinalada mercê , que efpe-
raíTem até paflarem aquelles dias de feíla ,
em que era razão deílem muitas graças ao
Altiílimo Deos , pois em tempo de tanta
mágoa j e dor (como tão pouco havia ti-
veram ) llies mandara novas tão alegres. Paí^
fada a Pafcoa , em que todos fe confeíTá-
ram , e commungáram com grandes alegrias
das almas , e dos corpos , logo fe puzeram
ao caminho hum dia que foi aos nove de
Abril , indo o Vifo-Rey de Barvá em fua
companhia com mil homens de mullas , e
alguns poucos de cavallo. Aquelle dia fo-
ram dormir a Darigil hum pouco duas lé-
guas de Barvá , alli fe coílumavam. ás fe-
gundas , e terças feiras ajuntar as cáfilas,
que haviam de ir pêra Arquico , por amor
dos alarves , que ha muitos por aquelle ca-
minho ; aqui fe ajuntaram dous mil homens ,
e todos juntos foram caminhando pêra Ar-
quico 5 que era quatorze léguas de jornada.
Neílc caminho gaíláram até o fabbado fe-
guinte, e chegando a Arquico, aponfentá-
ram-
i2 ÁSIA DE Diogo de Couto
ram-fe fóra por fer noite , porque quiz o
Vilb-Rey entrar com elles de dia , e enrre-
gallos ao Capitão mor. x\o outro dia che-
garam á praia , onde Eitor da Silveira os
recebeo com grandes feílas., falvas de arti-
Iheria , e com todos os inílrumentos de paz ,
e de guerra. O Vifo-Rey lhe entregou Dom
Rodrigo de Lima , e o Embaixador Zaga-
zabo 5 e todos os Portuguezes , e os prefen-
tes que levavam affi pêra o Governador , e
Rey de Portugal , como pêra o Summo , e
Santo Ponrifíce. Eitor da Silveira defpedio-
fe logo do Vifo-Re}" , que mandou dar á
Armada cincoenta vaccas , muitos carneiros ,
gallinhas , e outros mantimentos, e a oito
de Abril deram á veia , e foram feguindo
fua viagem , e ao primeiro de Maio chega-
ram á Ilha de Camarão pêra fazerem agua-
da. Alli defenterrou o P. Francifco Alvares
muito fecretamente a oiTada de Duarte Gal-
vão , que elle mefmo tinha enterrada , co-
mo na terceira Década fe diíTe , e a embar-
cou no galeão em que hia , com tenção de
a levar ao Reyno ; dalli fe fizeram á vela
para irem invernar a Ormuz , como leva-
vam por regimento ; e deixallos-liemos em
fua viagem , por continuarmos com a do
Governador. Partido logo Lopo Vaz de Sam-
paio de Goa , como atrás dilTemos , foi atra-
veíTando o golfo de.Ormuz, em que achou
; gran-
Década IV. Liv. I. Cap. IV. 29
grandes calmarias , que foram caufa de gai-
tar muitos dias , e lhe morrer muita gente ,
e entrando-lhe o tempo , foi ferrar o porto
de Calayate , cujo Xeque eftava alevantado
contra os Portuguezes , por mandado d'El-
Rey de Ormuz , e de Rax Xarrafo , porque
pelas avexaçoes que padeceo , e recebiam de
Diogo de Mello , efcrevêram a toda aquel-
la coíla que fe levantaíTem contra os Portu-
guezes , que foi quaíi outra como a que o
mefmo Xarrafo fez em tempo do Governa-
dor D. Duarte de Menezes , (como na ter-
ceira Década de João de Barros fe conta. )
Lopo Vaz tanto que foube do negocio , pe-
20u-lhe em eftremo das defordens de Dio-
go de Mello , e tratou de quietar o Xeque ,
o que fez com lhe affirmar que a nenhuma
outra coufa hia a Ormuz , mais que a fol-
tar Xarrafo , ca lhe fazer juftiça , e pêra
caftigar Diogo de Mello, fe o mereceíle. Com
ifto fe compoz o Xeque , e fe quietou , man-
dando refrefcos ao Governador. Fazendo-
íè dalli á vela 5 chegando á aguada deTei-
ve , achou o galeão de Francifco de Men-
doça , hum dos Capitães da conferva de Ei-
tor da Silveira , que com tempo fe apartou
da Armada : . delle foube as novas de Dom
Rodrigo de Lima , e do Em.baixador , que
o Emperador da Ethiopia mandava a Por-
tugal ; do que levou eílranho contentamen-
to.
30 ÁSIA DE Diogo de Couto
to , c tomarxdo o galeão comíigo , foi ter
a Mafcare , que também eílava alevantado ,
e trabalhou por quietar o Xeque como fez ,
e deixando tudo pacifico chegou a Ormuz ,
onde foi mui bem recebido do Capitão , e
fe agazalhou na fortaleza. A primeira cou-
fa que fez foi mandar foltar Rax Xarrafo ,
e levallo diante de íi , e fazendo-Ihe muitas
honras , Uiq diíTe , que elle era alli vindo a
lhe fazer juíHça , que a requereíTe contra
Diogo de Mello , que fem embargo de fer
feu tio , lha havia de fazer muito inteiramen-
te. O Governador foidahi a três dias viíitar
ElRey de Ormuz , aíiirmando-iJie que não hia
áquella fortaleza a mais que a fazer juftiça
ao Guazil , e a caíligar Diogo de Mello.
O Guazil tanto que foube que o Governa-
dor era fobrinho do Capitão , e que o pu-
nha á cabeceira da fua meza , houve que lhe
não faria juftiça em nada , e fazendo da ne-
ceílídade virtude, diíTe ao Governador a fe-
gunda vez que o vifitou , que elle não que-
ria coufa alguma de Diogo de Mello , que
lhe pedia o fizeíTe amigo com elle: o Go-
vernador chamou Diogo de Mello , e o re-
conciliou com o Guazil , e elle llie pedio
muitos perdoes , e teve com elle muitos com-»
primentos.
CA-
Decadà IV. Liv. I. 3X
CAPITULO V.
Do que aconteceo a Eitor da Silveira nã
viagem até Ormuz : e de como o Go-
vernador recebeo o Embaixador
do Frejle 'João.
PArtido Eitor da Silveira da Ilha de Ca-»
iTjarão , foi navegando dez dias com
vento em popa até fahirem do eílreito pêra
fora , e na paragem de Adem deo hum tem-
po tão rijo , e forte 5 que não puderam fof-
frer as velas , e com fós os papafígos foram
correndo á vontade dos ventos ; e a fegun-
da noite, que foi de grandiílima farraçao ,
fe apartou toda a Armada , e foi cada hum
correndo pêra fua parte a Deos mifericor-
dia 5 e quafi alagados. Durou-lhe eíle tra-
balho quatro dias , nos quaes o galeão São
Leão perdeo o batel com hum grumete Fran-
cez 5 não dormindo em todos elles peíToa
alguma , porque não largaram os aldropes
das bombas das mãos por irem alagados,
edefapparelhados de feição, que quaíi hiam
defconfiados ; mas Deos , que fempre acode
nas mores neceííidades , os encaminhou até
embocarem o eílreito da Períia , do cabo
de lafques pêra dentro , e o primeiro que
foi tomar a aguada deTeive foi Franciíco
de Mendofa , que alli tinha chegado pou-
cos
'52 ÁSIA DE Diogo de Couto
cos ciias antes do Governador , que alli o
achou j como atrás diíTcmos. Os mais navios
tirando o Capitão mor foram tomar Mafca-
te a vinte e oito de Maio. O Capitão mor
com quem hia embarcado D. Rodrigo de
Lima , e o Embaixador Abexi , foi corren-
do tempo com o mefmo trabalho que os
outros , governado-fe tao m.al , que não po-
dendo tomar o eílreito da Períia , foi cor-
rendo com os ponentes pêra a cofta da ín-
dia com tenção de tom.ar terra aonde pu-
deíTe ; e quando cuidou que ferraíTe a cofta
de Chaul , achou-fe na enfeada de Cambaya
já com o inverno cerrado , pelo que lhe foi
forçado tornar a voltar pêra Ormuz , o que
fez com muito trabalho de todos , bordean-
do de huma parte pêra a outra , com os
mantimentos já gaílados , e a agua quaíi de
todo , porque com o trapear do galeão fe
lhe abriram as vafilhas *, e lendo já entrada
de Junho fem efperariÇa de poderem tomar
porto , houveram-fe todos por perdidos. Ei-
tor da Silveira fem nioftrar hum ponto de
deíconíiança , animava , e confolava a to-
dos , fendo o que dormia menos , e comia
pcior 5 e o primeiro que ferrava do traba-
lho ; e todavia vendo-fe tão apertado , to-
mou parecer com os officiaes íobre o que
fariam , e affentáram que já fe não podia ir
demandar fenao Ormuz ^ porque como o
in-
Década IV. Liv. I. Ca?. IV. 33
inverno era entrado , e os Sudiieíles curfa-
vam , ainda que foífe com trabalho , que
melhor era marear pêra lá. Com iílo man-
dou recolher todo o mantimento que havia
na náo , e agua , ( que tudo era bem pou-
co 5 ) dentro na fua camará , e começou a re-
partir iíto com grande tento , acudindo aos
mais neceílitados ; mas como tudo era pou-
co, e a gente muita, logo fe lhe acabou,
ficando fem nenhum remédio , nem efperan-
ças delle , fenao as de Decs , em que fem-
pre foram muito feguros , e alFi fem comer,
nem beber navegaram três dias , fendo Ei-
tor da Silveira , e D. Rodrigo de Lima os
que neíles trabalhos fe mioítráram fempre
muito alegres a todos j porque como todos
traziam os olhos nelles , era-ihes aíFi necefr
lario , porque com iíTo fe animavam , e con-
tinuavam no trabalho , porque fe fora dou-
tra maneira , largaram tudo , e fem dúvida
ih perderam. Mas Eitor da Silveira com hum
animo muito grande , e com hum primor
nunca ufado, procedeo neíla viagem de fei-
ção , que confundia a todos, porque defque
recolheo na fua camará a agua , e o manti-
mento , nunca mais entrou nella , e fe aga-
zalhou na tolda por dar exemplo a todos ,
vifitando duas vezes no dia os doentes , que
eram muitos , dando-lhes em quanto houve
ijue , alguma coufa pouca , não tomando
Cpuío» Tom» L P* L C nun-
34 ÁSIA DE Diogo de Couto
nunca mais pêra fi ; e certo que era efte Fi-
dalgo de tanta bondade , que mais fentia ver
aquclles enfermos , íèm ter com que lhes foc-
correr , que o rifco , e perigo em que hia.
Indo aííi neíla delconfolaçâo , aos fete dias
do mez de Junho á tarde houveram vifta de
Malcare , porque Deos os encaminhou pelo
eílrciro dentro iem o elJcs fabcrem , e já a
cfte tempo liiam tao fracos , e debilitados ,
que náo podiam comíigo. E porque o ven-
to era efcaíío-, e não puderam ferrar o por-
to , começaram a bordear já com tanto alen-
to , que os doentes que eílavam para mor-
rer, parecia que refu feita vam , e acudiam a
ver a terra. Foi o galeão logo vifto de duas
fuílas , que andavam alli de Armada , que
acudiram a elle , e entrando dentro os que
andavam nellas , foram feftejados de rodos ,
conio homens que lhes traziam o remédio ;
e vendo o deftroço , e miferia daquelle ga- .
Jeão 5 ficaram palmados , e mandaram levar !
toda a agua que traziam , e algumas con-
fervas , e bifcouto , que repartiram por to-
dos , e com muita preíía fe tornaram a Maf-
cate , e carregando de agua , e mantimen-
tos , voltaram o mefmo dia pêra o galeão , ;
e tudo fe repartio por todos. Aquella noi-
te foi pêra elles a melhor , e mais alegre
da vida , porque os ais , as dores , os ge-
midos p e fufpiros paliados fe converteram
em
Década IV. Liv. I. Cap. IV. 3?
cm folias , feílas , e alegrias , em que pafla-
ram toda a noite. Ao outro dia acudiram
de terra muitos batéis eíquipados , e toman-
do o galeão á toa o mettêram em Mafca-
te , onde acharam alguns navios de íiia com-
panliia , porque os mais eram paíTados a
Ormuz. Aqui fe deixou Eitor da Silveira
ficar alguns dias , em quanto os doentes re-
frelcáram , e convalecêram de todo ; e co-
mo fe puderam embarcar , deo á vela pêra
Ormuz 5 e foi furgir no poufo defronte da
fortaleza. O Governador foi logo avifado
de fua chegada, e mandou-os vifitar, e pe-
dir que fenão defembarcaííem fenáo ao ou-
tro dia , mandando-lhes defpejar em terra
cafas pêra todos , e armar , e negociar as
do Embaixador do Abexi , e prover de to-
das as coufas neceíTarias. Ao outro dia pe-
la manha defembarcáram todos , levando Ei-
tor da Silveira , e D. Rodrigo de Lima o
Embaixador Zagazabo no meio , cada hum
por lua mao , desfazendo-fe a fortaleza , e
a Armada toda em bombardadas , e em ef-
trondos de alegria. E entrados na fortale-
za 5 foram á Igreja a dar graças a Deos
NoíTo Senhor: alli foi o Governador buf-
callos , e os abraçou a todos com grandes
nioílras de prazer , e alegria , alli eftiveram
hum pouco até que os mandou recolher pê-
ra fuás cafas , e logo mandou a Eitor da
C ii Sil-
36 ÁSIA DE Diogo de Couto
Silveira , e a D. Rodrigo de Lima , e ao
Embaixador i\bexi duzentos cruzados a ca-
da hum , e ao P. Francifco Alvares cento.
Ao outro dia foram todos á fortaleza , e o
Governador os efperou na porra da Igreja ,
eeftiveram a huniaMiíTa, que fe diíTe com
muita folemnidade. Acabada elia , foram-fe
pêra os apoíentos do Governador , levando
D. Rodrigo fempre pela mão ao Embaixa-
dor 5 que hia acompanhado de alguns Fra-
des Abexis , e os prefentes em mãos de feus
criados , que o Embaixador aprefemou ao
Governador , e lhe deo as cartas. O prefen-
te pêra o Governador era huma roupa de
feda , com cinco chapas de ouro diante , e
outras cinco detrás , e em cada hombro hu-
ma , e todas feriam do tamanho da palma
da mão , muito formo fas , e lavradas , a car-
ta era em refpoíla da que lhe efcreveo o
Governador Diogo Lopes de Siqueira , que
nós temos em noíTo poder , e por fer mui-
to comprida deixamios de a relatar. Lopo
Vaz efiimou muito o prefente ^ e teve com
G Emibaixador grajides cumprimentos , e
mandou aos Officiacs d'ElRey que correí-
fem dalli por diante com a defpeza de fua
cafa , pêra a qual aíFinou hum tanto cada
dia; e aíFi mefmo mandou pagar geralmen-
te a toda a gente da Armada , e dar-lhes
miezas. Aqui os deixaremos , porque he ne-
ceí-
Década IV. Liv. I. Cap. VI. 37
ceíTario continuarmos com as couías que fuc-
cedêram na índia , depois do Governador
partir pêra Ormuz.
CAPITULO VI.
J)e como Affonfo Mexia mandou a Malaca
chamar o Governador Pêro Majcarenhas :
e do que elle fez depois que fouhe as
novas : e do que aconteceo 72a jorna-
da a Martim Affonfo Jufarte , e
a Francifco de Sá,
PArtido Lopo Vaz de Sampaio de Co-
chim , tratou AfFonfo Mexia de mandar
avilar a Pêro Mafcarenhas de fua fuccef-
são 5 e mandou negociar o galeão de que
António da Silva de Menezes era Capitão ,
o qual Lopo Vaz deixou em companhia de
D.Jorge Tello de Armada na cofta do Ma-
lavar , e entregou a António da Silva o traf-
lado dos autos , papeis , e fucceísÔes pêra
as dar ao Governador Pêro Mafcarenhas , a
quem efcreveo que fe foíTe logo pêra a ín-
dia. Eíle galeão deo á vela meado Março ,
e foi feguindo fua viagem , a quem logo
tornaremos , porque he neceífario continuar
com os Capitães que Lopo Vaz defpedio
pêra fora , e feja primeiro com Martim
Aífonfo de Mello Jufarte. Partido eftc Ca-
pitão de Goa , foi feguindo fua viagem até
;. ;.^ che-
38 ÁSIA DE Diogo de Couto
chegar as Ilhas de Maldiva , e cllc fe poz
em hum daquelles canaes mais ordinário das
náos 5 e mandou os navios de remo tomar
outro; e em Março foi dar com elle huma
uáo de Rumes , que hia de Tanacari pêra
Meca j que levava trezentos hom.ens bran-
cos de peleja 5 e muito bem artilhada, e pe-
trechada de tudo , como aquella que hia
mui rica , e profpera. Martim Aítbnfo tan-
to que houve viíla delia , levou ancora , e
deo o traquete 5 pondo-fe em armas, e pre-
parando íua artilheria mui bem. Tanto que
chegou a tiro , defcarregou nella fua muni-
ção , arrombando-a por algumas partes , e lo-
go a foi inveílir , e lhe lançou feus arpéos.
Levava Martim AíFonfo cincoenta bons fol-
dados a fora os Officiaes. Ferrada a náo ,
começou-fe fobre a entrada delia huma mui-
to cruel batalha , em que pelejaram muito
bem de ambas as partes ; e ainda que dos
Mouros cahiam muitos feridos dos golpes dos
noíTos, 5 eram elles tantos , que onde der-
rubavam dous 5 íe punham logo quatro. Mar-
tim Affonfo como era m.uito cavalleiro , com
ver a deíigualdade que havia , determinou
ou de morrer , ou de render a náo , fazen-
do por feu braço mui grandes cavallcrias.
Os feus animados com o que lhe viam fazer ,
trabalhavami pelo imitar , lançando entre os
Mouros muitas paneilas de pólvora , com
que
Década IV. Liv. I. Cap. VI. 39
que os abrazavam , mas não largavam os lu-
gares. E como a iiáo era grande , podero-
fa , e com tanta gente , por muito que os
noíTos trabalharam , a não puderam entrar ,
ficando aíli abordados todo aquelle dia , e
noite j pelejando de ambas as partes fem to-
marem defcanço. Ao outro dia , poílo que
os noíTos eílavam canfados , e a mor parte
feridos , tanto trabalharam , tão altas proe-
zas fizeram , que com grande damno dos
inimigos entraram a náo , e mettêram todos -
os delia a efpada , fem lhe ficar algum. Ren-
dida a náo 5 ( não fem cuílo dos noílbs , de
que também morreram alguns , ) lançaram
ao mar os mortos , e furgíram com a náo
que eilava cheia de fazendas. Alli fe deixa-
ram eílar até meado de Abril que deram á ve-
la pêra Goa , levando a náo comfigo , e che-
gados áquella Cidade foi dcícarregada , e
vendida a fazenda , e deram as partes aos
foldados 5 ficando huma grande fomma a
ElRey. Agora continuaremos com Jorge Ca-
bral , que (como diíTcmos) partio das Ilhas
de Maldiva pêra Malaca a dar as novas a
Pêro Mafcarenhas de fua fuccefsao j e indo
feguindo fua jornada com bom tempo, che-
gou áquella fortaleza , e foi muito bem re-
cebido de Pêro Mafcarenhas , a quem óqo
as novas, que elle eftimou muito, por ver
a conta que ElRey tinha com feus mereci-
men-
40 ÁSIA DE Diogo de Couto
mentos, e promettco a Jorge Cabral aquel-
Ja capitania de ai viçaras. E porque não ti-
nha papeis , nem cartas do Veador da fa-
zenda , nao tomou titulo de Governador ,
e foi correndo com o cargo de fua capita-
nia 5 efperando que lhe vielfe tudo na mon-
ção , o que não tardou ; porque hum mez
depois da chegada de Jorge Cabral furgio
naquelle porto o galeão de António da Sil-
va , e deíembarcando deo a Pcro Mafcare-
nhas as cartas , e papeis que levava , man-
dando-lhc notificar que foíTe logo tomar en-
trega da governança da índia. Com eftes
papeis fe ajuntaram todos os Fidalgos , Ca-
pitães , Cidadoes , e Officiaes de juftiça , e
fazenda , e logo por todos foi havido por
Governador da índia , fazendo-fe diíTo hum
termo , cm que todos fc aííináram. O Gover-
nador Pêro Mafcarenhas começou a correr
como Governador , e determinou de íe ir
a efperar os levantes aos ilheos de Pulopuar
pêra ver fe em Outubro podia paíTar á ín-
dia. E poilo que teve contrariedades da par-
te dos Pilotos 5 todavia entrada de Agoílo
fe embarcou no galeão em que foi António
da Silva , e metteo de poíTe daquella capi-
tania a Jorge Cabral , ao que veio com em-
bargos Aires da Cunha; porque, conforme
ao Regimento que alli deixou Aífonfo d' Al-
boquerque, a clle pertencia aquelia capita-
nia
I
Década IV. Liv. I. Cap. VI. 41
iiía por Capitão mí5r daquclle mar , o que
ElRey depois confirmou por hum Alvará,
pelo qual Nuno Vaz Pereira por morte de
Jorge de Brito houve fentença contra An-
tónio Pacheco que era Alcaide mór. A tu-
do refpondeo Pêro Malbarenhas Governa-
dor , que elle não quebrava Regimentos ,
que aquella fortaleza não vagava por fua
tnorte , fenão por fucceder na governança
da índia , e que o íeu tempo que lhe fal-
tava por fervir o podia dar a quem quizeC-
fe : fobre iílo proteílou Aires da Cunha por
feus ordenados contra elle. Partido o Go-
vernador de Malaca , foi tomar os iíheos
de Pulopuar, onde lurgio pêra efperar pe-
los levantes ; e eítando aqui , lhe deo hum
tempo tão groíFo que eíleve perdido ; e lhe
foi forçado fazer-fe á vela pêra Alalaca , aon-
de chegou com o maílo quebrado por três
partes. Aqui achou Francifco de Sá , e Dom
Jorge de Menezes , que por acharem tem-
pos contrários , tardaram até então , os quaes
o receberam como a Governador da índia ,
dando-lhe a obediência. E iábendo elle que
D.Jorge levava a capitania de Maluco^ por
lha ter dada o Governador , D. Henrique
lha confirmou , e o defpachou , dando-lhe
mais hum navio, e o defpedio com Regi^
mento que fe foíTe por via de Borneo , por
fer a jornada mais curta , que pela Jaoa ,
por
42 ÁSIA DE Diogo de Couto
por onde era forçado invernar em Amboi-
iio. Simão de Soula Galvão , que iiia pêra
Capitão mor do mar de Maluco , deixou-fe
ficar em Malaca , aíii por faber alli que o
que levava era coufa pouca , como porque
Pêro Mafcarenhas tratava de ir Ibbre Bin-
tão , em quanto Francifco de Sá alli eílava
com faa Armada , por fer muito neceíTario
pêra a quietação daquella fortaleza tirar
dalli aquelle inimigo : pelo que tinha man-
dado preparar muitas coufas pêra aquelia jor-
nada , de que adiante daremos razão.
CAPITULO VIL
De como Eitor da Silveira partio de Or-
muz a efperar as nãos de Meca : e de co-
?no Melique /Iz Capitão de Dio tratou de
dar aquelia fortaleza aos Portuguezes. Do
fundamento daquella Ilha , e do tempo em
que os Mouros conquiftàram aquelle i\ey no ^
e do que pajfou Eitor da Silveira com Me-
lique Az.
DEixámos o Governador Lopo Vaz de
Sampaio invernando em Ormuz , on-
de proveo em muitas coufas daquelle Rey-
no ; e tanto que fe acabou o mez de AgoC-
to , defpedio Eitor da Silveira por Capitão
mor de quatro galeões , e duas caravelas pe-
ja ir efperar as náos que haviam de ir de
Década IV. Liv. L Cap. VIL 43
I Meca pcra Cambayn , que íèmpre hiam de-
mandar á ponta de Dio , onde lhe deo por
Regimento que efperaíTc por ellas. Os Ca-
pitães de fua companhia eram Franciíco de
Mendoça , Manoel de Brito , e Manoel de
Macedo , que hiam em galeões : os das ca-
ravelas não achámos os nomes. Partido Ei-
tor davSilveira de Ormuz, logo o Governa-
dor deo á vela apôs elle pêra Goa. Eitor
da Silveira chegando á ponta de Dio , dei-
xou-fe alli andar efperando pelas náos , e
liuns , e outros deixaremos por hum pouco,
porque he neceíTario darmos razão das cou-
ías que nefte rempo fuccedéram no Rcyno
de Cambaya , que fazem ao fio da noíTa hií^
toria y e primeiro que tudo , diremos de fua
origem, , e fundamento , poilo que João de
Barros o tenha muito bem feito na fua ter-
ceira Década. Mas porque algumas coufas
lhe íicáram , as quaes nós alcançcámos de mais
perto 5 que nao ferao de pouco goíro pêra
os curiofos , as tornaremos a recitar , por-
que com o favor Divino havemos de ir con-
tinuando com todos os Reys , que foram, fuc-
cedendo nelle até vir a poder de Magores.
Pelo que he de faber , que efte Reyno , que
chamamos de Cambaya , he o do Guzara-
te , que os mais dos Geógrafos lançam er-
radamente do Indo pêra fora , como em ou-
tra parte moílraremos. Efte Reyno foi fem-
pre
44 ÁSIA DE Diogo de Couto
p-e povoado de dous géneros de Gentios ,
Guzarates , eBaneanes, todos muito fuper-
fliciofos , coino em Teu lugar fe verá , quan-
do fallarmos de toda eíla gentilidade da ín-
dia. Os Guzarates rodos são dados á mecâ-
nica , em que fe eílremáram de todos os do
Oriente , cujas louçainhas já em tempo dos
Romanos eram muito eftimadas , as quaes
hiam ter a elies por via do mar Roxo, co-
mo fe vê em Arriano Author Grego no tra-
tado que fez fobre aquella navegação , no
qual nomea muitas , e diverfas fortes de rou-
pas , como sáo , ganife , monoclie , fagma-
togene , milcciíini , que diz ferem muito fi-
nas , e de algodão : pelo que quanto a nós
parece , que eram os canequis , bofetás , bei-
rames , fabagagis , e outras , que fe acham
efcritas nos livros das leis dos Romanos ,
dos quaes coftumavam a pagar grandes di-
reitos , e ainda hoje entre nós , com aquel-
le Reyno eftar deílruido , pelas mudanças
que nelle houve , a fineza de fuás roupas
de muitas fortes , a delicadeza de fuás obras
são tidas em mais perfeição que todas as da
índia. OsBaneanes sao todos dados á mer-
cancia 5 em que também precederam a to-
dos por fua grande habilidade , e agudeza ,
pela qual , e per outras partes que nelles fe
notam , prefumem os Theologos Chriílãos
da índia, que defcendem de algum dos tri-
bus
y í
1
Década IV. Liv. I. Cap. VII. 45*
bus de Ifrael , que sao defaparecidos ; e ain-
da mais o parecem no grande eftudo , e cui-
dado que todos põem em enganar os Chrií^
tãos 5 como coufa que tem por preceito. Am-
bas eílas naç6es de gentes sao tão fraquií^
limas , e aíFeminadas , que não fazem dilFe-
rença a mulJieres , m,ais que nas barbas. Vi-
veram eftes homens muitas centenas de an-
nos fem fentirem jugo alheio até quaíi os
de noíTa Redempção de cento , que defcêram
deíTes defertos debaixo do Norte hum gran-
de enxame de Gentios repartidos em tri-
bus 5 huns Magores , outros Tártaros , ou-
tros Chacatais , e outros Resbutos , que vie-
ram conquiílando tudo o que jaz do Cau-
cafo pêra baixo até efte Reyno de Cambaya ,
repartindo- íe eftes tribus por eftas Provincias ,
ficando-as lenhoreando , e aqueIJas do Aga-
ra 5 Mandou , e outras por derredor ficaram
em poder de Magores , cujos Reys as fe-
nhoreáram muitos annos , e ainda hoje na
Cidade do Mandou lé vem três , ou qua-
tro fepulturas de Reys que alli reinaram ,
cujos letreiros dizem lerem Magores. E ain-
da fe prefume mais , que eftes Magores fo-
ram ienhores de toda a índia até o mariti-
mo delia , onde ainda hoje fe vem duas for-
mofas Cidades fundadas porelles, huma na
cofta de Dio, e outra na do Canará , cha-
madas Mangalor ^ cujo verdadeiro nome he
Mon-
46 ÁSIA DE Diogo de Couto
Mongulor , porque aíll fe chamam eítas gen-
tes , e não Magores ; e na da coíla do Ca-
nará íe vem também fepulturas antiquiílimas ,
por cujos letreiros fe vê que jazem alli Reys
Magores . ícgundo nos affirmáram alguns
Canarás doutos , e antigos. Depois foi efte
' Reyno Guzarate lenhoreado de Resbutos ,
homens muito dados ás armas , mas gran-
des ladroes , e tyrannos. Eíles parece que tira-
ram efte Reyno das mãos dos Magores , e
repartiram todas aquellas Provincias entre
íi 5 tomando as cabeças o titulo de Raiáz ,
que he o mefmo que Governadores. Eftes
ficaram íenhores de todo o Induftao até mui
perto dos annos mil e trezentos , que tor-
nou a fortuna a defandar eíla roda , (como
tem feito em. todas as Monarquias . e não
poderão deixar de o fazer em quanto du-
rar o Mundo , por fer naturalmente variá-
vel , e inconílanre.) Vieram todos eftes Raiáz
a ferem conquiílados de hum Rey do Dely
chamado Soltao Nofaradi , que fe alevan-
tou no Mundo quafi cem annos primeií-Q
que ogrãoTamurlang , e foi maior que el-
le , aíli em forças , como em eftados , por-
que veio a fenhorear defdo rio índio até o
Gango 5 e tem mais de quarenta gráos de
latitud pêra o Norte. Neííe Reyno do Gu-
zarate deixou hum Governador , e em to-
dos os do Decaii outro , de quem em feii
lu-
Década IV. Liv. I. Cap. VIL 47
lugar fallaremos, e recolhido pêra oDely,
falcceo em poucos tempos. Tanto que lua
morte foi íabida , Jogo fe lhe rebelaram to-
dos os Eftados 5 e Jevantáram-fe com elles
os Capitães tomando títulos de Reys : efte
do Guzarate fe intitulou Soltao Maamed ,
que foi homem valerofo , efoube-fe fuílen-
tar naquelle império , deixando-o a feu fi-
lho Daudarcan muito engrandecido. Efte
Daudarcan nao foi de menos animo que feu
pai 5 e engrandeceo em feu Reyno tudo o
que pode , e foi o que edificou a Cidade
de Dio naquella Ilha , que antigamente era
habitada de pefcadores : tendo aííi niílo , co-
jno em tudo o mais a que depois chegou
a mefma fortuna que a Cidade de Veneza,
tão pequena em feu principio , tamanha de-
pois em grandeza , riqueza , e poder. Rei-
nou efte Rey muitos annos , e iuccedeo-lhe
feu filho Soltão Mahamede , que havia já
mais de quarenta annos que reinava , quan-
do aquelle valerofo Capitão Vafco da Ga-
ma delcubrio a índia. Efte foi o que deo
aquella Ilha a Melique Az , (como fe vê
na terceira Década de João de Barros.) Por
fua morte herdou o Reyno feu filho Amo-
dofar , que teve muitos filhos , e o primo-
génito fe chamou Soltan Bador, e não Ba-
dur 5 como as hiftorias da índia lhe cha-
mam. Eíle fendo ainda moça, ou por di-
48 ÁSIA DE Diogo de Coiíto
zercm a fcu pai os Aílrologos , que em po-
der do filho mais velho le perderia aquelle
Reyno , ou (o que parece mais certo) que
por defejar de o dar ao outro filho mais
moço , a que eílava afeiçoado , parece que
moílrava má vontade no Bador , que ou por-
que foíle avilado diílo, ou porque entendeí-
fe no pai que Ihedefeiava a morte, furtou-
Ihe o corpo , efoi-íè por eíTe Induítao acima
em trajos de peregrino, a que clles chamam
Calandar , e aíTi andou muitos annos apren-
dendo diíFerentes línguas, vendo, e notan-
do novos ritos ^ e coftumes , e coulas muito
novas , e peregrinas. Em quanto ellc aíli an-
dou faleceo o pai , e fuccedeo no Reyno o
irmão a que o pai defejava de o dar , que
durou pouco , e deixou o Reyno ao outro
irmáo mais moço , a que não ioubemos os
nomes. Correndo as novas por eíTe Induf-
tão da morte de Pvlodofar , chegaram ao
Bador , que logo voltou pcra vir requerer
o feu Pveyno , e aíli em trajos de Calandar,
dizem , que entrou na Corte do Amadabá ,
onde eílava ainda fua mai viva , e o Rey
feu filho, que era ainda mancebo; efem le
dar a conhecer a peíToa alguma , entrou com
a mai , c fc lhe dcfcubrio , pedindo-lhe que
quizeíle ordenar com que houveííe o feu
Reyno. A Raynha (pode muito bem fer
que não foffe fua mãi, fenao fua madrafta,
e que
Década IV. Liv. I. Cap. VIL 49
€ que os Guzarates que ifto contâo fe em-
barníTcin) IhediíTe, que fe fofle , porque fe
feu irmão foubeífc delle , que o mandaria
matar , do que nós inferimos que eila feria
mai do Rey , e nao do Bador. Elle vendo
feu defengano , foi-fe pêra o Rey do Man-
dou 5 e fe llie defcubrio , pcdindo-ihe aju-
da , e favor pêra cobrar feu Rcyno. E co-
mo os grandes do Mundo nenhuma coufa
mais os move , que miferias de hum Prin-
cipe deílerrado , prometteo-lhe rodo o favor
até ir em peífoa ajudallo ; e pêra iíTo foli-
citou alguns Reys vizinhos , que fe ajuntá-
r^ii com elle com grande poder. Alguns
Bfcritores noíTos dizem , que o Bador que
fe fora ver com a Raynha de Chitor , que
fecliamava Crementi , que havia pouco viu-
vara , e lhe ficara Imm filho menino , em
cujo lugar ella governava aquelle Reyno ,
e que ella fora a authora da liga com o
Rey do Mandou , e outros pêra reftituirem
Bador no feu Reyno , no que fe enganaram ,
antes o mor inimigo que efta fenhora teve
foi o Bador , porque depois de eítar quie-
to no Reyno de Cambaya , lhe foi tomar
o feu , como na quinta Década diremos.
Em. fím juntos aquelíesRcys com o Bador,
que também, folicitou por cartas alguns Se-
nhores de Cambaya pêra ferem de fua par-»
te 5 foi centra o irmão , e entrou conquif-
Couto.Tom.LP.L D tan-
5'0 ÁSIA DE Diogo DE Couto
tando aquelle Reyno , e íliliindo-lhc o ir-
mão ao encontro em huma batalha eampal ,
foi morto , e desbaratado , e o Bador fe
apoderou daquelle Reyno. Succedeo iílo no
anno de vinte e cinco atrás paíTado. O Ba-
dor, como era máo , cruel, ç fraco , C^o^J"
fas que andam fempre juntas fraqueza a crue-
za , ) começou a matar todos os Capitães
que favoreceram o irmão , e o quiz fazer
a outro fó que lhe ficava , que era o menor
de todos , que por fer aviíado , fe acolheo
era trajos mudados , e fe foi por elTa terra
dentro, e dahi a alguns annos por via do
Cinde foi ter a Ormuz . lendo Capitão
daquella fortaleza António da Silveira , que
teve rebate delle , e o tomou , e embarcou
pêra Goa , e o mandou ao Governador Nu-
no da Cunha , como na quinta Década di-
remos. Eftava naquelle tempo por Capitão
deDioMelique Saca filho de Melique Az,
aquém, o Soítão A^amude tinha dado aquel-
la Ilha. Eíle receando-fe das muitas cruezas
que o Bador ufava com todos, não fe ha-
vendo por feguro delle , determinou prei-
tear-fe com os Portugueze? , e dar-lhes aquel-
la fortaleza pêra fegurar lua vida , e a de
fua mulher, c filhos, e feus ihefouros. Pe*
lo que logo defpedio recado a Chriftovao
de Soufa Capitão de Chaul , pedindo-lhe
lhe • mandaíTe hum homem honrado pêra
tra-
Década IV. Liv. I. Cap. VIL 5-1
tratar com clle coiiflis que cumpriam aofer-
viço d'E!Rey de Portugal. Chegou eíle ho-
mem a Chaul , e dco o recado a Chriíto-
váo de Soufa , que o deteve , porque cada
dia cfperava pelo Governador. Poucos dias
depois chegou áquella Cidade Eitor da Sil-
veira com três náos de Meca , que tomou
na ponta de Dio , cujos quintos fó pêra
EiRey miontáram leíTenta mil pardáos ; e
logo a quinze de Setembro hum dia , ou
dons depois , chegou o Governador , que
foi bem recebido da Cidade , e apoíentan-
do-íe na fortaleza , lhe aprefentou Chriílo-
váo de Souía o Em.baixador do ?víelique
Saca , e elle lhe deo o feu recado. O Go-
vernador vendo que o negocio era de im-
portância , determinou de ir em peíToa a
Dio , mas foi contrariado dos Capitães , di-
zendo-liiC , que náo convinha abalar-fe pêra
coufa que nao fabiam fe feria invenção ,
mas que mandafie huma peílba de confian-
ça , e que fe detiveiTe naquella Cidade té
ver o em que aquilio parava. Com ifto def-
pedio o Governador Eitor da Silveira com
alguns navios ligeiros , e huma galé , em
que elle hia , e furgio na bahia de Dio , man-
dando pelo Embaixador pedir a Melique
Saca que fe viflem fòs , o que Melique Sa-
ca fez , e de noite foi Eitor da Silveira á
porta da fortaleza , e á borda da agua veio
D ii Me-
5'2 ÁSIA DE Diogo de Couto
Meliqiie Saca failar-lhe : e nas praticas que
teve com elle lhe diííe , que elle dcícjava
muito de entregar aquelia fortaieza ao Go-
vernador da índia , ir.as que havia de íer
com condição , que o liavia de mandar pôr
em Jaqnete com toda a artill^eria delia , que
havia de levar , e que lhe haviam, de dar
ametade do rendimento da Alfandega daquel-
la Ilha. Eiror da Silveira lhe louvou fua
determinação , e íe lhe cíFereceo ao por li-
vremente na parte que quizeíTe , e que pê-
ra as condições , que lhe punha , cUq trazia
poderes do Governador , em cujo nome tu-
do lhe concedia. Concluídos niilo , tornou-
feEitor da Silveira pêra a Armada , porque
Mclique Saca lhe pedio que íe detivefle al-
guns dias em quanto negociava luas cou-
lãs.
CAPITULO VIII.
De como Hag Mamuãe tirou a MeUque
Saca de entregar a fortaleza a Eitor da
Silveira^ e elle fe foi pêra Chaul fem coit-
cluir em nada : e de como o Hag Mamude
lhe tomou a fortaleza por traição ^ e a en-
tregou a ElRey de Camhaya.
EStava ccin Melique Saca hum Mouro
-feu parente chamado Hag Aíamudo,
homem máo, perverfo, e muito ambiciofo :
d'
Década IV. Liv. L Cap. VIIL 5-3
efte fahendo dos tratos que o parente trazia
com Eicor da Silveira , porque fe fiou del-
le , e entendendo neiíe o grande inedo que
tinha d'£lRey , conccbco em feu animo de-
fejo de fe fazer fenhor daquella Ilha , e nas
praticas que tiveram fobre o negocio , fem-
pre IhQ gabou a determinação que tinha to-
mado na entrega da fortaleza ; mas que hu-
nia fò coufa receava, e era, que como Ei-
tor da Silveira o tiveílb em feu poder , com
a cubica do muito thefouro que tinha , lhe
quebraífe a f e , e elle ficaíTe lem fortaleza ,
fem flizenda , e fem liberdade. Não foou
ifto mal ao Aielique Saca ; porque , como
todos os Mouros são falfos , e fementidos ,
fempre imaginam nos outros o que elles di-
riam , e pedio ao Hag Mamude , que o
aconfelhaíte naquelle negocio. O Hag Ma-
mude como tinha já traçado na fantaíia a
malicia , e traição , que com qUq depois ufou ,
diíTe-lhe , que era de parecer , que refpon-
delTe a Eitor da Silveira , que pêra maior
diííimulação daquelle negocio , fe foííe ellc
pêra Chaul , e que entre tanto ficaria nego-
ciando fuás coufas , e embarcando fua fa-
zenda em algumas cotias que pêra iífo ti-
nha , fazendo-lhe crer que já na Cidade ha-
via fobre ilTo algum reboliço ; e que depois
de embarcar a artilheria , pêra que havia
miíler vagar , entregaria a fortaleza a qUq
Hag
54 ÁSIA DE Diogo de Couto
Hag Mamude , e que depois delle ido pê-
ra Jaquete elle o mandaria chamar , e íhQ
entregaria a fortaleza. OMeiique Saca não
entendendo oamargoz que liia debaixo dcÇ-
te dourado , parecco-lhe aquelle confeJlio
bem , e pedio-Ihe que foíTe ellc o portador
daquelle recado. Hag Mamude foi-íe huma
noite á galé de Eitor da Silveira , e lhe
pintou aquillo como lhe parcceo convinha
á fua tenção. Eitor da Silveira parccendo-
Ihe que o Meíique Saca eftava já arrepen-
dido 5 lhe diíTe , que do alvoroço da Cida-
de IhQ nao déíTe coala algutna , porque co-
mo a fortaleza eftava íobre o iut: , facil-
mente fe Dodia embarcar com tudo o que
quizeíTe, e qUc íicar logo de poíle da for-
taleza , fem lho ninguém poder eftorvar.
Hag Mamude lhe diíle , que aquillo nao
podia fer , porque pêra embarcar roda a
artilheria , e fozenda , havia miíler muitos
dias 5 e muito vagar, e que fe aquella Ar-
mada eftivelfe alli todo aquelle tempo , nao
faria mais que encher aos da Cidade de fuf-
peitas , porque já traziam algumas ; que o
bom feria defipparecer dalli , e que como
Melique Saca tiveíTe tudo embarcado , lo-
go o mandaria chamar a Chaul ; e que tu-
do eram mais dez , ou doze dias. Eitor da
Silveira vendo aquellas cautelas acabou de
aíTentar, que o Melique Saca eftava de to-
do
Década IV. Liv. I. Cap. VIII. $$
do arrependido , e que o meímo Hiig Ma-
mude o aconlelh.aria , e o divertiria de fua
deteri-ninacáo. HasfMamudc fe deípedio de
Eitor da Silveira , que logo delpachou hum
navio muito ligeiro com cartas ao Gover-
nador , em que í\\q dava conta de tudo o
que paííava , pedindo que lhe mandaíTe di-
zer o que faria naquella matéria. Eíla car-
ta a mòílrou o Governador em confelho aos
Capitães , pêra ]Jie aconíel harém o que re-
fponderia , e debatido entre elles aquelie ne-
gocio , ficou o coQÍelho partido em dife-
rentes pareceres ; porque huns diziam , que
ninguém melhor que o mefmo Eitor da
Silveira , que lá eílava com o negocio entre
as mãos , íe poderia determinar naquelle ,
que era de tanta importância, e de que tan-
ta honra poderia relultar ao Eítado da ín-
dia , que fe lhe remetteííe toda a rcfoluçao
delle. Outros , em que a inveja parece tinha
entrado , por fer aquelie o mór negocio , e
mais honrofo da índia , diíTeram , que pois
Eitor da Silveira eílaudo lá onde via tudo,
mandava pedir confelho , fem fe iabcr der
terminar , que o bom feria mandar lá ou-
tro Capitão , que folTe homem , que náo fi-
caífe dependurado de parecer alheio, fenao,
que fe pudeíTe refumir com o feu próprio ,
cuidando cada hum dos que nifio votaram ,
que poderia fer eleito peni aquiilo > e fazer
na-
^6 ÁSIA DE Diogo de Couto
naquclie negocio mais que Eitor da Silvei-
ra 5 que era hum dos Capitães de esforço ,
confeiho 5 e experiência, que cm feu tem-
po houve. lílo tbi fempre muito antigo na
índia entre os Fidalgos , vituperarem nuns
aos outros que eílam em melhor lugar , c
t]ue são mais pêra elle , fó por verem íe
os podem abater pêra íe elles alevantarem :
tendo muitas vezes no votar mais relpeitos
aos íeus particulares , que ao ferviço de Deos ,
■e d'ElRey , pelo que alguns foram caufa
de fe perderem grandes occafióes , e de íuc-
Cederem muitos deíaítres , e grandes defa-
-venturas. E tornando a noíTo rio , vendo o
Governador aquella confusão , foi com os
que votaram que fe remetteíTe o negocio a
Eitor da Silveira , e logo \\\q jefpondeo pe-
lo mefmo navio, que fizeífe eile o que lhe
melhor pareceiTe , pois eílava com o jogo
na mão. Dillo também houve entre ciles
algumas murmurações , dizendo , que tam-
bém o Governador tivera naquillo refpeito
ao feu particular , e que queria grangear
Eitor da Silveira pêra o ter da fua parte,
porque parece que já entendiam nelle aguas
de não entregar o governo a Pêro Maica-
renhas. Dada eíla carta a Eitor da Silvei-»
ra , como o tomou já defconíiado , e enfa-
dado das dilações do Zviouro , parecendo-
Ihe que nunca entregaria a fortaleza , lar-
gou
Década IV. Liv. I. Cap/VIII. 5-7
goii tudo , e deo á vela pêra Chaiil , fcni
outras occafioes n^ais que as de fuás íuípei-
tas , cm que fe enganou , como depois fe
verá. Cheirado Eitor da Silveira a Chaul ,
pelas informações que deo ao Governador
dcfirtio do negocio , e determinou de o man-
dar -ao eftreito de Meca , por haver algu-
mas novas de galés , de que também quiz
aviíar ElRey , c mandou com muita brevi-
dade negociar hum daquellcs galeões, de que
deo a capitania a Francilco de Mendoça ,
e o defpedio pêra o Reyno em fim de Ou-
tubro , eícrevendo a ElRey tudo o que até
então tinha fuccedido, e certiíicando-lhe fa^
zerem-fe em Suez preíles muitas galés pêra
paíTarem á índia , pedindo gente , munições ,
e outras coufas , porque já de Ormuz tinha
efcrito de lua faccefsáo , encommendando
muito a Franciíco de Mendoça , que ira-
balhaíTe por tomar as náos antes que par-
tiíTem do Reyno. Defpedio dalli também
o Governador o navio do trato de ÇoFala ,
de que era Capitão Nuno Vaz de Caílello-
branco , dando-lhe por regimento déíTe as
novas das galés por toda a cofta de Melin-
de , e Moçambique, porque eíliveífem fo-
bre avifo , e o mefmo efcreveo a Ormuz,
e ás mais Cidades da índia , pedindo-lhes
que oquizeíTem ajudar com alguns navios,
porque determinava de ir bufcar os Rumes,
e pe-
5*8 ÁSIA DE Diogo de Couto
e peleijar com elíes , o que todas fizeram
.mui bem , poraue a Cidade de Goa armou
logo hum galeão , liuma caravela , e huma
galé no eftaleiro , e as fizeram á cufta dos
moradores com muita brevidade. A Cidade
de Chaul fez outra galé. O Governador
defpedio dalli gente , e munições pêra Or-
muz , e efcreveo a Diogo de Mello , que
mandaíle ter na boca do eílreiro Perfico
navios ligeiros pêra o aviiarem fe houveíTe
galés. Providas eftas coufas , e outras , que-
rendo o Governador embarcar-ie pêra Goa ,
tornou a tomar parecer lobre as coufas de
Dio , e aírentou-fe que deixaíTe alli Eitor
da Silveira com Armada , e que mandaíTe
faber de Meliqne Saca fua determinação ;
mas Eitor da Silveira , que fe achou no
mefmo confelho , aíHrmou que tudo o de
Melique Saca eram invenções , e enganos ,
e que elle fabia muito certo que nunca en-
tregaria a fortaleza ; e aíTi certificou iílo ,
que defiftio o Governador da empreza , e
deo á véla pêra Goa. E em quanto faz ef-
ta jornada , continuaremos com Alelique
Saca , que como falia va verdade , e fua ten-
ção foi fempre entregar aquella fortaleza
aos Portuguezes, por fegurar lua vida, erri
Eitor da Silveira dando á véla pêra Chaul ,
começou a embarcar a artilheria , e fua fa-
zenda, e paílalla ajaquete pouco, e pouco.
Hag
!
Década IV. Liv. I. Cap. VIII. $9
HagMamude como trazia máos pcrilamen-
tos , e era inimigo dos Portuguezes , como
rodos os Mouros o' são por natureza , ven-
do a preíTa que Melique Saca dava no dei.
pejar da fortaleza , começou cm íegredo a
ajuntar gente , e lendo o Melique Saca a
folgar a luima quinta fua que tinha da ou-
tra banda duas léguas pela terra dentro ,
( que inda hoje guarda feu jiome , e fe cha-
ma a quinta do Melique , ") metteo-fe Hag
Mamude na Cidade com muita gente arm.a-
da , e começou appellidalia por d'EiRcy de
Carabaya : e logo lhe defpedio recados mui
aprelTados do que tinha feito , e da determi-
nação de Melique Saca. Dando-íc eíie re-
cado a ElRey , logo fe partio pêra Dio afor-
rado com dez , ou doze mil cavallos. Meli-
que Saca que citava na quinta foube logo
a traição que lhe o parente ordenou , e en-
tão cntendeo a malicia , e tenção com que-
o aconfelhára naquellas coufas , e partindo-
fe apreíTado pêra Dio , paíTou-íè á Ilha , e
foi delembarcar á porta da fortaleza , em
que ainda eílava fua mulher, filhos , e fa-
mília , e mettendo-fe dentro fem ninguém
lho poder eílorvar , defpedio logo recado
mui apre (Fado a Chaul a chamar Eitor da
Silveira pêra lhe entregar a fortaleza. Efte
recado foi dado a Chriftovao de Soufa , que
por não ter navios não foi em peffoa ^ mas
def-
'6o ÁSIA DE Diogo de Couto
defpedio huma almadia ligeira com recado
ao Governador , e entre tanto foi entreten-
do o Meliqje Saca cinco , ou íeis dias , man-
dando-! he affirmar que logo feria com elle.
ElRey de Cambaya como hia pela pofta ,
chegou á outra banda de Dio três dias de-
pois que o Melique Saca defpedio o reca-
do a Chaul , o qual fabendo da chegada
d'ElRe7 5 logo fe em.barcou com fua famí-
lia , e fe paíTou a Jaqucte , deixando a for-
taleza defpejada. ElRey de Cambaya paf-
íbu-feáílha, e deo a capitania daquella for-
taleza a Hag Mamude , refervando pêra fi
as rendas da Alfandega. Efte Mouro foi de-
pois o mor inimigo que o eftado teve , como
pelo decurfo da hiftoria fe verá , donde fe
vê claro quanto pode hum defcuido , e quan-
ta força tem hum refpeito particular , que
muitas vezes foram caufa de grandes da-
mnos , e fizeram perder grandes occafioes ,
como vimos nefte negocio , de que refultou
perderem os Portuguezes defta vez eíla for-
taleza, e vir a poder do mór inimigo que
a índia teve , e cuftar depois tantas mortes
de Fidalgos , e Cavalleiros , tantas defpezas
em Armadas primeiro que tornaíTe a vir a
noífo poder, tendo-a deíla vez na mão fem
cuíto, e fem trabalho.
CA-
Década IV. Liv. I. 6i
CAPITULO IX.
Da armada qtie ejlc anno de Tinte e féis
fartto do Reyno : e das fwvas fuccefsoes
que ElRey yiwjtdou : e de como Affon-
fo Mexia Veador da fazenda abrio
a primeira fuccefsao , em que fuc-
cedeo Lopo Vaz de Sardpaio,
PElas cartas que o Governador D. Hen-
rique de Menezes mandou per terra ao
Reyno , em que dava conta a ElRey da
morte do Conde Almirante , e de lua fuc-
cefsao , e do eítado cm que a índia íicava ,
que foram dadas a ElRey eíle Outubro pal-
fado de vinte c cinco , foube elle as novas
do que na índia paflava. E fem embargo
de andar occupado em fuás vodas , por ca-
iar com a Raynha D. Catliarina Irmã do
Emperador Carlos V. nao fe defcuidou de
prover nas coufas da índia , mandando ne-
gociar cinco náos com muita preíTa , que
defpedio efte Março de vinte e féis , pro-
vendo em, muitas coufas neceiíarias ao bom
governo da índia, principalmente nas luc-
cefsões da governança , em que fez mudan-
ça , como logo fe verá. Eíla Armada náo le-
vou Capitão mor : os Capitães eram Fran-
cifco de Anhaya , Triílão Vaz da Veiga ,
António de Abreu , (que levava a capita-
nia
62 ÁSIA DE Diogo de Couto
nía iv.óv do mar de Malaca , ) e Vicente Gil
filho de Duarte Triftao armador das náos ;
o outro foi x\ntonio Galvão íilho de Duar-
te Galvão, que por fe negociar mais tarde,
quando quiz fahir pêra fóra , faltou-lhe o
tempo , e depois íe fez á vela a dezefeis
de Maio tao tarde , que já fe defconfiava
de poder paíTar á índia. Efta náo indo fe-
guindo fua viagem , entrando na coita de
Guiné , lhe deram tamanhas calmarias , que
o detiveram porella quarenta dias, e quan-
do lhe deo o tempo , que já foi em fim de
Junho , houve grandes requerimentos dos
Oíiiciaes que fe tornafíe pêra o Reyno , por-
que além de fer m.uito tarde , a náo era
ruiín , e foífria mal a véla ; mas como An-
tónio Galvão era homem virtuofo , e de
grande animo , e esforço , quietou a todos
com lhes dizer, que cfperava em Deos que
lhe havia de dar muito boa viagem dalli
por diante , e que os havia de levar á ín-
dia juntamente com as outras náos ; e pon-
do cobro na agua , e mantimentos , foi fe-
guindo fua viagem , ora com contraíles , ora
com bonanças até dobrar o Cabo de Boa
Efperança já no tnez de Setembro. Dalli
foi tomando fua derrota com. determinação
de ir por fóra j mas o Piloto lhe requereo
que folTe tomar Moçambique , e que dalli
iriam invernar á índia em' Abril ^ e que af-
a
Década IV. Liv. I. Cap. IX. 63
ji fcguravam as vidas , e a náo , porque in-»
do por fóra podiam-lhe entrar os levantes
que era já tempo , que os pediam tom.ar em
paragem , que quando quizeíTem voltar pa-
ra Moçambique nao pudeílem.. António Gal-
vão lhes diíTe , que eíperava na Virgem Nof-
fa Senhora , que os havia de levar a Co-
chim. E afii era tao devoto da Senhora ,
que quebrando- lhe hum dia íeu a verga gran-
de , nao quiz que trabalhaíTem , c aquelle
dia nao fez viagem , aíli eila teve particular
cuidado de fuás coufas. António Galvão ,
porque o Piloto lie encampou a náo, a to-
mou á fua conta , mandando a via . toman-
do o Sol , e carteando , porque era niílo
muito efperto , e deo-lhe NoíTo Senhor tão
bom tempo, que em fim de Outubro foram
haver viíla das Ilhas de Maldiva , onde lhe
fahio huma embarcação da terra com hum
Piloto que os encaminhou até os lançar fó-
ra delias ; e em quinze de Novembro foram
tomar Cochim , onde já eílavam as náos de
Trilião Vaz da Veiga , e Francifco de iV-
nhaya , que também foram por fóra com
tempos bem roins. As nãos de Vicente Gil ,
e de António de Abreu foram por dentro ,
e ficaram invernando em Moçambique. Che-
gadas as náos , deram ao Veador da fazen-
da os faccos das vias , e dentro achou duas
fuccefsôes da governanta da índia , com
duas
64 ÁSIA DE Diogo de Couto
duas cartas dirigidas ao Veador da fazenda ,
que continham o legiiinte : Jjj/onfo Mexia.
EuElRey "vos envio nuntofaudar, Vor duas
Vias , que vam nejia Armada , vos ynaiido
dons faccos de cartas , e de [pachos das cou-
fas àefjas partes , que ouve por yneu ferviço
que agora fof] em. Hum dclles leva Triftao
Vaz- da Veiga , e outro Francifco de Anbaya :
tomai as cartas que vam pêra vós , e as
do Capitão mor lhe dai ^ e ajji a todas as
outras pejjoas pêra quem vam , e não fique
nenhuma por dar : aos que efiiverem fora
donde vós efiiverdes , mandai-lhas a muito
bem recado , e neJla Armada me enviai hum
rol do modo que tivejles em as dar , e em
as enviar , e tomai difto bom cuidado , por-
que ei por muito meu ferviço ferem dadas
todas as ditas cartas. As Provisões que
aqui vara dasfuccefsoes da governança da
índia tende naquella boa guarda , e fegre-
do , que cumpre a meu ferviço , como de vós
confio. Efcrita em Almeirim a trinta de
Marco. Fero de Alcáçova Carneiro a fez
anno de 1526. Tinha outra partícula mais
íibaixo , que dizia afíi: E das outras Pro^
visões quejd lá tendes , 7mo fe ha de ufar ,
e as tereis em boa guarda , e mas trareis
quando embora vierdes, A outra Carta era
efcrita a quatro de Abril , cinco dias de-
pois, enao tinha eíla pofiilla , que falia no
abrir
Década IV. Liv. L Cap. IX. 6j
abrir das fuccefsocs. Viílas eílas Cartas pe-
lo Veador da fazenda , e confiderando ef-
ta addiçáo derradeira da primeira Via , que
dizia que fo nao ufaíTe das lucceísóes que
na índia eílavam , determinou logo de abrir
aquellas que hiam de novo. E ajuntando-fe
na Sé de Cochim com o Capitão D. Vafco
Deça , e António Riquo , que naquellas náos
tinha vindo com o cargo de Secretario , João
de Ofouro Ouvidor geral , João Rabello
Feitor 5 e Alcaide mor , Duarte Teixeira
Thefoureiro das mercadorias , os Capitães
das náos do Reyno , os Vereadores , e Of-
ficiaes da Camera ; e lendo-Ihcs a Carta d'El-
Rcy , lhes dilTe , que por ella fe mòftrava
muito claro , que a tenjao d'ElRey era nao
fe ufar das fuccefsoes que na índia eílavam ,
fenão daquellas que naquellas nios manda-
va , pelo que elíe as queria abrir. A ifto
atalhou D. Vafco Deça , dizendo , que fe-
ria muito grande deferviço d'ElRey fe tal
fizeíTe , porque fua tenção não era , nem po*
dia fer , que tendo-fe já uíâdo das fuccef-
socs que eítavam na índia , fe abriílem as
outras , porque aííl ficava ElRcy aíFrontan-
do o Fidalgo que tiveííe fuccedido , fican-
do cm obrigação de lhe fatisfazer fua hon-
ra 5 porque os Reys a que mais eílimavam
era a de feus vaíTallos , porque fe foíTe de
outra maneira , não haveria quem arrifcaffe
Qouto. Tom. L P. /• E as
66 ÁSIA DE Diogo de Couto
as vidas por feu fervido , ( coítio os Fidal-
gos cada dia faziam) com tlperanças de
eJJe os honrar , e lhes fazer mercês : Qiie
fe ElRey mandara por aquella particula ,
fora por cuidar nao fe ter ainda ufado das
fucceísoes ; e que fe fua inten^^ão fora abri-
rem-feeítas, c nâo fe ufar das que já lá ef-
tavam , forçado houvera de declarar , que
poílo que fe tivcíTe ufado das fuccefsoes que
na índia eílavam, havia por bem abriffem
aquella , que de novo mandava ; e que o
homem que íiveíTe fuccedido nas outras , fe
embarcaífe pcra o Reyno , mandando náo ,
e ordem pêra ifTo : E que a tenção d'ElRe)r
mandar ter em fegredo as fuccelsôcs , que na
índia dantes eílavam , era por nao íi*tberem
os Capitães que nellas eftavam , fe fazia el-
lencllas alguma mudança , pelos nao efcan-
dalizar : Que lhe requeria da parte d'ElRey
não boliíTe nas fucceísoes , porque Pêro Mal-
carenhas era legitimo Governador , e nao
déíTe occafião a divisões , e alterações em
meio de tantos inimigos , e mais em tempo
que eram táo certas as novas das galés de
Rumes , que pêra as efperar era neceífario
cílarem todos unidos , e conformes , e nao
em bandos , como eflavam certos bolindo-
fe nas fuccefsoes. Defte parecer foram a mor
parte dos que alli eftavam , e os outros do
do Veador da fazenda, que fe refumio em
abrir
Década IV. Liv. I. Cap. IX. 67
abrir a primeira fucccfsâo , dizendo , que
eJle tomava íobre (i aquelle negocio , e que
eJIe daria conta a EIRey do que fizera. E
abrindo a primeira fucceísao , a deo a Fer-
não Nunes Elcriváo da fazenda , que a leo
alto 5 e achou-íe neila dizer EIRey , que ha-
via por bem que per morte do Governador
D. Henrique íuccedeííe em feu lugar Lopo
Vaz de Sampaio com dez mil cruzados de
ordenado , cinco mil em dinheiro , de que
íè pagaria na índia , e outros cinco mil em
pimenta comprado do leu dinheiro ao par-
tido do meio. E que feria Capitão mor do
xr.ar António de Miranda de Azevedo com
dows mil cruzados de ordenado cada anno ,
mil cm dinheiro, e mil em pimenta ao par-
tido do Governador ; e que falecendo dÍQ
Lopo Vaz 5 depois de entrar na governan-
ça , em tal cafo havia por bem que fucce-
ácíTe Pêro Mafcarenhas com o mefmo or-
denado. Eíla fucceísao foi feita em Almei-
rim por Jorge Rodrigues a quatro de Abril
de 1^26, O Veador da fazenda mandou al-
li fazer hum auto da publicação , em que fe
aííinou com os que foram do feu parecer;
mas todos os mais clamaram , e proteílá-
ram , dizendo ao Veador da fazenda , que
cile roubava a honra a Pêro Mafcarenhiis ,
que era hum Fidalgo muito honrado, e de
grandes merecimentos , e que já fe nao el-
E ii ca-
68 ÁSIA DE Diogo de Couto
cufavam divisões , e bandos, de que elle ha-
via de dar conta a ElRey. AfFonfo Mexia
defpcdio logo hum catúr , em que foi Dom
Henrique Deça com recado a Lopo Vaz
do que tinha feiro , mandando-Ihe a nova
fuccefsão 5 e o auto da poffe da governança
da índia , que lhe dava , e efcrevco á Cida-
de de Goa , requercndo-lhe , que conhecef-
fem Lopo Vaz por verdadeiro Governador ,
porque ElRey aííi o mandara naquellas náos ,
e que houveíTem por bem o que eftava fei-
to. Deixemos D. Henrique Dcça , e tor-
nemos a continuar com o Governador Lo-
po Vaz , que deixámos partido pêra Goa.
Aos dous dias que parrio de Chaul foi fur-
gir fobre a barra de Dabul , onde já trazia
determinado de dar hum bom cafligo , por-
que fahiara de feu porto algumas fuílas a
roubar os mercadores que navegavam , e car-
regavam dentro algumas náos pêra Meca ,
que levavam muita pimenta. Alli ordenou
toda a fua gente , e deo ordem á defembar-
cação 5 dando a dianteira a Eitor da Silvei-
ra 5 e paíTou toda a gente aos navios ligei-
ros , e batéis dos galeões , e o Governador
na gale baftarda foi entrando pelo rio den-
tro com grandes eftrondos de inftrumentos \
e fendo a meio rio , chegou á galé do Go-
vernador huma embarcação , em que vinha
o Tanadar da Cidade , e entrando na galé
apre-
Década IV. Liv. I. Cap- IX. 69
aprefentou-fc diante do Governador com
muita humildade , e lhe pedio perdão de '
fuás culpas , e que elle eílava muito preftes
pêra as fatisfazer , e de novo guardar as pa-
zes com as condições que elle quizeíTe. O
Governador o recebeo humanamente , e lhe
diííe , que lhe perdoava , porque os Gover-
nadores d'EIRey de Portugal tinham por
obrigação recolherem , favorecerem , e per-
doarem a todos os que fe lhe humilhaíTem :
que elle lhe perdoava com condição que
Ilogo mandaíTe entregar todos os navios de
remo com fua artilheria que houveíTe na-
quelle porto , e aíH mefmo huma náo que
eftava á carga pêra ?víéca por ter em li mui-
ta pimenta. O Tanadar lhe diíTe que em tu-
do o latisfaria , que não paíTaíTe mais avan-
te. O Governador mandou í urgir no meio
do rio : o Tanadar fem fahir da galé, man-
dou trazer tudo o que o Governador lhe
pedio, e lhe entregou alguns navios, e a
náo com a carga que tinha. O Governador
lhe concedeo novas pazes , e favores , com
que elle ficou fatisfeito. Aqui chegou hum
Thomé Pires Capitão de hum catúr feu ,
muito apreíTado , e pedio alviçaras ao Go-
vernador de como fuccedêra na governança
' pelas vias que EíRey mandara nas náos , e
i que D. Henrique Deça ficava em Goa , e
: lOs papeis. O Governador lliedeo alvi;ai^as,
fen-
70 ÁSIA DE Diogo de Couto
fentindo-fe nelle grande alvoroço , porque
* havia que já ficava ícgiiro na governança.
Eílas novas fe efpalháram logo pela Arma-
da , eftranhando todos o que AíFonfo Me-
xia fizera ; edilTeram publicamente, que Pê-
ro Malcarenhas era o verdadeiro Governa-
dor , e que a elle conheciam por eíTe. Lo-
po Vaz deo logo d véla pêra Goa , onde
foi recebido como Governador , e D. Hen-
rique Deça lhe moftrou o traslado da iuc-
cefsão , e outra da poíTe , pelo que entregou
logo a capitania mor do mar a António de
Miranda de Azevedo , e mandou preparar
huma Armada de galeões pêra irem ao ef-
treito , e deo aquelia jornada a Eitor da Sil-
veira. E em quanto fe ficou preparando ^
elle fe embarcou pêra Cochlm pêra ir fazer
a carga ás náos do Reyno. Poucos dias de-
pois do Governador partido fe embarcou
Eitor da Silveira , e dando a véla , logo á
fahida de Goa achou o recado de Chrifto-
váo de Soufa , em que o mandava chamar
pêra ir tomar poíTe da fortaleza de Dio. E
apreíTando-fe com eílas novas , chegou a
Chaul , onde já era chegado recado , que
Melique Saca era fugido , e que ElRey de
Cambaja ficava em Dio ; e aííi por hum na-
vio que chegou de Adem , veio nova certa ,
como de Suez era partida huma groíTa Ar-
mada de Rumes, que o Turco mandava à
Dec. IV. Liv. L Cap. IX. E X. 71
índia contra os Portuguezes. Com eílas no-
vas rcquereo Cliriftovao de Souía a Eitor
da Silveira que fe tornaíTe pêra o Governa-
dor , porque nao era bem foíTe ao eftreito
com aquella Armada , a rifco de dar com
as galés, e perder-fe, no que fe arrifcava
toda a índia , porque nao ficava ao Gover-
nador Armada com que poder pelejar com
os Turcos. Eíle requeri ii>ento pareceo bem
a Eitor da Silveira , e tornou a voltar pê-
ra Goa.
CAPITULO X.
Do que fez o Governador em Cochim : e das
nãos que partiram pêra o Reyno : e de
como ElRey Z). João rcccbeo o Em-
baixador AbexL
PArtido Lopo Vaz de Sampaio da Ci-
dade de Goa , em poucos dias chegou
a Cochim , onde foi muito bem recebido
de Aítbnío Mexia. E como naquella Cida-
de eftava a mor parte da nobreza da índia ,
em que entravam muitos parentes , e ami-
gos de Pêro Mafcarenhas , havia grandes
murmurações fobre a fuccefsao de Lopo
Vaz , e muitos ajuntamentos , e magotes pú-
blicos , com eftrondos , e uniões , dizendo
foltamente, que roubavam a honra a Pêro
Mafcarenhas, e que elle era o verdadeiro
Go-
72 ÁSIA DE Diogo de Couto
Governador da índia; e como Lopo Vaz
lambem rinha muitos do feu bando, hiam-
fe travando br'gas , e iiida alguns defahos
particulares; e o que mais avivou ido, foi
chegar hum Junco de Malaca pelas oitavas
do Natal , em que dava novas de como Pê-
ro Mafcarenhas ficava embarcado pcra a ín-
dia j e obedecido por Goveiuador pela pof-
fe, e 3utos que lhe mandou o Voador da
fazenda por António da Silva de Menezes.
Difto ficou Lopo Vaz de Sampaio muito en-
fadado 5 e determinou de atalhar algumas def-
ordens , com mandar avifar Pêro Mafcare-
nhas do que era fuccedido , porque nâo cui-
dafle que vinha pêra governar a índia : e
logo mandou o traslado da fuccefsao que
veio do Reyao , e o auto da pjlfe a Hen-
rique Ferreira Alcaide mor de Coulão , pc-
ra que vindo alli Pêro Mafcarenhas , lho
notificaífe , mandando-lhe por huma Provi-
são, que fe quizeíTe obedecer áquelles au-
tos 5 que o agazalhaíTe muito bem , e quan-
do não , que deixaíTe cumprimentos , e o
não recolheííe na fortaleza. E porque as
uniões crefciam cada vez mais , quiz o Go-
vernador juílificar-fe com os homens , prin-
cipalmente com os Capitães das náos , por-
que em Portugal lhe não eílranhaíTem o que
fizera. E mandou chamar Baftião de Soufa ,
a quem tinha dado a capitania da náo de
An-
Década IV. Liv. I. Cap. X. 73
António de Abreu , e António Galvão , Frnn-
cilco de Anhaya , TrilMo Vaz da Veiga, e Fi-
lippe de Craílo , que alli invernou do anno
paíTado ; e prefente o Secretario António Ri-
co , lhes dille , que da uniáo que em Co-
chim havia fobre íua íliccefsao , não queria
lomar o caíligo que o cafo merecia nos per-
turbadores do po\^o , porque def^íjava de
os moderar , e quietar por bem : que lhes
pedia muito , como Fidalgos honrados , e
Capitães d'EIRey , e que o não haviam mii-
ter, pois lè hiam pêra o Reyno , que lhe
diíTeflem livremente o que lhes parecia áã-
quelle negocio, ele entendiam que por vir-
tude dafuccefsão, que feabrio, podia el!e
fer Governador da índia , e fobre iílo lhes
deo juramento dos Santos Evangelhos. E
como elle lhes perguntou ifto ílmplesmente ,
com a mefma limplicidade lhe refpondéram
que não tinham dúvida a elle ler Governa-
dor, porque dafuccefsão fe entendia clara-
mente fer eíTa a tenção d'ElRey : fenao quan-
to Trilião Vaz paflbu adiante, e diíTe, que
por fe evitarem coufas em dcferviço de Deos ,
e d^ElRey , elle devia de fer Governador
da índia , pois já eílava de poíTe , e que quan-
to ao direito de Pêro Mafcarenhas era ne-
celTario ver todas as Provisões paíTadas , por-
que fem iíTo elle não podia refolver-fe em
CO ufa alguma. De tudo aquillo mandou Lo-
po
74 ÁSIA DE Diogo de Couto
po Vaz fazer hum auto , em que todos fe
aflináram. A mefma pergunta fez a hum Fr.
João de Hayo , da Ordem dos Pregadores ,
homem bom Letrado , que lhe affirmou que
era verdadeiro Governador j e que para fer
mais notório a todos , elle o affirmaria o
dia feguinte 5 (que era da Circumcisao do
Senhor , ) em que havia de pregar , e aííi
o fez ; porque no cabo do Sermão tratou
das murmurações que na terra havia contra
Lopo Vaz de Sampaio por parte de Pêro
Mafcarenhas , eftranhando-o muito , e affir-
mando , que Lopo Vaz de Sampaio eftava
legitimamente de poíTe da governança por
alTi fer a tenção d'ElRey , dando fobre iP-
to muitas razoes ; e concluio com dizer , que
o mefmo que alli dizia fjftentaria em Sala-
manca , e Paris , e em Portugal , para on-
de aquelle anno hia , pelo que fe devia de
crer que falia va verdade fcm fufpeita , pois
era Frade , que não tinha neceíFiiade do
Governador , affirmando , que era mor ami-
go de Pêro Mafcarenhas , que feu. E re-
quereo a Lopo Vaz da parte de Deos , e
d'ElAey 5 que lhe lembralTe que tinha en-
tre mãos hum negocio de muita importân-
cia, e de que fe podia feguir hum grande
tr3b3lho á índia , e que era obrigado a caf-
tigir os perturbadores da quietação, e que
fe degraJaíTem de Cochim os homens , que
fal-
Década IV. Liv. I. Cap. X. 75*
fâlIaíTem contra o fcu direito. Lopo Vaz
com eftas couías cobrou mais alento , e lo-
go procedeo contra alguns , que tinham mais
culpa, que foram Vicenie Pegado , que aca-
bara de ler Secretario , e Simão Tofcano
da obrigação de Pêro Maícarenlias , que de-
gradou hum pêra Chaul , e outro pêra Cou-
láo. E dando expediente á carga das náos ,
as fez á vela até dez de Janeiro , embarcan-
do o Governador na deTriftáo Vaz da Vei-
ga a D. Rodrigo de Lima com o Embai-
xador Zagazabo , a quem deo todas as cou-
fas neceíTarias muito abaíladamente. Na náo
de António Galvão le embarcou a olTada
de leu pai , e o P. Francilco Alvares , que
a trouxe de Camarão. Elias náos tiveram tao
boa viagem , que chegaram a Lisboa vei-
pera de Sant-Ligo . eílando EIRey em Coim-
b^-a fugido de hum rebate de pefte ; e por
ter já novas do Embaixador por huma ca-
ravela que das Ilhas terceiras lhe mandaram
diante, tinha dado recado em Lisboa que
logo o levaíTem a Santarém , e foram apo-
fentados , elle , e D. Rodrigo de Lima em
Alfange, onde lhe ElRey mandou dar ro-
das as coufas neceíTarias pêra ornamenro
de fua cafa , peíToa , e criados. Aqui eíli-
veram alguns dias até ElRey os mandar le-
var a Coimbra , com grande companhia
de criados , mulas , e azemalas , e antes de
che-
76 ÁSIA DE Diogo de Couto
chegarem á Cidade os foi cfperar ao cami-
nho Diogo Lopes de Siqueira Almotacé
mor, que foi Governador da índia, que era
o mefmo que áquella embaixada mandara
D. Rodrigo de Lima , que eílava acompa-
niiado de muitos parentes , amigos , e cria-
dos 5 o recebeo com muitos gazalhados. A'
entrada da Cidade o mandou ElRcy rece-
ber pelo Marquez de Villa Real , e por to-
dos os Prelados, e Senhores que havia na Cor-
te, que o levaram até o Paço. O Alarquez
entrou na cafa onde ElRey eílava , com o
Embaixador Zagazabo por huma inao , e
D. Rodrigo de Lima da outra parte por ou-
tra. Eílava ElRey na fala ricamente arma-
da , e tinha comíigo o Cardeal , e Infante :
e ao entrar da porta defcco-fe ElRey do eí^
trado , e o recebeo á borda dclle com gran-
des gazalhados , perguntando-lhe pela faude
do Emperador feu Senhor , de fua mulher ,
e filhos. O Embaixador Ih:^ refpondeo , que
todos ficavam bem , e defejofos de faberem
novas da de S. A. Depois deíles primeiros
cumprimentos lhe diííe ElRey , que recebia
muito grande confolaçao com aquella em-
baixada ; e que efperava que delia fe fegui-
ria algum grande , e aífinalado ferviço de
Deos NoíTo Senhor , e do Emperador da
Ethiopia feu irmão , e a elle muita honra.
Zagazabo deo a ElRey duas cartas , huma
pe-
Década IV. Liv. I. Cap. X. 'jj
pera ElRey D. Manoel , (porque inda era
vivo quando o defpachou 5)03 outra pera
elle ; e aíH lhe deo huma coroa de ouro ,
e prata , e lhe diíTe , que o Emperador feu
Senhor mandava aquella coroa a ElRey Dom
Manoel , porque de filho pera pai nunca vi-
nha a coroa , íenão de pai pera filho , e por-
que como o tinha por eíTe , tomara atrevi-
mento pera lhe mandar aquella, pela qual
era conhecido em feus Reynos , e affi que-
ria que S. A. o foíTe em todos os da Abaf-
íia ; e que depois de o ter defpachado pera
ElRey D. Manoel , íbubera de feu faleci-
mento 5 e lhe mandara , que tudo o que tra-
zia pera elle déífe a S. A. pois era feu filho ,
elhe ficava a elle em lugar de irmáo. Jun-
tamente com iíto lhe entregou o P. Francis-
co Alvares duas cartas que levava a feu
cargo pera o Summo Pontífice , pelas quaes
lhe mandava dar aquelle Rey a obediência
como filho da Igreja Romana j e afil lhe
entregou huma boceta pequena , em que hia
huma cruz de ouro com o Santo Lenho ,
que fe abrio , e ElRey de joelhos tomou
a cruz , e a beijou , dando-a ao Secretario
António Carneiro com as cartas , pera fe
tornar tudo ao P. Francifco Alvares , quan-
do o defpediffe pera Roma ; e diíTe ao Em-
baixador, que dava muitas graças a Deos ,
pois por feu meio chegava a ver fujeitar»
fe
yS ÁSIA DE Diogo de Couto
fe o Império da Abaília d Igreja Romnna,
E delpedindo o Embaixador, mandou-lhe
dar cafa muito honradamente , com três m.u-
las 5 pêra clle , e pcra deus Frades que le-
vava comfigo , e aílinou-lhe pêra a íua me-
za dous cruzados cada dia , com hum tof-
tão pêra cada cavalgadura , e aíTi lhe man-
dou huma rica cama , e huma baixclla de
prata de lodo ferviço pêra fua meza , e lhe
deo pêra ter cuidado de íua cafa hum Fran-
cilco Peres cavalleiro honrado. O anno fe*
guinte defpedio ElRey o Embaixador, en-
tregue ao P. Franciíco Alvares , pêra ir
dcir a obediência ao Santo Padre ; e porque
efta jornada he da êfTencia da Chronica d'El-
Rey D.João , a deixaremos , e fomente dire-
mos a fubílancia da embaixada. Mandava
aquclle Rey pedir ao Santo Padre que lhe
concedeíTe dalli por diante Patriarcas pêra
os inftruirem nos Eliatutos Romanos , por-
que os que até entalo tinham , eram da Igreja
Grega ; e o que ao prefente vivia , que fe
chamava Marcos , era homem que palTava
de cem annos. Ufavam os Abexins por mor-
te de feus Patriarcas mandar pedir outros a
Jerufalem , que fe elegiam por todos os Fra-
des que havia na Cala Santa , de fua na-
çáo , mas fempre era eleito daquelles que
leguem a Regra de Santo António primeiro
Ermitão, e havia de ler natural de Alexan-
dria*
Década IV. Liv. L Cap. X. 79
d ria. Eíles Patriarcas níío tinham poderes
pêra mais que pêra dar Ordens , e crifmar,
que os Bifpados , e Benefícios ló o Prefte
Joáo os podia prover. O Summo Pontifice
rcccbeo efta embaixada com grande alegria ,
dizendo por fua venerável , e fanta boca
muitas palavras em louvor do Emperador
da AbaíTia , e lhe concedeo tudo o que lhe
mandou pedir ; confagrando em Patriarca
de Erliiopia hum Religiofo douto nas le-
tras Divinas, e na lingua Chaldea, e Gre*
ga , homem cílrangeiro , e nunca achám^os
quem nos difleíTc de que nação era , mas
quanto a nós , havemos que era Arménio ,
de que adiante trataremos com o favor
Divino.
D&
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DÉCADA (QUARTA.
LIVRO II.
Da Hiítoria da índia.
CAPITULO L
Da origem , e princípio do Keyno , e Reys
de Malaca ; e do tempo em que recebe-
ram a lei de Mafamede ; e do fundamen--
to 5 e defcripção da Ilha de Bintao.
A Gora continuaremos com Pêro Mas-
carenhas , que deixámos fazendo-fe
preftes pêra ir fobre Binráo. E pri-
meiro que tratemos deita jornada , nos pa-
receo bem darmos razão do fundamento def»
te Rcyno Ma!ayo , e princípio de feus Reys ,
por guardarmos a ordem que levamos n^f"
ta noíía Hiíloria , que he moftrar o tempo
em que todos os Reys Mouros , com qucrrr
contendemiOs , receberam a Lei de Mafame-
de. Pelo que fe ha de faber , que eíles Ma-
layos fempre fe tiveram por mais honrados ,
qu6
Década IV. Liv. II. Cap. I. 8í
que todvOs os vizinhos , pela divindade que
tem arrribuido a fua genitura , e princípio
de que fabulam patranhas , que náo tem fun-
damento algum. Dizem que hum Rey , que
era fenhor de todo o Mundo , defejando
de faber os fegredos do mar , mandara fa-
zer hum caixão de ferro com algumas vi-
draças, em que fe fizera lançar no pego def-
fe mar Oceano , e que o Rey cias aguas
o recebera m.uito bem , e lhe dera huma íí-
Jha emcafamento, de que houvera dous fi-
lhos; e indo a vifitar,feus Reynos , nunca
mais tornara : a miái faudoíli do marido, man-
dara os filhos em bufca delle , e os caval-
gara em golfinhos, em que aportaram am-
bos na Ilha de Çamatra na praia de Pleam-
ba , a que corruptamente chamamos Palibao^
Sendo edes moços ( que eram muito perto
de dez annos ) viílos da gente da terra , ven-
do-os tão formofos , e tão ricamente atavia-
dos 5 os levaram ao feu Rey , que os reco-
Jheo , e creou como filhos , e hum delles ca-
fou depois com huma filha d'ElRey de Ja-
pu ra , na coda dajaoa, e outro com huma
filha de huma fenhora de Sincapúra viuva ,
chamada Milãotania. E deixando as fabulas
que contam neíla creação , e cafamentos , a
verdade he que o Rey de Pleamba teve deus
filhos, que cafou com eílas duas mulheres.
Efte que fuccedeo no Rey no de Sineapiira
Q^íito. Tonu /. P. L F vi-
Sz ÁSIA DE Diogo de Couto
vivco muitos annos , e por fiia morte lhe
fuccedeo hum chamado Rajal Sabu , que foi
o primeiro que povoou Aíalaca , como io-
go diremos. E aíTi João de Barros nas fuás
Décadas, como Affonfo d'Alboquerque em
feus Commentarios , e Damião de Gois na
Chronica d'EIRey D. Manoel , lhe chamam
Xaque Darxa , porem cfte nome não he co-
nhecido entre os naturaes , nem eRe titulo
de Xá , que propriamente quer dizer Rey ,
^nem fe ufou entre eíles Gentios fenao de-
pois que receberam a lei de Mafamede • mas
porque homens tão graves não haviam de
efcrever fem fundam.ento, querendo-os £il-
var a elles , a nós nos parece que teria am-
bos eíies nomes : e que ElF.ey de Sinca pu-
ra fe chamaria Rajal Sabu : e que depois
de o fer de Malaca , fe inritulaíTe do outro
de Xá. E também fe pode cuidar nafcer efta
confusão dos cfcritores Malayos í porque
depois que aprenderam as Jetras Arábigas ,
em que renovaram fjas efcrituras , tratando
de todos os Reys , afli Gentios , como Mou-
ros , os no meariam com eíle titulo de Xá ,
fcmícizerem differença dos Gentios , que an-
tes de Mouros fe chamavam Rajas ; mas to-
davia algumas efcrituras antigas ainda no-
nieam eíle por Rajal Sambu. Eíle , íendo Rey
de Bintão , tomou huma filha a hum fcu
Veador da fazenda ^ e a teve por manceba
ai"
Década IV. Liv. II. Cap. I. 83
alguns annos : e parece que depois toman-
do delia alguns fiumes , a envergonhou pu-
blicamente , e a deitou fóra. O pai aíFron-
tado daquillo , como era peíToa principal ,
e de muita poíTe , carteou-fe com alguns ic-
nhores da Corta da Jaoa , que vieram em feu
favor com poderofas Armadas , e defembar-
cando em Sincapura , nao oufando o Rey
aos efperar , fugio, e paíTou-fe á Coíla de
Malaca pêra hum lugar chamado Sencu-
der , junto de Ujantana , ficando o Reyno
de Sincapiira , e Bintáo em poder do vaíFal^.
lo , em cujos herdeiros andou muitos annos.
Alli em Sencuder efteve o Rey degradado
alguns tempos , dando-fe bem com os da
terra, e ordenando Armadas com que íal-
teava aqucllcs eftreitos. E tendo a informa-
ção daquella parte onde depois íe fundou
Malaca , que então era huma pobre povoa-^
çio de pefcadores , paíTando-fe a elía , aíTen-
tou alli fua vivenda , e começou a fundar
huma nova Cidade. E porque íoube que a
terra era d'EiRey de Sião , lhe mandou pe-
dir que lha quizeíle dar com o titulo de
P.ey . que elle fe lhe obrigaria á vaíTallagem :
o que elle fez aíTmando-lhe os limites , que
na fegunda Década de João de Barros fe
verão. A efta Cidade , que logo fe começou
a engrandecer , poz efte Rey por nome Ma-
laca , que em língua própria quer dizer de-
F ii grs-
Sjf. ÁSIA DE Diogo de Couto
gredo 5 porque foi ter a ella degradado , e
deitado fóra de feii antigo Reyno , e aíFi foi
crefcendo cm poucos annos , que fe fez maior
que todos os vizinhos , alTi em poder , co-
ino em riqueza , por acarretar áquelle por-
to todas as embarcações de todas as partes
cio Oriente , com o que veio a engroífar ,
e a ter iiuma certa fuperioridade fobre os
mais Reys vizinhos , como Emperador de
todos. Teve elle Rey dous filhos , o herdei-
ro chamado Manoar , o outro Cacemo : e
depois do pai viver muitos annos , fuccedco-
Ihe o filho mais velho , que receando-fe do
Irmião 5 o degradou pêra huma daquellas
Ilhas do mar , onde viveo pobremente. Rey-
nou Manoar alguns annos , e faleceo lèm
filhos , pelo que os do Reyno foram buf-
car o Irm.âo , e o juraram por Rey. Em tem-
po defte foram ter a Malaca algumas náos
dos portos de Arábia , e veio hum anno nel-
las hum CaíTiz pêra ir pregar a Ley de Mafa-
mede por aquellas partes. Eíle ficando alli com
ElRey , aíli fe lhe affeiçoou , e elle lhe re-
prefentou a largueza de fua feita , que o con-
vcrteo a ella , e lhe mandou o nome , e lhe
poz ode Mahamede por honra do feu Pro-
feta , e lhe deo o titulo de Xá , chaman-
do-lhe Xá Mahamede. Eíle foi o primeiro
Rey Mouro, que Malaca teve, o que fuc-
ccdeo mui perto aos aunos do Senhor de
1384-
Década IV. Liv. II. Cap. I. 85'
1384. em que começaremos a origem dos
Reys Mouros. Viveo cíle muitos annos , e
fuccedeo-lhc leu filho Manfor Xá , c a elle
ícu filho Malafar Xá , a efte feu filho Ale-
vidim , e a elle também feu filho Mahame-
de Xá 5 ( que foi a quem Aífonfo d'Albo-
querque tomou a Cidade de Malaca , ) que
fe paíTou pêra Muar , até que António Cor-
rêa o lançou do Pago , como na fegunda
Década de João de Barros fe conta , e dal-
li fe palTou á Ilha de Bintao feíTenta léguas
ao nafcente de A-Ialaca , fora do eílreito de
Sincapúra pegada a terra firme , da que a
devide hum. eílreito rio que fe vai metter no
mar , e a cerca toda á roda : ao longo def-
te rio hum pedaço de fua foz eftá íituada
a Cidade , que também fe chama Bintao , e
corta pelo meio a Equinoccial. Na parte on-
de eílá a Cidade fe faz huma bahia , por-
que entra hum braço do rio , com hum ca-
nal que vai em muitas voltas, por onde en-
tram os feus juncos , e embarcações. Neile
canal mandou ElRey fazer huma eftacada
de maftos mui groíTos , que também hia em
caracol , como o canal , deixando hum tão
eílreito , que não podia nelle virar huma ga-
lé, e a Cidade mandou-a cercar de huma
tranqueira de duas faces mui larga , e grof-
la , entulhada , com feus baluartes grandes ,
e formofos j e pêra a banda que vai pêra
a ter- .
26 ÁSIA DE Diogo de Couto
aterra firme febre o rio armou huma pon-
te até a outra banda pêra lerventia da Ilha ,
em que mandou fabricar dous fortiilimos
baluartes , hum na entrada da ponte da ban-
da da Ilha, e outro na da terra firme. Nef-
tes baluartes , e na fortificação da Cidade
havia trezentas peças de artilheria de bron-
zo , de camellos até meios berços. Derre-
dor da Cidade no lufi^ar da cava havia três
ordens de crtrepcs poftos em revés , huns pê-
ra defenderem a entrada , e outros a fahi-
da , todos muito cruéis , e perigoíbs , por
ferem hervados nas pontas. Efta parte , em
que eftá a povoação , heroda muito apaula-
da, e alagadiça: c efta he a razão por que
todas fuás caías são edificadas fobre gran-
des eíleios de pão , levantadas no ar , e a
ferventia he por pontes , fó as cafas d^El-
Rcy são fundadas íobre hum tezo ; de for-
te , que com efte modo de fortificação , c
impedimento de canal, ficava a Cidade mui-
to pêra fe recear , e ElRey nella muito fe-
guro. Daqui lançava fuás Armadas fora,
com que fazia muito grande guerra a Ma-
laca , defendendo a navegação daquelles ef-
írcitos aos navios que hiam da Jaoa , e de ou-
tras partes carregados de fazendas , e man-
timentos pêra Malaca , com o que poz aquel-
]a Cidade muitas vezes em grandes traba-
lhos ;> e neceíudades ; principalmente em tem-
po
Dec. IV. Liv. II. Cap. I. E lí. 87
po do mefmo Pcro Mafcarcnhas , de que
eiie eílava muito clcandalizado. E vendo
agora que forçado havia de cfperar a inou-
çiio , que era em Dezembro , e que tinha
alli a Armada de Francifco de Sá , que hia
pêra a Sunda , determinou de ver fe podia
tirar aquelle inimigo daqueila Ilha , e caí^
tigallo como merecia. Pelo que todo o tem-
po , depois que arribou de Pulopuar até en-
tão , gaílou em apercebimentos pêra a jor-
nada. Difto foi logo ElRey de Bintao avi-
íado 5 e mandou pedir foccorro a EiRey de
Páo j que era feu genro , e elle fe preparou
pêra efperar Pêro Mafcarenhas , que fabia
que lhe havia de dar muito trabalho peia
experiência que tinha de feu faber , e esforço.
CAPITULO II.
De como Pêro Mafcarenhas par tio pêra Bin-
tao 5 c de como desbaratou hunia Arma-
da d^ ElRey de Pão : e do grande tra-
balho que os nofjòs tiveram na en-
trada do rio,
EStando Pêro Mafcarenhas preíles pcra
a jornada , mandou fazer alardo da gen-
te Portugueza , e Malaya , que havia de le^
var , e achou Portuguezes quinhentos e fín-
coenta , em que entravam os quatrocentos
da Armada de Francifco de Sá , (poílo que
Caf-
88 ÁSIA DE Diogo de Couto
Caílanheda diz , que não levou mais de tre-
zentos ; mas no protefto que Pêro Maíca-
renhas mandou á Cidade de Goa contra Lo-
po Vaz de Sampaio , como adiante fe ve-
rá , diz que quando fora a Bintao , Jevára
quinhentos e lincoenta Portuguezes , e na-
turaes feiscentos. ) E embarcando-íe , entre-
gou a fortaleza a Jorge Cabral , e íe fez á
vela com dezenove embarcações , dous ga-
leões , huma galé , quatro fuftas , dous ba-
téis grandes com mantas para baterem a Ci-
dade , quatro lancharas , íinco calaluzes , e
dous bargantins. O Governador hia na ga-
lé , Francifco de Sá em hum galeão , Aires
da Cunha em huma fufta , Fernão Serrão cm
huma caravela , António da Cunha , Duar-
te Coelho , Simão de Sou la Galvão , João
Pacheco , e outros pelas mais embarcações.
Dos Malayos hiam por Capitães dous Bandar-
ras principaes chamados Sina Raja , e Tuão
Mafamede. Com cila frota foi furgir de fron-
te da barra de Bintao , e vendo o canal , e
íís eílacadas , bem cntendeo que lhe haviam
de dar trabalho , e logo mandou fondar o
canal da bailia por Duarte Coelho , que
andou por todo elle com o prumo na mão ,
e notando o modo das eílacadas , pareceo-
lhe difficultofo entrar por alli a Armada ,
no menos fem fe arrancarem todas as efta-
cadas j e voltando a Pêro Mafcarenhas , lho
tlif-^
Década IV. Liv. II. Cap. IL 89
dific aíli , e lhe dco informação de tudo o
que vira , e da fortificação da Cidade , que
reconbeceo com muito rifco , affirmando-lhe
que querendo dcfcmbarcar na face da Ci-
díide 5 (porque nao havia outra defembarca-
çáo , ) cuílaria a vida á mor parte de fua gen-
te , aíli pela muita artilheria que tinha , co-
mo porcaufa da fortaleza da Cidade , e da
altura de íeus muros. O Governador Pêro
Mafcarenhas ouvio tudo , prefentes os Ca-
pitães 3 com cujo parecer aíTentou que fe
commetteíTe a Ilha pela ponte , por onde fe
fervia pêra a terra firme , que não havia de
eílar tão fortalecida , e que fe arrancaiTe a
eftacada pêra a Armada poder entrar den-
tro. Com efta refoluçao commetteo aquel-
le negocio a Fernão Serrão , por fer pêra
todo o feito arrifcado , eprefez-lhe íincoen-
ta homens pêra o ajudarem naquelle traba-
lho. Feroao Serrão fortalcceo o feu navio
com grandes , e fortes arrombadas pêra
defensão da artilheria dos inimigos ; e ef-
tando preftes , tomaram alguns navios de re-
mo a caravela á toa , e a embocáram por
meio do canal , e chegando á eftacada lhe
lançaram aos páos groíTos viradores , e guar-
necendo-os aos cabreftantes , pondo todos
nelles fuás forças , foram arrancando huma ,
e huma com tanto trabalho , que lhes re-
bentou o fangue pelas bocas das forças que
nos
(jo ÁSIA DE Diogo de Couto
nos peitos punham. Nifto gaílou oito dias
por ferem as eílacadas muitas, e íe deterem
em cada huma grande efpaço , e chegou a
caravela a íurgir defronte qía Cidade , don-
de o começaram a varejar com a artilhcria
foberbiífimamente , e cíle também lhe deo
fua bateria , mas fenao foram as arromba-
das , fempre fora mettido no fundo. O dia
que ifto fuccedeo chegou á viíta da Arma-
da huma de trinta e três lancliaras , que
era o foccorro d'ElRcy de Pão , que man-
dava a leu fogro , em que hiam embarca-
dos perto de dous mil homens. O Gover-
nador Pcro Mafcarenhas receando-fe , que
fe elle entraíTe os canaes , fahiíTe a Arma-
da de Bintao de dentro , e efroutra pela ban-
da de fora, e que o tomaíTem no meio , por
cafo daquellas eílreituras , e que lhe deíTcm
muito trabalho ; pelo que determinou de
mandar commetter eíla Armada em mar lar-
go , c elegeo pêra iíTo Duarte Coelho , a
quem deo quatro lancharas , e finco calahu-
zes , e elle na fua fuíla. Duarte Coelho que
era muito cavalleiro , tomando o remo em
punho , foi demandar os inimigos , e chegan-
do a tiro de berço , lhe deo fua falva de
bombardadas , de que Ihcdefapparelhou al-
gumas. Vendo os inimigos a determinação
dos noíTos , ( pofto que elles eílavam muito
de ventagem em número de embarcações,
e gen-
Década IV. Liv. 11. Cap. II. 91
e gente , ) nao oufando a efpcrar , voltaram
voga arrancada. Duarte Coelho vendo-os
ir em disbarato os íbi feguindo ás bombar-
dadas , de que lhe matou muita gente , e
tanto apertaram com elies , que fizeram va-
rar vinte e três das lancharas em huma da-
quellas Ilhas , lançando-fe logo a gente a
terra , deixando as embarcações anhotas ,
que os nofíbs tomaram com todo o feu re-
cheio 5 fem lhe cuftar golpe de efpada ; as
outras dez lancharas , por ficarem mais a bal-
ra vento foram feu caminho , que Duarte
Coelho foi feguindo com a fua galeota , e
porque era pejada do remo , mudou-fe a
hum balanço com finco, ou féis companhei-
ros , e apertando o remo as foi feguindo.
Clicgando a tiro de eípingarda , vendo os ini-
migos aquella embarcação fó , e tao alon-
gada das outras , voltaram a ella. Duarte
Coelho bem entendeo que tinha feito gran-
de erro em feguir os inimigos fó , podcn-
do-fe contentar com a vitoria que tinha ha-
vido , mas nao deixou de ir por diante com
tenção de pelejar com todos , porque antes
queria morrer que voltar. Os Mouros ven-
do que todavia aquella embarcação hia por
diante fem voltar , pararam. Duarte Coelho
vendo que nao remavam , também levou o
remo, os inimigos tornaram apertar o feu^
e elle fez o mefmo fempre com a proa nel-
les,
512 ÁSIA DE Diogo de Couto
les 5 elles todavia receando tornaram a pa-
rar 5 e Duarte Coelho fez o mefiTio , fize-
ram efta qiierena por três vezes , e como if-
to era já perto da noite , foi-fe ella ferran-
do, e cubrindo o ar, com o que o^ inimi-
gos fe fizeram em outra volta , e Duarte
Coelho fe tornou pêra a Armada , e ajun-
tando as embarcações dos Mouros fe foi
com eHas por poppa , e entrou emBintao,
onde foi muito feftejadoPero Mafcarenhas ,
e houve aquella vitoria por bom prognoíH-
CO. E aíFi difle a todos , que pois liie NolTo
Senhor começara a fazer mercês , que tivef-
fem confiança , que também lhe daria Bin-
tão.
CAPITULO III.
De carno os inimigos commettêram o navio
de Fernão Serrão , e do rife o em que fe,
vio : e de como o Governador o foccor-
reo , e commetteo a Cidade de Bin-
tão j e a tomou»
SUrto Fernão Serrão no porto de Bintao ,
depois que ( como dilfemos ) arrancou
as eílacas com hum trabalho , que fó Por-
tuguezes puderam aturar , vio-fe em muito
grande perigo , por ficar todo defcuberto a
bateria dos inimigos que de todas as par-
tes o perfeguiam , defparando no coitado
do
Década IV. Liv. II. Cap. lII. 93
cio ícu navio aqiiclla infernal multidão cie
pilouros de ferro coado , e de pedra , com
que o esburacaram por muitas partes , co-
meçando por cilas a fazer tanta agua , que
fe Ília ao fundo , e fem dúvida fe perdera
fcnao fora o grande esforço , e diligencia
com que Fernão Serrão acudio a tudo, re-
partindo os liomens pelo trabalho , com que
venciam todos aquelles rifcos. E como ti-
nha recado de Pêro Mafcarenhas que fe fof-
fe abarbar com a ponte , foi paílarrdo por
todos eíles perigos , em que gailou os mais
medonhos , e eípantofos quinze dias que fe
podem imaginar , porque em todos elles foi
ás toas 5 e nao andavam em cada hum mais ,.
que a compridao de hum virador; e todo
o tempo que fe gaitara em efcrever os mui-
tos , c grandes trabalhos , e perigos , que
efte Capitão paílbu , fora miui bem empre-
gado ; mas nao temos palavras com que o
encarecer , baila que elie fez tudo quanto
hum valerofo , e esforçado Capitão pudera
fazer até que abarbou a ponte com huma
grande grita , e alvoroço dos feus , dando
no baluarte que alii eítava huma formofa fal-
va de bombardadas , e efpingardadas. El-
Rey de Bintao íicou muito agaftado da-
quellc negocio , affrontando , e deshonrando
feus Capitães , que de corridos , e envergo-
illiados iião oufavam apparecer diante deJIe.
94 ÁSIA DE Diogo de Couto
E ajuntando-fe todos, tiaráram de fazer dar
o navio á coíla : e pêra iifo bufcárani mui-
tos ardiz até llie ireiíi cortar as amarras de
noite , e de margulho j mas foram fentidos
pela grande vigia que os noflbs tinham , e
logo furgíram com outra amarra , mandan-
do-a guarnecer , e forrar com cadeias de fer-
ro. Ao outro dia que ifto paliou , mandou
EIRcy Alacximena feu Capitão mór do mar ,
que negociaíTe todos os navios que pudef-
fe 5 e foíTe commetter a caravela: o que el-
le fez com perto de vinte lancharas , em que
levava quinhentos homens , que elíe pêra if-
fo efcolheo; e remetteo com a caravela mui
determinadamente , e a inveítio pela proa ,
e pela poppa , lançando-fe logo dentro neJía
mais de duzentos Mouros. Fernão Serrão ,
que já eftava preparado, os recebeo com gran-
de animo , travando-fe entre todos huma mui-
to afpera batalha , e deixando a proa encom-
mendada a homens de confiança , acudio á
poppa por onde hiam entrando os inimigos ,
e com feu muito valor os deteve. As lan-
charas de fora fè puzeram ás bombardadas
com a caravela , defcarregando fobre ella ef-
peíías nuves de frechas , de que o navio por
todas as partes ficou empenado , e muitos
dos noíTos encravados. Os Mouros que en-
traram pela pix)a apertaram tanto com os
noíTos, que os levaram até o convés , onde
Década IV. Liv. II. Cap. III. 95'
fetrav^ou liuma muito cruel batalha. Fernão
Serrão que andava de poppa , tanto que vio
alii o negocio tao arrifcado , deixando na-
quelle lugar os companheiros , voltou fó pê-
ra o convés 5 e como hum leão bravo fe
metteo entre os Mouros , fazendo nelles hum
grande eílrago , e com fua chegada íe de-
tiveram , porque hiam encurralando os noi-
íbs. O Governador Pêro Mafcarenhas , que
vio o trabalho em que a caravela eftava ,
não querendo arrifcar as embarcações gran-
des pela muita artilheria que da fortaleza
jugava em roda viva , pêra defender que lhe
não foííe íoccorro , chamou Duarte Coelho ,
e diíTe-lhe que ambos haviam de ir íoccor-
rer aquella caravela ; e mettendo-fe cada hum
em feu balanço , com. dez , ou doze homens
cada hum , tomaram o remo em punho , e
foram paliando por aquella fúria infernal
das bom bardadas até ciiegarem ao navio ;
e pondo as proas nas lancliaras que eílavam
a bordo , as axoráram com muitas panellas de
pólvora, fazendo lançar ao mar os que nel-
las eílavam , e fubindo á caravela acharam
Fernão Serrão cahido daquella hora no chaQ
com mais de vinte feridas , e derredor del-
le hum monte de mortos , e os Mouros mui
accezos , e determinados , e remettendo a el-
les comaquelle Ímpeto, e furor que a hon-
ra, e paixão lhes fazia levar , mettendo-fe no
meio
çó ÁSIA DE Diogo de Couto
n)cio , fizeram nelles tal eílrago , que em pou-
co efpaço mettéram a mor parte dellcs á ef-
pada , e os outros , cortados também delias ^
e do medo , fc lançaram no mar ; e o meí-
mo fizeram os da poppa , ficando a carave-
la defpejada , e todos os nollbs miuiro mal
feridos. Pêro Mafcarcnhas fez alevantar Fer-
não Serrão , e recolhello pêra a camará , e
o mandou curar perante fi, e o mefmo fez
a todos os foldados , e querendo prover a
caravela , e deixar nella Duarte Coelho , e
levar Fernão Serrão pêra a Armada , o não
confentio elle , dizendo a Pêro Mafcarenhas ,
que em quanto elíe foííe vivo defenderia a
fua caravela a todo o poder d'ElRey de
Bintão , ainda que foíTe aíTi lançado naquel-
la cama , que as feridas logo Tarariam , e
que fobre ellas eílava muito preítes pêra re-
ceber outras de novo pelo íerviço d'ElRey.
O Governador Pêro Mafcarenhas lhe agra-
deceo muito aquillo , mandando embarcar
nos balanços os foldados mais perigofos ,
porque os mais não quizeram largar o íeii
navio , nem o feu Capitão ; e deixando na
caravela alguns dos companheiros que leva-
ram , tornáram-fe pêra a Armada. Paííada
efta vitoria , determinou o Governador Pei*o
Mafcarenhas de commetter a Cidade pela
banda da terra firme , por onde eílava affen-
tado em confelho^ e pêra fazer ifto mais a
feu
Década IV. Liv. II. Cap. IIL ()'j
íeu íalvo , fez moílras de querer commetter
a Cidade pela fiice delia , pêra embaraçar
os inimigos , pêra o que mandou preparar
alguns ceíloes , e pipas , que já levava fei-
tos de Malaca , e encommendou a Sina Ra-
ja , que com os íeus Malayos , e quarenta
Portuguezes , que lhe daria , defembarcaíTe os
ceftões 5 e pipas na praia , e que logo as en-
che íTe de terra , e aHcntaíTem alguns falcões ,
e começa (Te a bater a Cidade , porque pe-
ia manha a queria commetter por alli com
todo o poder ; deitando eíla fama , porque
fe pela ventura os Malayos tivellem algu-
mas intclligencias com os de dentro , e avi-
faílem a ElRèy da parte por onde elle de-
terminava de commetter , fe defcuidaíTe das
outras. Sina Raja fez o que o Governador
jhe mandou , e pejou em terra de noite pe-
lo efcuro 5 e logo armou as pipas , e cef-
toes , e encheo tudo de terra , e aíTentou os
falcões , tudo com muita preíTa , e brevida-
de. Lac Ximena , que eftava por Capitão
naquella tranqueira , fentio a obra , e man-
dou avifarElRey, e pedir-lhe mais gente,
porque o queriam commetter por alli. Com
efte recado mandou ElRey tirar todos os
Mouros queeftavam repartidos pelas outras
eílancias , e os mandou paíTar pcra aquella ,
pela confiança que nelles tinha. Foi iia Ci-
dade grande o alvoroço quando lhe diíTc-
- Qouta, Tom, L P, L G ram
p8 ASIx\ DE Diogo de Couto
ram que os Portuguezes queriam commet-
ter por aquella parte , porque houveram que
os tinham nas mãos, e que nenhum lhes ef-
caparia. Pêro Mafcarenhas deo recado a Si-
na Raja , que tanto que no quarto d'alva viC-
fe fogo em alguma parte , fizeíTe que com-
mettia a tranqueira com grandes eftrondos ,
e alaridos , e deixando os navios em fcu lu-
gar (porque os da Cidade os não lentiíTem)
embarcou-fe com toda a gente em balan-
ços , e batéis , e em muito liiencio foi deí^
embarcar na terra firme em parte que fica-
va Jiuma Icgua da ponte , e dalli começou
a marchar entrada do quarto d' alva, miCt-
tendo-fe por huns caminhos apaulados , e
todos de vafa , em que os nolTos atolavam
até as cintas , e além diílb todos cheios de
arvores bravas , em que hiam marrar por
fer muito eíburo , e foi de feição , que efti-
veram perdidos, efeDeos os não favorece-
ra , não era poilivel corpos humanos pode-
rem fofFrer aquelles trabalhos, porque hiam
todos taes , e tão cnva fados , e quebranta-
dos, que não podiam comfigo , e paliando
por todos eftes perigos chegaram á ponte
huma hora ante manha com tamanho alvo-
roço como fe foíTem defcancar , e não ti-
veíTem por paílar outros maiores rifcos , e
trabalhos. E como a ponte da banda da ter*
ra íirme não tinha guarnição , por fenão te-
me-
Década IV. Liv. IL Cap. III. 99
merem daquella parte , foram logo entran-
do por cila, dando o Governador a diantei-
ra a Francifco de Sá , para quem íe pafla-
ram alguns Fidalgos , e Cavalleiros defejo-
fos de honra , e chegaram aonde cílava Fer-
não Serrão , que já os efperava por cílar
avifado do negocio. E como eílava abar-
bado com a ponte , faltou em terra com to-
dos os feus foldados , ainda que náo sãos
das feridas , e de envolta com os da dian-
teira foram commetter o baluarte da entra-
da da ponte , que era de madeira como dif-
femos. Os que alli eftavam de guarnição ,
como fenáo receavam daquella parte , dor-
miam defcançadamente , e nunca fentírara
coufa alguma. Os noíTos commettêram o
baluarte com muitas panellas de pólvora,
com que os inimigos defpertáram em meio
das labaredas , e ardendo neilas largaram o
baluarte , e acudiram a baixo ao poftigo por
onde a ponte fe fervia , onde já eftavam Ai-
res da Cunha , Joáo Pacheco , e outros , que
com fogo , e vaivéns arrombaram as portas
por onde entraram. E pofto que acharam
nos inimigos grande refiílencia , todavia cí^
candalizados do fogo , e do ferro , larga-
ram tudo , e foram fugindo pêra a Cidade ,
ficando o baluarte defpejado , a que Joga
puzéram fogo, que ardeo com muita bra-
veza; Sina Raja o noíTo Capitão Mfilayo ^
G ii ^ que
loo ÁSIA- DE Diogo de Couto
que eftava na praia , em vendo o fogo , co-
meçou a bater a Cidade , e com grandes
gritas 5 c eílrondos fez que commcttia a en-
trada. Lac Ximena que eílava fobre avifo ,
poz-íe a efperar os noíTos com grande alvo-
roço , porque havia que fe fatisfaria nelles
da quebra pníTada , de quando commetteo
Fernão Serrão , de que fahio cfcalavrado ,
e corrido; eefíando nefte fervor, foram dar
com elle os que fogiam da ponte , e Jhe
deram novas do que poria hia , com o que
cUe ficou fobrefakeado , e o mefmo fez El-
Rey tanto que o foube. Os noíTos foram
entrando a Cidade , indo-lhe pondo fogo
em todas as cafas , que eram de madeira ^
de que fe elle apolTou com fua braveza acof-
tumada. Vendo ElRey , que cuidava que tu-
do era mentira, fer tamanha verdade o que
lhe diíícram , não teve mais tempo que pê-
ra fe pôr em hum elefante, e fugir, lem le-
var mais que fua peíToa. Já nefte tempo hia
amanhecendo , e os noflbs viam tudo muita
bem , e hiam mais a fua vontade fazendo
pela Cidade grandes eftragos. Pêro Mafca-
renhas que hia por huma parte , encontrou-fe
com hum Capitão chamado Laxa Raja , com
perto de mil e quinhentos homens, e pondo
o Governador o guião de Chrifto no meio ,
elle fepoz diante dos feus com grande va-
lor , e esforço pelejando , e animando-os ,
e tal
Década IV. Liv. II. Cap. III. loi
e tal eílrago fez nos inimigos, que foi ef-
panto. Aqui fe aíTinaláram muito Álvaro de
Brico , e António de Brito , Simão de Sou-
ia Galvão , Aires da Cunha , Francifco de
Mello Pereira , João Pacheco , Francifco de
Sá , e outros Fidalgos , e Cavalleiros , que
todos eíle dia deram grandes provas de fuás
peíToas matando cada hum delles muitos
Mouros. O Laxa Kaja , que era grande Ca-
valleiro , teve fempre o rofto aos noíTos , fa-
zendo também grandes cavallerias , e quiz
Deos que lhe deílem duas cfpingardadas com
que fe foi logo recoiiiendo , e os feus fe
puzeram em disbarato. Pêro Mafcarenhas
lhe foi feguindo o alcance , em que os noí-
fos foldados fizeram grandes cruezas : Fran-
cifco de Sá , Fernão Serrão , Duarte Coe-
lho , e os mais que os feguiam , foram de-
mandando os paítos d^ElRej , e deram com
Lac Ximena , que já fabia da fogida d'El-
Rey 5 e também hia recolhendo-fe com hu-
ma grande companhia de Mouros , e remet-
tendo os noíTos a elles , travaram huma mui-
to cruel batalha , em que houve grandes dam-
nos ; mas como Lac Ximena pelejava com
defconfiança , vendo o eílrago que os noi-
fos faziam , largou tudo , e foi-fe recolhen-
do 5 ficando deíla feita a Cidade em mãos
dos noíTos. Seria , já quando fe acabou de
arrematar a vitoria , meio dia , e foi huma
das
102 ÁSIA DE Diogo de Couto
das maiores que na índia fe alcançou , por-
que na Cidade havia fete mil Iiomens eíco-
Ihidos 5 e muitos Mouros , de que m.orrê-
ram quatrocentos a fora muitos feridos , e
dos noílbs nao morreram mais que dous ,
ou três 5 e nenlium de nome. Havida a vi-
toria 5 mandou o Governador faquear a Ci-
dade , em que íe acharam muitos , e ricos
defpojos , porque citava com todo feu re-
ceio. Pelo muro, e bakiarte íe acharam tre-
zentas peças de artilheria , que o Governa-
dor mandou recolher. Eila noite íe agaza-
Ihou o Governador nas caías d'ElRey , man-
dando pôr Capitães nas portas que hiam pê-
ra o Sertão , e ao outro dia , e fmco , ou íeis
in^is , que durou o faço lempre fe achou
que recolher : e nelíes chegou ElR-cy de Lin-
ga , grande amigo dos Portuguezes , que
vinha em feu foccorro , com dezoito lan-
charas , o que foi recebido muito bem do
Governador, e mandou que com toda a fua
gente , e alguns Portuguezes foíTe correr a
Ilha , e trabalhaílem por haver aquelle Rey
ás maós , o que elle nao aguardou , porque
já fe tinha paífado a Viantava , onde fun-
dou nova Cidade, c em que viveo pouco,
porque logo faleceo , e lhe fuccedeo feu fi-
lho Alaiidim , que he o que Caftanheda , e
Pedro Alapheo dizem fer eíle , que Pêro
Mafcarenhas lançou fora de Bintao , fendo
na
Dec. IV. Liv.II. C AP. III. E IV. 103
na verdade feii pai, como nós o averiguá-
mos com os Embaixadores de Jor , que á
Ilidia vieram : Pela Ilha foram mortos mui-
tos Malayos , e cativas duas mil almas ; e
não tendo alli mais que fazer , mandou o
Governador pôr fogo a toda a Cidade, que
ardeo três diíis. Aqui veio ter com Pêro
Mafcarenhas o Senhor, que foi de Bintao ,
a quem aquelle Rev tomou aquella Ilha, e
lliQ pedio o reílituiíTe nella , que clle que-
ria fer vaííallo de Portugal: O Governador
lha concedeo , e lhe paítou carta de vaílal-
lagem , e de como lhe concedia aquella Ilha ,
com condição , que nunca mais elle , nem
íèus herdeiros fízeílèm alli fortaleza algum.a ,
nem trariam Armadas no mar. Ncftas cou-
fas gaftou o Governador perto de hum mcz ,
e defpedio dalli Francifco de Sá pêra a Sun-
da , e eile fe tornou pêra Malaca a efperar
a moução pêra fe ir pêra a índia.
CAPITULO IV.
Do ahoroço (jue havia na gente ãa índia
fohre o governo de Lopo Va^, de Sam-
paio : e de como fe elle fez preftes pê-
ra ir hufcar as galés dos Rumes,
T Ornando a continuar com o Governador
Lopo Vaz de Sampaio , que deixamos
em Cochim , dando expediente a muitas cou-
fas.
104 ÁSIA DE Diogo de Couto
fas , deram-lhe cartas de Goa , c de Chaiil ,
em que lhe certificavam eíbrem em Cama-
lão as galés de Rumes com determinação
de paíTarem a invernar a Dio , e dalli faze-
rem guerra a toda a índia , e irem lobre
Goa , e não fe recolherem até deitarem fò-
la todos os Portuguezes. Com eílas novas
fe malenconizou o Governador, e ajuntan-
do os Capitães , e Fidalgos a confelho , fo-
ram os mais dellcs de parecer , que foíFe ef-
perar as galés á ponta de Dio , e que alli
pelcjaíTe com ellas , e que lhe leria fácil a
vitoria j porque as tomaria <:om a artilheria
.abatida , e deííroçadas , e desbaratadas da
viagem ; e que fe lhes deííem tempo pêra
fe reformarem , e ajuntarem com a Armada
de Cambaya , fcm dúvida nenhuma fe fa-
riam fenhores da índia. Com efta refoluçao
ie começou a fazer preftes , c defpedio hum
catiir muito ligeiro a Choromandel , dirigi-
do a Ambroíio do Reg^ò , que alli eílava por
Feitor,, a quem efcrevco , e m.andou gran-
des provisões , pêra m^andar pregoar por to-
da aquella coíla , em que mandava a todos
os Portuguezes que por ella andavam , que
tanto que aquclla viíTem fe foffem logo pê-
ra Cochim onde os efperava , pêra o acom-
panharem naqueila jornada, fob pena defe-
rem havidos por traidores, e alevantado^ ,
e fe proceder contra elles , e contra fuás fa-
zen-
Década IV. Liv. IL Cap. IV. 105-
zendas , onde quer que foíTcm achadas , co-
ino elTes ; e que a todos os que pêra eiie
vieíTem perdoava quaeíquer culpas que tiveí-
fem , e aos fentenciados já , rodos os degre-
dos , e penas crimes , em que eílavam con-
demnados. Deíla Provisão zombaram todos,
porque por aquella coíla não eíbiva havido
por verdadeiro Governador. Os apparatos
da Armada hiam creícendo a mor prciTa , e
o Governador Lopo Vaz andava todos 03
dias na ribeira dando ordem , e aviamento
a tudo, e como nao ceíTavam as murmura-
ções de feu governo , e da íiiccefsâo que fe
abrio , havia muitos que publicamente di^
ziam , que fingiam aquellas novas das galés ,
pêra ter aquella occaíiao de as ir buícar por
íe aíFaítar de Pêro Mafcarenhas , e nao fe
encontrarem , por íenao pôr com ellc a di-
reito, e que pêra lhe ficar aelle melhor par-
tido , queria levar toda a Armada que ha-
via na índia , em que confiília todo o poder
.delia, porque nao ficava algum outro a Pê-
ro Mafcarenhas , e com ifto diziam também
publicamente que o não haviam de acom-
panhar , porque cada dia fe efperava por
Pêro Mafcarenhas. Tudo iílo foi ás orellias
de Lopo Vaz , do que ficou muito enfada-
do , e de feito nao queria a mor parte da
gente receber foldo , nem embarcar-fe , ef-
tando elle já de todo pêra o fazer ; e que-
rei)-
loó ÁSIA UE Diogo de Couto
rendo atalhar eítas deíbrdens \ eílando hum
Domingo áMilTa , em fe levantando o San-
tiífimo Sacramento , diíTe em alia voz : Juro
naquella Hojlia confagraàa , eyn que ejiã o
'verdadeiro Corpo de nojjb Senhor Jefus (^hri-
fto , que fiejia jornada não tive , nem tenho
outra tenção , fenão de ir hufcar a Arma-
da do Turco , e pelejar com ella , porque fe
ãjji Q não fizer , far-fe-hao elles fenhores
de toda a índia ; e por ejla fer minha ten-
cão 5 mando a todo o homem Fortuzuez , ti-
rando os da obrigação dejla fortaleza , que
logo fe embarquem comigo , e não o fazen-
do , Jãibam certo todos os que ficarem que
os hei de cafiigar gravijfimaniente. Feita
cfta diligencia , comecou-íc a embarcar , e o
meímo fizeram todos , por liaverem que era
verdadeira a ida em bufca dos Rumes , com
quem todos delejavam de íe verem ás mãos.
Podo no mar deixou por regimento ao Vea-
dor da fazenda AfFonfo Mexia , que quan-
do Pêro Mafcarenhas cliegaíTe de Malaca
áquelie porto , lhe mandaíTc notificar fua fuc-
celsão , pêra que foubeíle a mudança que El-
Rey tinha feito , pêra que nao cuidaíTe que
havia de defembarcar como Governador : e
que fe o quizeíTc fazer como Fidalgo par-
ticular , o deixafile , e quando não , que lhe
defendeíTe a defembarcacão ás lançadas. Com
eíie regimento deixou Imma carta pêra Pêro
Maf-
Década IV. Liv. II. Cap. IV. 107
Mafcarenhas pêra lha mandar á barra quan-
do alii chegaíTe , em que o confolava da mu-
dança que ElRey tinha feito nas íuccefsoes
da governança , fazendo a elle fegundo nas
próximas , fendo primeiro nas paíTadas , fa-
zendo-lhe comprimentos largamente pêra
ver fe com elles lhe podia tapar a boca. E
dada á vela antes que Janeiro fe acabaíTe ,
chegou a Cananor , aonde fe vio com Dom
Simão de Menezes 5 que alli eftava por Ca-
pitão 5 e lhe deo o mefmo regimento fobre
as coufis de Pêro Mafcarenhas , e deixou
naquella coita por Capitão mor Jorge de-
Soufa com dez , ou doze navios de remo ,
dalli fe fez á vela pêra Goa , e em Batica-
lá achou Eitor da Silveira , que (como atrás
diífemos ) deixara de paliar o eftreiro por
confelho de Chriílovao de Soufa , pela cer-
teza que havia das galés , e delíe foube to-
das as novas , com que defpedio hum catdr
ligeiro a Chaul com cartas a Chriílovão
de Soufa , em que o avifava de como hia
efperar os Rumes , e lhe pedia , que Ih^ ti-
velTe preíles todos os navios, e gente, que
pudeífe pêra o acompanhar , porque fenlo
detiveíTe alli. E indo na derrota de Goa ,
achou no caminho Fernão de Moraes em
hum navio que vinha de Ormuz com car-
tas de Diogo de Mello , e d'ElRe7 , em que
lhe faziam queixas muito grandes de Rax
Xar-
loS ÁSIA DE Diogo de Couto
Xarrafo , e lhe requeriam que o manJaíTe
levar daquella fortaleza , porque em quanto
nella eftiveíTe , não deixaria de tentar aígj-
ma novidade , como já fizera em tempo do
Governador Diogo Lopes de Sequeira. Com
iílo ficou o Governador muito enfadado ,
porque eram couías , que podiam dar muito
trabalho ao Eílado. Chegando a Goa apofcn-
tou-fe em S. Francifco , onde chamou a con-
fclho todos os Capitães , Cidadóes , Mef-
tres , e Pilotos , e lhes propoz como os
Rumes eftavam na Ilha de Camarão , e que
por alguns avifos que tivera iabia de certe-
za que haviam de invernar nella pêra em
Agollo paíTarem á índia : e que fem embar-
go deeílar aííèntado que os foíTe eíperar na
ponta de Dio , a elle llie parecia melhor il-
los bufcar a Camarão , porque os tomaria
em terra , e com as galés defemaíleadas , e
defguarnecidas , eque por nenhum caio lhes
poderiam eícapar : que viílbm todos o que
lhes parecia daquelle negocio. Debatido en-
tre todos 5 tornaram a concordar em os ir eC-
perar á ponta de Dio , aonde forçado ha-
viam de ir demandar , c que inda pêra o
fazer , era necelfario efperar pelas náos do
Reyno , que haviam de vir na entrada de
Setembro, porque não havia na índia Ar-
mada , nem gente baítantc pêra os ir alli ef-
perar ^ quanto mais illos. bufcar a Camarão ^-
aon-
Década IV. Liv. II. Cap. IV. 109
aonde forçado havia de chegar com a Ar-
mada dividida , e deílroçada , e mais rendo
exemplos de caía , dos defaftres , e perdi-
ções que paíTáram AfFonfo d'Alboquerque,
e Diogo Lopes de Sequeira quando entra-
ram aqueile eílreito , que quando elles efta-
vam tão certos na paragem de Dio , pêra
que era canfar cm os ir bufcar tão longe ?
De tudo iílo mandou o Governador fazer
hum auto aílinado por todos , e defiílio da
ida , mandando recolher a Armada pêra den-
tro. Tanto que fe iílo vio , começaram a re-
fufcitar as murmurações paíTadas , afirman-
do que fempre fora entendido ferem aquei-
las coufas do Ggvernador cumprim.entos , e
ficções pêra fe fahir de Cochim , por fe-
não encontrar alli com Pêro Mafcarenhas ,
e tornaram a haver novos bandos, e ajun-
tamentos. O Governador defpedio Manoel
de Macedo em huma caravela pêra ir a
Ormuz com Provisões , e papeis pêra pren-
der Rax Xarrafo , e levallo pêra Goa , dan-
do-lhe por regimento que tornaíTe a inver-
nar. E defpedio António de Miranda de
Azevedo Capitão mor do mar com fua Ar-
mada pcra Cochim , dando-lhe por regi-
mento que leva fie grandes vigias em Pêro
Mafcarenhas , e que encontrando-o lhe re-
querefTe da parte d'EiRey , e da fua, que
fe fo fie invernar a Cananor, ou em Cochim,
e que
lio ÁSIA DE Diogo de Couto
e que quando nao quizeíTe fenao paílar a
Goa , voItaíTe com elle até a barra , donde
o não deixaria paíTar até lho fazer a faber,
e deo-lhe huroa carta pêra lha dar , em que
o confolava , e Uie dizia , que quizeíTe tor-
nar por Capitão de Malaca , que lhe accrel-
centaria os ordenados , e faria muitas mer-
cês, lílo tratava o Governador , porque lhe
não vinha bem entrar Pêro Mafcarenhas em
Goa , porque fabia mui bem a juíliça que
contra elle tinha , e como toda a gente era
amiga de novidades , caufaria hum grande
alvoroço , e o fariam pôr com elle a direi-
to , CO ufa que IhQ nao vinha bem.
CAPITULO V.
Do qiie aconteceo a Vero Mafcarenhas
até chegar a Cochhn : e de como Ajfonfo
Mexia lhe defendeo a defembar cação : e do
que paj]bu em Cananor , e de como fe par-
tia em hum catúr fera Goa,
CHegado Pêro Mafcarenhas a Malaca ,
proveo em muitas coufas daquella for-
taleza , e como entrou o mez de Dezembro ,
negociou os navios que havia de levar pêra
Goa , e mandou embarcar a fazenda que ha-
via d'ElRey , e de vinte do mez por dian-
te fe fez á vela pêra Goa com três galeões
carregados de drogas j e fazendo fua via-
ííem ,
Década IV. Liv. II. Cap. V. iii
gcm , profpcramente chegou a (.'oulâo , onde
foi recebido do Feitor , e Alcaide inór co-
mo feu Governador : poílo que tinha regi-
mento de Lopo Vaz de Sampaio em con-
trario , e delle foube todas as coiifas que eram
paíTadas fobre as íuccefsóes , do que ficou
aíTás apaixonado ; e tomando alli confelho
fobre o que faria , lhe diíTc hum Simão Caei-
ro , que elle fizera Ouvidor geral , que fe
foíTe logo a Cochim , c caftigaííe rijamente
o Veador da fazenda , porque abrio a fuc-
cefsão ; e que pofto que já eílava aberta,
lhe não prejudicava a feu direito , porque
elle pela primeira era o verdadeiro Gover-
nador da índia. Com iíto partio Fero Maf-
carenhas , e furgio na barra de Cochim o
derradeiro de Fevereiro , hum fabbado á
tarde. O Veador da fazenda, que trazia funs
vigias 5 fabendo de fua chegada , mandou
logo dous Juizes , e èm fua companhia Duar-
te Teixeira Theíoureiro das mercadorias d*
ElRey , e Manoel Lobato feu Efcrivão ,
pêra que foíTem á náo de Pêro Mafcarenhas
a lhe notificar a nova fuccefsão de Lopo
Vaz de Sampaio , e o traslado do regimen-
to que lhe cleixára , e que lhe requereíTem
da parte d'ElRey , que obedeceííe ao dito
Lopo Vaz de Sampaio , pois era Governa-
dor da índia. Entrados eílcís homens no ga-
leão , fizeram fuás notificações a Pêro Mafca-*
II2ASIA DE Diogo de Couto
rcnhas , do que fe clle apaixonou, e diíTe^
que a fiiccefsao que le abrira era falfa , e
que não eílava aílinada por ElRey D, João ,
e que elle eílava de poíTe da governança ,
como ie via por hum auto que elle mefmo
Affonfo Mexia lhe mandara a Malaca j e
porque o íeu Ouvidor geral lhe diíTe .que
í]ão diíIimulaíTe com aqucllas couías , que
eram calo de traição , mandou logo Pêro
Mafca rcnhas fazer hum auto , em que ou-
ve os Juizes por fufpenfos , e prezos os man-
dou pêra luas caías , e a Duarte Teixeira ,
e Maneei Lobato mandou logo lançar gri-
lhões 5 e os deixou ficar prezos no galeão.
Sabido Jílo pelo Veador da fazenda, man-
dou-lhe requerer , que lhe foltafie o Thefou-
reiro , e Elcrivao das mercadorias , porque
fe poderia perder a fazenda d'ElRey , que
eílava em feu poder; mandando-lhe requerer
de novo 5 que obedeceíle a Lopo Vaz de
Sampaio como a Governador , e que fe fof-
fe pêra Goa onde o acharia , e requereria
fua juíliça. A iflo refpondeo Pêro Mafcare-
iihcis 5 que ao outro dia lhe daria a refpoíla
cm terra. O Veador da fazenda temendo-fe
que elle defembarcaíTe de noite , e que fe
metteíTe na Cidade, lepicando o íino ajun-
tou todos os cafados , e armando-fe foram
vigiar a praia, como fe nella houvelíem de
defembarcar os Rumes, que citavam em Ca-
ma-
Década IV. Liv. II. Cap. V. 113
míirão, mandando o Vcador da fazenda por
vezes requci imentos a Pêro Mafcarenhas y
que íiao deíembarcaíTe , affirmando-Ihe no
derradeiro, que lhe havia de defender por
armas a defcm.barcaçâo , porque aífi llio man-
dava o Governador da índia. Q Governa-
dor Pêro Mafcarenhas eíleve pêra paííar a
Goa 5 mas os feus lhe aconfelháram que em
nenhum modo deixaííe de defembarcar, com.'
cor de dizer que hia ouvir Mi0a aterra por
ler Domingo ; porque tanto que puzeíTe os;"
pés em terra . como era legitimo Governa-
dor , forçado lhe haviam de acudir todos
os do povo , e que então poderia prender
AíFonfo Mexia , e caftigallo conforme a fuasí
culpas. Com ifto defembarcou ao outro dia
pela m.anhã nos batéis das fuás náos , não
confentindo que algum dos feus levaíTe ar-
mas , leva. ido Ouvidor geral , e Meirinho
com fuás varas. Chegando á praia, onde o
Veador da fazenda andava em hum formofo
cavai lo acubertado , armado em coura de la-
minas , de lança , e adarga , e acompanha-
do de todos os cafados , e vendo chegar os^
batéis , mandou que feriííem a todos os que-
nelles vinham , e que os maíaíTem , fe qui-
zeíTem defem^barcar , e aí!i arremetiêram to-
dos as embarcações, íèm darem pelos bra-
dos que lhes Pêro Mafcarenhas dava , re-
querendo-lhes da parte de Deos , e d'ElRey
'Couto. Tom. L P. L H que
114 ÁSIA DE Diogo de Couto
que eftiveflem quedos , porque elJes vinham
pacificamente como Chriílaos a ouvir MiíTa.
Affonfo Mexia dando-lhe pouco de tudo ,
mandava que os lanceaíTem , como começa-
ram a fazer , fem os da parte de Pêro Maf-
carenhas terem com que fe defender. To-
dos os naturaes da terra acudiram á praia ,
e vendo fazer aquillo a hum homem , que
hia com nome de Governador, eftavam paf-
mados de coufa tão feia. Pêro Mafcarenhas
primeiro que fe pudeíTe recolher foi mui bem
efpancado , e ferido em hum braço ,, aquel-
le a que tanto núm.ero de inimigos emBin^
tão não pudera fazer nojo , virem os ami-
gos em fua própria Cidade defembarcando
pacificamente ao aíFrontarem , e makratarem ,
coufa foi nunca imaginada de Portuguezes ,
e menos caíligada de todas as que vimos ,
fendo cila dina de hum exemplar caíligo ;
porque quando nefta noíTa hiftoria fe lelTe
hum cafo tão abominável , fe achaíTe logo
junto delle a juíliça , pêra que viíTe o Mun-
do quão inteiramente os Reys de Portugal
a guardam com todos , e que a/Ii como fa-
bem remunerar ferviços , aífi tem por obri-
gação caíligar culpas , e deliílos. Em fim os
da companhia de Pêro Mafcarenhas fe af-
faftáram pêra fora , e fe tornaram pêra as
nãos bem moidos , e efcalavrados , fahindo
ferido de huma chuffada roim Jorge Maf-
ca-
Década IV. Liv. II. Cap. V. 115'
carenhas fobrinho de Pêro Mafcarenhas. E
fendo nas náos , mandou o Governador Pê-
ro Mafcarenhas fazer hum auto pelo Ouvi-
dor geral daquella reliftencia , mandando
apregoar pela Armada ao Veador da fazen-
da , e moradores de Cochim por traidores ,
e alevantados contra a Coroa Real. AfFonfo
Alexia defpedio logo hum catiir ligeiro pê-
ra Goa com cartas pêra o Governador Lo-
po Vaz de tudo o iuccedido , em que foi
Aires da Cunha, que também levou cartas
de Pêro Mafcarenhas pêra elle y e pêra to-
dos os Fidalgos , em que lhes dava conta
do que lhe Affonfo Mexia fizera , pedindo
aos Fidalgos todos , que determinaíTem qual
era o verdadeiro Governador , porque elle
não queria fenao juftiça. Affonfo Mexia man-
dou requerer ao Governador Pêro Mafcare-
nhas , que IhQ mandaífe entregar os galeões
d'ElRey com toda lua fazenda pêra fe ven-
der 5 e fe quizeífe ir pêra Goa , lhe daria
huma caravela : difto foi contente Pêro Maf-
carenhas , porque depois que fe lhe paífou
aquelle grande accidente de paixão , deter-
minou de levar o negocio per termos de
paciência , por imitar Aífonfo d'Alboquer-
que nas coufas que lhe fuccedêram com o
Vifo-Rey D. Francifco de Almeida. O Vea-
t3or da fazenda mandou a caravela a Pêro
Mafcarenhas , á que fe paífou, e recolheo
H ii com-
ii6 ÁSIA DE Diogo de Couto
comfígo os que quizeram , os mais fe foram
pêra terra , e entre elles foi Jorge Mafcarc-
nhãs , porque eílava mal , a quem o Veado r
da fazenda mandou Jogo levar prezo a Cou-
láo 5 e aíTi prendeo em ferros todos os mais
que fc defembarcáram. Pêro Mafcarenhas fe
fez á véla , com determinação de ir a Ca-
nanor efperar refpoíla de fuás cartas; e por-
que D. Simão de Menezes era feu amigo ,
onde podia fcr achaíTe melhor gazalhado
que em Cochim , e furgindo naquella bar-
ra , mandou recado a D. Simão de fua che-
gada, que Jhe mandou dizer, que lhe pe-
zava muito de fua vinda fer em tempo , em
que lhe não podia fazer ferviço algum , co-
mo feu fervidor que era , porque tinha or-
dem do Governador Lopo Vaz de Sampaio ,
em que lhe mandava , que fe foíTe ter áquel-
la fortaleza , e nella quizeíTe defembarcar
como Fidalgo particular , tão honrado , e
de tanto merecimento, que o recebeíTe con-
forme a fua peíToa ; mas que fe o quizeíTe
fazer com nome de Governador , que IJio
não confentiíTe , e elle pela que devia a fua
lealdade , não podia fazer outra coufa , por-
que Lopo Vaz eftava havido por Governa-
dor da índia , e eftava em lugar d-ElRey.
Pêro Mafcarenhas lhe miandou dizer que fa-
zia naquiilo muito bem , que não queria del-
le mais que hum catúr pêra ir nelle para
Goa,
Dec. IV. Liv. II. Cap. V. E VI. 117
Goa , por ir ainda mais razo , c com menos
fiifpeitas de querer alguma coufa por força ,
fenão por juíliça , o que lhe D. Simão lou-
vou muito , e lhe mandou hum catiir mui-
to bem negociado , em que não levou mais
que Simão Caeiro , e Lançarote de Seixas ,
e dous pagens que o ferviflem , e aíli fe par-
tio pêra Goa , parecendo-lhe , que os Fidal-
gos 5 e Capitães da índia , quando Lopo
Vaz fe não quizelTe pôr em juíliça com el-
Ic 5 lho fariam fazer , porque havia que tan-^
to que Lopo Vaz fe puzeíTe com elle a di-
reito , pelo muito que tinha , não podia dei-
xar de haver fentença contra elle.
CAPITULO VI.
Do que fez Lopo Vaz de Sampaio tanto
que teve novas de Fero Mafcarenhas : e
de como o mandou efperar na barra ,
£ o prenderam em ferros ^ e o le^
varam a Cananor.
Aires da Cunha , que atrás diflemos ,
que partio de Cochim com as cartas
pêra Lopo Vaz de Sampaio , deo-fe tanta
preíla , que chegou a Goa a quatro dias de
Março 5 e defembarcando , deo ao Gover-
nador as cartas , e papeis que Affonfo Me-
xia lhe mandava , em que lhe dava conta
de tudo o que era paífado com Pêro Maf-
ca-
ii8 ÁSIA DE Diogo de Couto
carenhas , com o que fe houve por feguro
na governança. E dando conta do cafo a
Eitor da Silveira, a Pêro de Faria, e a ou-
tros Fidalgos feus amigos , lhe aconfelhá-
ram que em nenhum caio confentifTe vir Pê-
ro Mafcarenhas a Goa ; porque fegundo a
gente andava alterada das coufas paíTadas ,
e haviam que Pêro Mafcarenhas era o ver-
dadeiro Governador , lhe acudiriam todos ,
e fe levantariam contra elle. Pareceo-Ihe ao
Governador Lopo Vaz de Sampaio muito
bem iílo , e logo efcreveo a António de
Miranda , Capitão mor do mar , que pelos
grandes inconvenientes que havia ao íervi-
ço d'ElRey vir Pêro Maicarenhas a Goa ,
que o efperaíTe no caminho , e o fizeíTe tor-
nar pêra Cananor , donde não fahiria fem
feu mandado ; e não Jhe querendo obede-
cer , o prenderia , e levaria em ferros , e o
entregaria a D. Simão , de quem cobraria
conhecimento de fua entrega ; e que fe elle
fe quizeiTe defender, o metteíTe no fundo,
fazendo-lhe primeiro todos os proteftos , e
requerimentos neceíFarios , com o que tor-
nou a mandar o mefmo Aires da Cunha ,
por quem refpondeo a Pêro Mafcarenh?.s por
íiuma carta , cujo theor hc o feguinte : JV-
KÒor , pe/a carta do Veador da fazenda ,
€ pela vojpi foube o que vos aconteceo em
Cochinij de que vós ^ Senhor ^ tendes toda
a cuh
Década IV. Liv. II. Cap. VI. 119
a culpa y pois não quí:^eftes obedecer aoí
yneus regimentos , que vos Ajf07ífo Mexia
mandou notificar , pelo que nao tenho ra^
zão de o caftigar , do que me muito peza ;
e quanto , Senhor , a vos virdes ver comi*
go 5 todos os Fidalgos que ejlao nefla Cida-
de são de parecer o não confinta , por me
haverem por verdadeiro Governador , e 7tão
terdes jujliça pêra fohre ejia matéria Jer-
des ouvido ^ pelo que nao fervia voj]a vinda
de mais , que de dar torvação a fe fazer o
que he necejfario pêra o recebimento dos Ru-
mes que efperamos , de que ha novas muito
certas', pelo que vos requeiro da parte d''El-
Rey Nojfo Senhor , e da minha vos peço
muito vos queirais quietar , e recolher pê-
ra a fortaleza de Cananor , como o Capi-
tão mor do mar vos dird , e dahi podeis
mandar requerer o que quizerdes. De Goa
hoje vinte e fete. E a Aires da Cunha , que
levou eíbs cartas , deo a Feitoria , e Alcai-
deria mor de Coulao , mandando prender
Henrique Figueira , que nclla eftava por El-
Rey 5 porque contra fórma de feu regimento
agazalhou Pêro Mafcarenhas. Aires da Cu-
nha deo eftas cartas ao Capitão mòr , que fe
defencontrou com Pêro Mafcarenhas. Tan-
to que em Goa foou a fua vinda , começou-
fe a alvoroçar toda a Cidade , e diziam que
elle era o verdadeiro Governador ^ e que co-
mo
izo ASIiV DE Diogo de Couto
mo a eflc lhe haviam todos de obedecer,
íbbre o que houve uniões, e deíconcerros ;
,e por fe recear Lopo Vaz que com lua che-
gada a Goa houvefie grandes deíaventuras ,
e que foíTe elle depoíío da governança , o
que quiz atalhar com mandar Simão de Mel-
lo feu fobrinho , e António da Silveira , que
havia de fer feu genro , com grande Arma-
da de fuílas pêra tomarem ambas as barras
de Goa , e chegando Pêro Mafcarenhas , o
prendefiem , e o levaíTe Simão de Mello ix
Cananor , e ido fez por lho aconfelharem
os Fidalgos de fua parcialidade , de que o
principal era Eitor da Silveira , a quem el-
le quiz encommendar eíla execução , de que
fe dlc efcufou , porque lhe feria mui tacha-
do. Eíla diligencia efcandalizou mais a to-
dos , que tudo o paíTado , e diziam publi^
camente , que Lopo Vaz trabalhava por Per
ro ?vlafcarcnhas nao vir a Goa pela muita
jiiíliça que tinha , e que o mandava efperar
com tamanha Armada , como fe foram buí-
car os Rumes. Ifto , e outras coufas Ihehiam
de noite em. magotes dizer de baixo da fua
janella , onde o elle ouviíTe. Hum Domin-
go eílando o Governador em S. Francifco
é Miífa com os mais dos Capitães , Fidal-
gos , Cavalleiros , e Povo , pregou o Guar-
dião 5 que era homem letrado , e Jio cabo da
pregação leo cm alta voz a fuccefsâo, por
on-r
Década IV. Liv. II. Cap. VI. 121
onde Lopo Vaz de Sampaio era Governa-
dor , e logo provou com muitas razoes , que
eftava legitimamente no cargo , e que toda
a pcffoa que dizia que elle tomava por for-
ça a governança a Pcro Maicarenhas , nao
iò lhe alevantava falfo teftemunho , mas cora-
mettia traição contra ElRcy , coufa m.uito
eílranhada entre os Portuguezes , que na fi-
delidade eram eílrcmados íobre todas as ou-
íras nações do Mundo : o que elle fe náo
envergonhava de dizer, fendo Caílelhano ,
porque era fallar verdade ; e que haviam
de cuidar os que duvidavam da juftiça de
Lopo Vaz de Sampaio , que havia elle de
fallar naquella matéria defmtereíTado , pois
nem com hum , nem com outro tinha ra-
zão alguma. E que fe naquelle negocio nao
fallava toda a verdade que entendia , que
nlli aonde cllc eílava o confundiííe NolTo
Senhor. Que requeria da parte do Santo Pa-
dre ao Vigairo Geral , que alli eftava.pre-
fente , que logo paílaííe carta de excommu-
nhão contra todos os que diíTeílem que o
Governador Lopo Vaz de Sampaio não era
legitimamente Governador ; e que cada pef-
foa que foíTe comprendida , pagaíTe dez mar-
cos de prata pêra a Sé , e que nao pudef-
fem fer abfolutos fenao peloBifpo do Fun-
chal , de baixo de cuja jurdiçao eílava toda
â índia. E que também requeria ao Ouvi,
dor
122 ÁSIA DE Diogo de CouTa
dor geral , e a todos os Fidalgos , que o-
IhaíTem por huma couía tão importante ao
ferviço de Deos , e d'ElRey , c que fou-
beíTem todos , que as guardas que eftavam
nas barras não era por fe o Governador te-
mer de Pêro Mafcarenhas , fenão por evi-
tar alvoroços , e com iílo acabou lua aren-
ga. Logo Pêro de Faria Capitão da Ci-
dade , pedio a fuccefsão ao Padre Prega-
dor 5 e a beijou , e poz na cabeça , dizen-
do que elle a obedecia ; e perguntando a to-
dos os Fidalgos que prefentcs eílavam, fc
faziam outro tanto , diíTeram que fim , do
que logo mandou o Governador fazer hum
auto , em que fe todos aíTináram pêra fe
aproveitar delle quando fofle neceíTario. Só
D. Vafco de Lima , e Jorge de Lima não
quizeram aílinar nelle , pelo que os mandou
o Governador prender cm fuás cafas. E ef-
te auto mandou o Governador aíIinar pelos
Capitães que eftavam nas barras , que eram
António da Silveira , Simão de Mello , Dom
Jorge de Noronha , Jorge de Mello , Dom
João Lobo , D. Henrique Deça , João Perei-
ra ,Franciíbo Corrêa . António Caldeira , Go-
mes do Souto-maior , Lopo Corrêa , Fran-
cifco de Brito, Paio Rodrigues de Araújo,
Garcia de Mello , António Mendes de Vaf-
concellos , Nuno Pereira , Francilco Ferrei-
ra , Gafpar da Silva , Fernão de Moraes ,
Fer-
Década IV. Liv. II. Cap. VI. 123
Fernão Rodrigues Barbas , e o mcfmo aíli-
rou António de Miranda Capitão mor do
mar, que aeíle tempo chegou á barra. Pê-
ro Mafcarenhas vindo feu caminho topou
com Gonçalo Gomes de Azevedo , homem
Fidalgo , de que foube a Armada que o cf-
perava pêra o prenderem ; e como clle hia
poílo a foíFrer tudo o que lhe fizeíTem , e
náo tratar mais que de requerer fua juíliça ,
náo lhe deo coufa alguma , antes paíTou
adiante feu caminho. Chegando á barra de
Goa aos dezefeis de Março , lhe fahíram
os navios poftos em armas , como íe foram
cfperar Rax Soleimao Capitão mor das ga-
lés dos Turcos , e chegado António da Sil-
veira a clle , o fez amAainar, e lh(^ notificou
o mandado do Governador , pedindo-lhelhe
déííe a menagem , e que de baixo delia fe
folTc metter prezo em Cananor , donde não
fahiria fem mandado do Governador Lopo
Vaz de Sampaio ; ao que elle refpondeo ,
que elle era Governador por Provisão d'El-
Rey , c que Lopo Vaz lhe fazia força , e
eftava alevantado com o eílado da índia ,
que elle vinha pacificamente naquelle catiír
com fós dous pagens a requerer fua juftiça ,
fe ativeíTe , e quando não , que não rinha
que fallar ; e que vir pedir juíliça iiao era
culpa pêra prizao , nem fe podia recear de
hum homem que tão fóhia. António da Sil-
vei-
124 ÁSIA DE Diogo de Couto
veira vendo que não queria dar a inenagjem ,
o prendeo , c lhe mandou logo lançar huns
grilhões como malfeitor. (Coufa vergonho-
ia cerro tratarem tão mal hum tão bem vaf-
fallo d'ElRey de Portugal , e de tantos íer-
viços 5 e merecimentos , vindo a pedir jufti-
ça em couía que tão claramente a tinha ; e
íe Lopo Vaz de Sampaio logo fe puzera a
direito com elle , como depois fez , não che-
gariam as coufas a tantas aírrontas , nem a
tantos rifcos , como adiante fe verão ; por-
que Pcro Mafcarenhas não queria mais fe-
•jião que fe julgaíle feu cafo , e não tendo
juftiça ir-fe pêra Portugal a pedir fatisfaçao
de feus ferviços ; mas não o queriam ouvir
nefla matéria , porque não quiz Lopo Vaz
de Sampaio fazer duvidofo o que tinha nas
mãos.) Prezo Pêro Mafcarenhas , foi logo
entregue a Simão de Mello pêra o levar a
Cananor. Simão Caeiro , e Lançarote de
Seixas 5 que com elle vinham , foram le-
vados ao tronco de Goa , e carregados de
•ferros. Simão de Mello chegou a Cananor,
e entregou Pêro Mafcarenhas a D. Simão
de Menezes , de cuja entrega fe fez hum
auto 5 em que fe aííináram todos, e tornou
a voltar pêra Goa , onde deo conta ao Go-
vernador do que paííava. Com ifto fe hou-
ve por quieto, e por feguro , e os homens
fe aíTocegáram com o medo do caftigo.
CA-
Dedada IV. Liv. II. iij*
CAPITULO VII.
Do que Chriflovão de Sonfa Capitão de Chaul
efcreveo a Lopo Vaz de Sampaio fobre
as coufas de Fero Mafcarenhas : e de co-
mo chegou a Goa prezo Rax Xarrafo Gua-
zil de Ormuz : e dos requerimentos que
Fero Mafcarenhas mandou fazer a Lo-
po Vaz de Sampaio»
CHriílovao de Soufa Capitão de Chaul
foiíbe o modo de como Lopo Vaz de
Sampaio queria proceder com Pêro Mafca-
renhas , e de como o mandava efperar na
barra pêra o prenderem , e das uniões que
cm Goa havia entre os Fidalgos fobre eíla
matéria , o que tudo eílranhou muiro , e o
praticou com os Vereadores de Chaul , que
ihediíferam, queelJe, como era peíToa tão
principal na índia , eílava obrigado acudir
áquellas coufas pelo perigo que corriam era*
tempo que havia novas de Rumes , pelo que
efcreveo logo huma carta ao Governador
Lopo Vaz de Sampaio , e a mandou a Fran-
cifco de Soufa Tavares feu fobrinho pêra
que lha déííe , que chegou poucos dias de-
pois da prizão de Pêro Mafcarenhas , e Fran-
ciíco de Soufa Tavares a deo ao Governa-
dor, que aabrio, e vio que dizia afU : tSV-
nhgr» Muito efpantado çftou efperandofe ca^
da.
120 ÁSIA DE Diogo de Couto
da dia por 'Rumes , que ficam em Camarão
cem hmna grqffa Armada , e tamanho po^
der 5 e o nojjò tão pouco , querello V* S, ain-
da diminuir com o dividir cm duas partes ,
e dar occafião a bandos ^ que em todas as
partes do Mundo he a mais abominável cou-
Ja que pôde fer , quanto mais na índia , e
nefte tempo, _E fe lhe parece que a gover-
nança he fua , porque fe Jtão porá emjufti-
^a com ler o Mafcarenhas , e não tratar
de por armas fe fuftentar no lugar , e pof-
fe em que eftd : pelo que deve V, S, de que-
rer que fe dê ofeu a Jeu dono , e que quem
tiver direito fique por Governador, De mim
lhe affirmo , que tanto me dá que ofeja hum ,
como outro , fó pretendo ver na Índia quic^
tacão 5 e paz entre os Fidalgos : pelo que
lhe requeiro da parte d^ElRey que fe ponha
em direito com Pêro Mafcarenhas , porque
lhe certifico que não hei de obedecer fen ao
a quem fe puzer em direito. De Chaul a
■dez de Março de mil quinhentos e vinte
fete, O Governador com eíla carta achou-
le muito falteado pela qualidade , e partes de
Chriftovâo de Soufa , por ícr a principal pef-
iba da índia , a quem haviam de acudir os
mais dos Fidalgos , e gente delia , fe felan-
çaíFe á parte de Pêro Mafcarenhas , o que
eftavacerto fazer, como fe declarava na car-
ta , quando vifle que ellc ufava de forca ^
e nãO'
Década IV. Liv. II. Cap. VII. 127
e não de juftiça. Efta carta cncubrio , e não
moílrou íenão a alguns Fidalgos muiro ami-
gos 5 que ficaram com ella abalados ; e ha-
vendo íbbre illo confelho , affentou-fe , que
efcrevefle o Governador a Chriílovão de Sou-
la 3 e lhe notificaíTe a prizao de Pêro Maf.
I carenhas , e como fe fizera por confentimen-
to de todos os Fidalgos , fem eftrondo , nem
divisão alguma. E aíli lho efcreveo por hu-
I ma carta , dando-lhe conta do que pafiTava ,
pedindo, que pois o negocio eftava quieto,
e elle de todos era havido por Governador ,
que o quizeíTe elle conhecer porefle, e que
efcreveíle huma carta a Pêro Mafcarenhas ,
em que lhe fizelTe a faber como havia fua
prizao por boa , e lhe aconfelhaíTe , que de-
liílille de pretender a governança , pois nel-
la não tinha juftiça. Efta carta fedeo a Chri-
ftovão de Soufa , que como não pretendia
nefte cafo mais que a quietação , e focego
entre os Fidalgos , folgou da coufa fe fazer
tão pacificamente , não deixando de lhe pa-
recer em fi mal a prizao de Pêro Mafcare-
nhas ; mas callou-fe pelo que convinha ao
eftado da índia : que pofto que a Pêro Maf-
carenhas lhe tomafiem o que era feu , con-
vinha fazerem-lhe entender outra coufa , pê-
ra que fe quietaíFe , e ElRey lhe fatisfaria
depois fua honra. E logo defpedio o mef-
mo melTa^eiro ao Governador , que era hum
Par-
128 ÁSIA DS Diogo de Couto
Pnrfeo , com hiima carta pêra ellc , e outrx
pêra Pêro Mafcarenhas aberta. O Parfeo to-
mou o caminho apreíTada, e em poucos dias*
cliegou a Goa , e deo as cartas ao Gover-
nador , que abrindo a fua vio que dizia r
Sejihor, Por efte Parfeo tive huma cartd
de V, S, em que largamente me dà co7tta
do negocio dantre elle , e Vero Mafcarenhas :
muito folgara de o faher primeiro , forque
dera antes meu parecer feni ajfeiçao , como
V, S. deve crer , e cfperar. E quanto aõ
que diz , que todos obedeciam d fua Provi-^
são , eu também lhe obedeço • efei certo que
he Governador da índia por Provisão d'^El-^
Rey Noffo Senhor por morte do Governa-
dor D. Plenrique de Menezes , que Deos
perdoe, E quanto ao que he pajjado fobre
efte cafo , we pareceo ef cu fado meu parecer ,
for ter efe negocio já fim ( feja Deos lou^
vado ! ) tanto feni alvoroço , e divisão , o
que fempre pedi a Nofo Senhor , e eflava
affds confiado fe faria bem pelo V. S. ter
entre mãos \ epois eftd feito tanto em con^
cor dia , e paz ^ não fallo nijfo, A carta pe-
va Pêro Mafcarenhas vai aberta pêra ^ fe
lhe parecer bem , mandar-lha , e fenão fa-^
ca o que quizer. Beijo as mãos de V. S,
De Chaul hoje vinte e finco de Março, Li-
da a carta , o fez também á de Pcro MaP
çarenhas, cujo tlieor he ofeguinte; Senhor^
Fui
Década IV. Liy. II. Cap. VIL 129
Fui informado do fenhor Lopo Vaz de Sam--
-paio de todo o cafo dantre vós , e elle , e
ãjji vi fuás Provisões , e os pareceres def
Jès fenhor es , qtie fe acharam em Cochim ^
e certo que tudo foi feito por feu eflilo : e
como eftas coufas efteyn em pontos de Di^
rei to 5 que muito hemfahem alguns dos que.
eftavam- prefentes , não vos deve de pare^
cer , fenão que fefez juftiça , e que os Fr a*
des , nem efjes fenhor es vo-la haviam de
querer tomar , por quanto huns por feu ha^
bit o , e outros por fu a fidalguia tinham obri-
gação haver tudo femfufpeita como viram,
E certo a meu ver , a vontade de S. A, era
fello elle por falecimento de D, Henrique,
Eu não fui informado fenão a tempo que
tudo eftava feito , por iffo foi c feu fado meu
parecer : e pois tudo efid pacífico , havei
voffa prizão em paciência , porque foi ne-
cejfaria : afflpelo que vos cumpre , como por
evitar algumas ftifpeitas de homens que de-
fejam divisões , o que pêra o tempo em que
ejiamos fora damnofo , que muito melhor
fora fer des awJoos mortos. Quiz-vos ^ Se-
nhor , efcrever efla , pofio que de vós não
tenha recebido nenhuma depois de voffa vin-
da , pêra nella vos pedir por mercê , ( co-
mo acima digo , ) hajais paciência com vof-
fas coufas , e queirais fazer efie fervi ço
a ò\ A, de vos não lembrardes agora de
Couto. Tom. I. P. I, I vof-
130 ÁSIA DE Diogo de Couto
z'offa honra por nao 'vingardes ToJJa prizao y
coufa tão contraria a feu feriei ç o , e certo
que recebais delle por ijjò aJJJnalada mer-
cê : e não demovam loflò confelho algumas
cartas de Fidalgos da Índia , porque quem
o contrario aconfelhar , não he lojjò amigo ,
€ não defeja de voJJIjs couías ferem feitas
conforme a "vojfa honra como eu. Veja , Se-
fihor , o que de mim ynanda nefta terra , faU
lo-hci j 7íão tocando neftes negócios , {por jd
terevã fim ) como feu fervi dor , e amigo que
fou de muitos dias. Beijo , Senhor , vojjas
mãos, 2)e (haul , ^c, E aííi efcreveo a
D. Simão de Menezes , e a outros Fidalgos y
coufa que o Governador eftimou muito , e
íicou defaliviado , pareccndo-Ihe que tinha
Chriftovao de Soufa da iua parte. Eíla car-
ta defpedio logo o Governador a Pêro Mal-
carenhas , que tanto que a vio ficou faiisfei-
to , porque entendeo delia, que nao havia
Chriíiovão de Soufa íua prizao por boa,
fenão por pacificação da índia ^ e nao por-
que n?ío tiveíTe juíliça , e fícáram-lhe gran-
des efperanças de elle ainda obrigar a Lc-
po Vaz "a fe pôr com eJle a .direito , e de
D. Simão que o foltaria , porque tinha en-
tendido delle, que como entraíTe o inverno
lhe tiraria os ferros. Tudo iílo YhQ deo ou-
fadia pcra m.andar a Goa hum Diniz Ca-
melo Tabellião público de Cananor com hum
re-
Década IV. Liv. II. Cap. VIL 131
requerimento a Lopo Vaz , que fe embar-
cou no mefmo navio que levou a carta. E
chegando a Goa , eilando o Governador ou-
vindo partes , lhe deo o Diniz Camelo o
proteíto , e abrindo-o , o foi lendo , e via
que dizia aíTi : Protejlo , que vos Diniz Ca-
melo haveis de fazer ao fenhor Lopo Vaz
de Sampaio^ em que lhe requerereis da par--
te d^ElKey NoJJò Senhor , que nefte negocia
fe ponha comigo em juftiça , e não queira
levar ao cabo a força que faz em me to--
mar a governança da índia , que me El-
Rey deo por meus merecimentos \ e não o
querendo fazer , protefto por todas as per-
das , e damnos , que dijfo receber, E lhe
requerereis que folte Simão Caeiro , e Lan-
çarote de Seixas pêra requererem minha
juftiça , porque eftam prezos fem culpa , e
fue pajfareis defte protefto huma certidão
com fua refpofta , ou fem ella , pêra poder
requerer por ella minha juftiça no Keiíw.
O Governador em lendo o proteílo , o rom-
peo logo 5 e Diniz Camelo ou por palavras
que lhe alli diíTe o Governador , ou porque
o aviláram , defappareceo de Goa , e fe tor-
nou pêra Cananor , fem efperar refpofta. O
que íabido por Simão Caeiro , e Lançarote
de Seixas , paflando poucos dias logo o Go-
vernador por defronte da porta do tronco ,
de cima a grandes brados lhe requereram
I ii da
ijz ÁSIA DE Diogo de Couto
da parte d'ElRey que fizeíTe juftiça a Pêro
Maicarenhas , e que os mandsíTe íoltar pê-
ra a requererem por elle. Diílo ficou o Go-
vernador táo agaílado , que os mandou de
noA^o carregar de ferros , e defendco com
graves penas , que nenhuma peíToa mais fo-
brc eíle cafo de Pêro Mafcarenhas lhe fizef-
fe nenhum requerimento , fenao o Secreta-
rio , porque elle lhe refponderia. E mandou
lançar pregão , que fob pena de morte ne-
nhuma peiToa nomeaíTe Pêro Mafcarenhas
por Governador. O Dmiz Camelo foi ter
a Cananor mui amedrontado , e delle fou-
be Pêro Mafcarenhas o que paíTára , e co-
mo o Governador rompeo o feu protefto ,
e que lhe nâo dera refpoíla , do que lhe Pê-
ro Mafcarenhas pedio hum inftrumento em
pública fórraa. D. Simão de Menezes foou-
Ihe aquelle negocio mal , e bem entendco
que Lopo Vaz de Sampaio queria nelle ufar
de força , e não de juftiça , coufa que mui-
to o abalou , e determinou , fe quizeífe le-
var fua teima adiante , de lhe não obede-
cer , m.as diílimulou por então com iílo. Nef-
te tempo chegou Manoel de Macedo , que
o Governador mandou a Ormuz prender
Rax Xarrafo , como atrás contámos , que
chegando áquella fortaleza, por evitar alte-
rações , diíFimulando com o negocio , eíian-
do hum dia com o Capitão , mandaram cha-
mar
DecIV. Liv.II.Cap.VII.eVIIL 133
mar o Guazil pêra certas coufas , e como
o tiveram na fortaleza , o recolheram na
torre da menagem , e o guazilado mandou
o Governador dar a Rax Hamed , hum Mou-
ro muito principal. Rax Xarrafo fe fez preC-
tes de tudo , e o embarcaram na náo de
Manoel de Macedo . que voltou logo pêra
Goa , onde chegou nefie próprio tempo em
que andamos. O Governador o mandou
prender na torre da menagem , e depois lhe
deo a Cidade por prizao , e mandou que
fe livraíTe.
CAPITULO VIII.
Das revoltas , qus em Goa houve Johre as
coufas dos dous Governadores : e de co-
mo Eitor da Silveira , e Diogo da
Silveira fe lançaram da parte de
Pêro Mafcarenhas.
EStando as coufas nefte eílado , fendo en-
trada de Abril , pedio Eitor da Silvei-
ra ao Governador que mandaíle Pêro de Fa-
ria 3 ( que era Capitão de Goa , ) a fervir
a capitania de Malaca , de que eflava pro-
vido por EIRey , e que lhe dcíTe a elle a
de Goa, do que o Governador fe eícufou,
porque Pêro de Faria tinha também aqucl-
la capitania de Goa por ElRey , e eílava
em fua efcolha fervilla, ou Jargalla , e que
fo-
134 ÁSIA DE Diogo de Couto
fobre tudo elle íaberia delle íe havia de ir
a Malaca , e que querendo-o cile fazer, en-
tão lhe daria o que lhe pedia, e dizem que
fallára a Pêro de Faria , e que cUq Jhe diC-
fera , que nao havia de ir a Malaca. E afU
o diííe o Governador a Eitor da Silveira ,
o que elle não creo , porque lhe pareceo
que aquillo do Governador eram cunipri-
iriCntos , c que queria ter comíigo Pêro de
Faria , porque era do feu bando , e fora de
parecer que cUq era o Governador , fobre
elle ter corn elle muitos cumprimentos , fo-
bre os quaes lhe refpondeo Eitor da Sil-
veira , que bem fabia delle a verdade , mas
que não lhe pediria mais coufa alguma , nem
lhe entraria em cafa , e fe foi: o que tudo
o Governador foíFreo pelo tempo em que
eftava. Eitor da Silveira deo conta daqucl-
le negocio a alguns muito amigos , princi-
palmente a Diogo da Silveira , como muito
feu parente , a quem aconfelhou pediffe ao
Governador a capitania de Malaca , pois
Fero de Faria não queria ir entrar nella. Dicv-
go da Silveira o fez aíli , e o Governador
Jhe refpondeo , que muito folgara de lha dar ,
mas que era coufa que nao podia fer por
eílar nella Jorge Cabral da mão de Pêro
Mafcarenhas , a quem jurou por Governa-
dor ', que não a havia de entregar a pelToa al-
guma ^ fenão por Provisão do meiino Pêro
MaP
Década IV. Liv. 11. Cap. VÍII. 135-
Maícarenhas , como tinha por obrigação ,
conforme a menngeni que delia lhe dera.
Diílo ficou também Diogo da Silveira to-
mado , e não querendo acceitar neiílmns cum-
primentos do Governador , ia foi efcanda-
Jizado. E como todos Iiaviam que elJe Lo-
po Vaz não era o legitimo Governador , e
que os havia miíier a todos , todos fe lhe
queriam vender bem caros. E logo eftes
dous Silveiras começaram a publicar Pêro
Mafcarenhas por verdadeiro Governador ,
e que Lopo Vaz pelo faber mui bem , fe^
não queria pôr com elíe em julliça , indu-
zindo muitos Fidalgos a ferem de fua opi-
nião , e a tom.arem a voz de Pêro Mafca-
renhas , de que os principacs foram D. An-
tónio da Silveira , D. Triílão de Noronha ,
^^' Joí^g^ «Je CaPcro , Vafco da Cunha , Dom
Henrique Deça , D. Francifco de Caílro ,
João Fernandes Freire, Jorge da Silveira,
Francifco de Taíde , Jorge de Mello , Dio-
go de Miranda , Aires Cabral , Simão So-
dré , Marti m Vaz Pacheco , e Simão Del-
gado Qi.iadriIheiro mor , e defpedíram por
terra cartas a Pêro Mafcarenhas , em que
o certificavam de fuás tenções , por ifib que
trabalhaíTe por acabar com D. Simão que
o foltaíTe , e que na entrada do verão fe foí^
fe pêra Goa, porque elles fariam com Lo-
po Vaz que fe puzeíTc com elle a direito.
Foi
136 ASíA DE Diogo de Couto
Foi dada eíla carta, em que rodos eftes aí^
íinárain , a Pêro Maícarenhas , que a amof-
trou a D. Simão , pedindo-lhc que pois aquel-
les Fidalgos eílavam de fua parre , • e apof-
tados a lhe fazerem fazer juftiçn , que tam-
bém o devia de favorecer , e folrallo pêra
a requerer; e que julgando-fc-lhe a gover-
nança da índia , elle lhe daria a capitania
mor do mar , porque então o não poderia
fer António de Mininda ; porque a fuccef-
são que fe a brio , em que Lopo Vaz fe achou ,
eque elle eílava declarado por Capitão mor,
não podia haver eíFeito. D. Simão lhe pro-
metteo de o foltar , fe aquelles Fidalgos fe
não mudaííem de fiias tenções ; e que efcre-
veíTe elle aos amigos que tinha cm Cochim
pêra faber fe tinham ainda fua voz ; e que
requereíTe a x\ntonio de Miranda , eaoVea-
dor da fíizenda , que pois eram na índia
pcíToas tão principaes , fízefTem com Lopo
Vaz , que fe puzeíTe com elle em juíliça : e
elle ofezaili, e lhes mandou fobre iíTo gran-
des requerimentos com cartas a feus amigos
que lhos aprefentaíTem. E como o Veador
da fcízenda era muito recatado , temia de
Pcro Mafcarenhas ter algumas intellÍ2:encias
em Cochim , e por iíío tinha fuás efpias pê-
ra lhe tomarem todas as cartas , e papeis ,
que lá mandaíTe. E acertaram de tomar hu-
ma carta , que tinha o fobrefcrito tão rifca-
do,
Década IV. Liv. II. Cap. VIII. 137
do , que fe nao podia ler , e por iíTo não
fe foube pêra quem era , que dizia : Senhor ,
agora 7iovamente torno a fazer certos re-
querimentos fobre a governança da índia,
por 7ne fer requerido que os faça , e la ^
Senhor , vos ha de fer mojirado hum delles :
fei de certo que vos ha de parecer hem fa^
%ellos , pois a todos efies fenhores {digo pe-
los ynais delles^ parece mal o que fe comi-
go ufa , e defejam todos vir-lhe d mão , po-
derem alevantar o fervi ço d^ElRey Noffò
Senhor , e nao confentirem em coufas cjue
pajfam contra feu Real eftado , de que tem,
que fe lhes pôde dar muita culpa po las con-
fentirem paffar. E porém como em Goa nao
fui até qui viflo , nem ouvido , e nao paffotf>
o tempo de fazer o que agora faço , heijar-
vos-hei as mãos , porque todos vejais , e
ponhais ante vós , que António de Miran-
da , nem Ajfonfo Mexia lhes ha nunca de
parecer bem governar eu a índia , porque
governando-a , nao pertence a hum a capi-
tania mór do mar , nem ao outro a capi-
tania de Cochim , o que lhes pertence go-
vernando Lopo Vaz , e por iffo o querem
Jujientar : e cora tudo vejo que quer Deos
tornar fobre ijio como cumpre a feu fervi-
ço 5 e ao eflado Real d'^ElR.ey Noffa Senhor,
De Cananor a vinte e três de Abril de
mil quinhentos e vinte e fete. A efta carta
lhe
138 ÁSIA DE Diogo de Couto
]he refpondeo AíFonfo Mexia , que aquelle
requerimento fízeíTb ao Governador , e não
a elle , porque nao lhe podia requerer que
fe puzeíTe em juíliça fobre a governança da
índia 5 que era fua por Provisão d'£lRey \
€ o meímo refpondeo António de Miran-
da. Efta carta de Pêro Malcarenhas man-
daram logo ao Governador , pêra que fou-
beíTe que Pêro Mafcarenhas nao eílava ain-
da fora de fua opinião , porque cuidava que
o tinha feguro na prizao , e que com ella
não oufaria mais a fallar naquelías coufas.
Pêro Mafcarenhas como tinha cobrado mais
nlgum alento com as efperanças que aquelles
Fidalgos lhe deram , começou a miudar os
requerimentos com o Governador fobre fe
pôr com elle em juíliça , c algumas peíToas
que lhos deram mandou prender. Eitor da
Silveira , e mais FidaIp:os eftavam tão de-
terminados de obrigarem ao Governador a
fe pôr em direito com Pêro Mafcarenhas ,
que deixaram de o acompanhar, e favore-
ciam as coufas , e requerimentos de Pêro
Mafcarenhas , a quem o Governador defen-
ganou por huma carta que lhos nao fizeífe
mais , porque era cançar-fe , porque elle nao
havia de fazer duvidofo o que tinha por
certo por Provisão d^ElRey , do que Pêro
Mafcarenhas avifou a Eitor da Silveira , e
aos da fua parcialidade , efcrevendo-lhes ,
que
Dec.IV. Liv. II. Cap.VIII. e IX. 139
cjuc o obrigaíTem a lhe fazer juíliça , fcino
que lhe deíbbedcceíTem , como a homem que
citava alevantado com a índia ; porque íe
fíntes de entrar o verão não concíuiani aquel-
Je negocio , eftava ceiro mandallo Lopo V^iz
embarcar pêra o Reyno aííi prezo. Sobrcí
illo coníultáram rodos, e aíTeniáram que íe
não fizelTe mais coufa alguma lenao depois
de Pêro Maícarenhas eílar preíènre , porque
então com eIJe o obrigariam a tudo , e aíIi
lhe efcrevêram que como entraíTe o verão
fe foíTe pêra Goa.
CAPITULO IX.
Do protejlo , que Fero Mafc are nhãs man-
dou aos Vereadores , e Fidalgos de
Goa : e de como os aprefeíttdram
a Lopo Vaz de Sampaio.
VEndo Pêro Maícarenhas , que o Gover-
nador lhe rompera os íeus requerimen-
tos 5 fez outros de novo , com que defpedio
logo por terra hum ?vlem Vaz por quem
mandou dous proteílos , e requerimentos :
hum dclles pêra a Cidade , e Cam»era de
Goa , e outro pêra todos os Fidalgos , e
Capitães , com os traslados das fucceísoes
que fe abriram ; aíIi a em que elle fuccedeo ,
como a de Lopo Vaz de Sampaio , com os
autos que AíFonfo Mexia fez ao tempo que
íe
140 ÁSIA DE Diogo de Couto
fe abriram , em que todos , ou os mais dos
Capitães (a que mandava o tal proteíto) ti-
nham feito juramento de fazer com Lopo
Vaz que lhe entregaíle a índia , tanto que
chegalíc de Malaca , e que não confentiriani
mais a Lopo Vaz de Sampaio que foííe Go-
vernador. Efte Mem Vaz deo-fe tanta pref-
fa 5 que chegou a Goa aos fete dias do mez
de Agoílo ; e eftando os Vereadores , e Of-
íiciaes em Camará , lhes aprefentou os pa-
peis que trazia pêra elles , e o requerimen-
to que vinha dirigido ao Efcrivao da Ca-
mará 3 pêra que lho notifícaíTe , como logo
o fez 5 e dalli fe foi correr as cafas dos Fi-
dalgos 5 e Capitães com hum Tabelliao ,
que pêra iíTo tomou , e lhes notificou a to-
dos os requerimentos , e proteílos de Pêro
Mafcarenhas , e lhes dco cópia , e vifla de
todos os papeis , e apontamentos que leva-
va pêra fe moftrarem a Lopo Vaz de Sam-
paio. Nos proteílos , e requerimentos , que
a huns , e a outros mandava fazer , dizia :
>> Como por morte do Governíidor D. Hen-
» rique de Menezes , que em Cananor fale-
» cera, fe abrira a fegunda fuccefsão , e que
)) elle Pêro Mafcarenhas fuccedêra : e que
» por eftar em Malaca , o Veador da fazen-
)) da com parecer de muitos abrira a tercei-
)) ra fuccefsão , em que fe achou Lopo Vaz
)) de Sampaio , a quem o mefmo Veador
» da
Década IV. Liv. II. Cap. IX. 141
» da fazenda não quizera entregar a índia
» até não jurar , que a governaria em quan-
» to elle dito Pêro Malcarenhas não vieíTe
)) de Malaca , o que Lopo Vaz jurou , com
)> o que ficara governando em íua aufencia ,
)) como já duas vezes o fizera D. Aleixo de
)) Menezes , em quanto os Governadores
» Lopo Soares , e Diogo Lopes de Siquei-
)) ra foram ao eftreito : que agora o dito
» Lopo Vaz de Sampaio eílava alevantado
» com a dita governança , e Jha não queria
» entregar , como tinha jurado , mas antes
)) mandara que o não coníentilTem entrar em
)) Cochim 5 onde o Veador da fazenda lhe
» defendera a defembarcaçao , efpancando-o
)) a eJle , e a feus parentes , e criados. E
» querendo-fe elle dito Pêro Mafcarenhas
)) vir a eíla Cidade de Goa requerer fua juf-
» tiça , o mandara Lopo Vaz efperar com
» huma Armada grofla , como amigo , e An-
)> tonio da Silveira o prendera , e lhe lan-
)) çára ferros nos pés , como a malfeitor ,
» e o mandara pêra Cananor onde eílava :
» e que mandando requerer Lopo Vaz que
» o ouviíle , e fe puzeíTe com elle em direi-
» to , nunca o quizera fazer , antes lhe pren-
» dera Lançarote de Seixas , e Simão Caei-
» ro por requererem fua jníliça. Pelo que
» requeria a todos da parte d'ElRey NoíTo
» Senhor requereíTem ao dito Lopo Vaz áp
» Sam-
142 ÁSIA DE Diogo de Couto
» Sampaio 5 que fe puzeíTe com clle em juf-
)) tiça ; enfio o querendo fazer , que lhe deí^
D obedeceíTem , e o conheceíTem a elle Pe-
)) ro Malcarenhas por Governador, fegun-
» do a forma de fua fuccefsao ; e nao o fa-
)) zendo , que elle proteílava contra elles 10-
» dos , por todas as perdas , e damnos que
)) niílo recebeíle , e de darem conta a El-
» Rey daquelle negocio , e elle os caíligar
)) como folTe feu ferviço : e porque em ne-
)) nhum tempo allegaílem ignorância , e que
» lhe nao obedeciam por nunca lho reque-
)) rer , lho fazia agora , e lhes pedia notai-
)) fem bem as razoes que alli lhes manda-
)) va , que eram as feguintes. Por eíle auto ,
» que vos mando da fuccefsao que fe abrio
)) em Cananor , vereis como fou legitimo Go-
^) vernador da índia , o que me querem ufur-
» par por cartas miílivas , que nao tem for-
» ca contra o meu Alvará : quanto mais que
:» ainda eífas cartas sao em meu favor , por-
)) que em huma delias (que he feita a trin-
» ta de Março) diz EUley a Affonfo ?vle-
» xia 5 que lhe mandava aquellas fuccefsoes ,
-)) que fe abririam falecendo D. Henrique, e
» que das outras fe nao ufaria , e as guar-
» daria: do que fevia muito claro que pois
» já eram abertas , que fe nao podiam guar-
» dar, nem abrir as outras , queElReyman-
» dava. E ainda mais claramente fe via fer
j> ef-
Década IV. Liv. 11. Ca?. IX. 143
)> eíla a vontnded'ElRe7 na outra carta mif-
» fiva de quatro de Abril , finco dias de-
» pois da primeira , cm que não diz mais
)) fe não , que Jhe mandava duas fucceísoes ,
)) e que fiiiccendo D. Henrique fe abriííe,
)) e quando não, que a tivcíTe cm fegredo :
)) e não tornou a dizer que fe ufaíTe deitas ,
)) e das outras não : no que fe via bem , que
)) lembrando-fe EiRey nefta carta derradei-
)) ra , que as fuccefsôes que cá eílavam po-
)) deriam fer abertas , não diíTe mais que
yi aquillo que com juítiça podia dizer. O
)) que cntendeo muito mal AíFonfo Mexia ,
» porque das cartas miífivas fe cumprem as
)) derradeiras palavras , e das fuccefsôes as
» primeiras: que pois havia quafi hum anno
)) que clle tinha fucccdido na governança ,
» já fe não podia abrir fuccefsão que dif-
)) [e(í'e , por morte de D. Henrique , fenao
» de Pêro Mafcarenhas , e que tudo fizera
)) AfFonfo Mexia por Jhe querer mal , o que
)) eílava bem provado , porque o auto que
)) fez ao pé das cartas d'ElRey diz , viílo
)) como he fua vontade que fe uíe deftas , e
)) das outras não , ElRey tal não diíTe , prin-
)) cipalmenre na de Abril , que he a derra-
» deira , por onde eílá cJaro ter-me EiRey
» feito Governador da índia por morte de
)) D, Henrique , c tomei poífe da governan-
)) ca 5 e fui jurado por Governador , afii del-
^ le
144 ÁSIA DE Diogo de Couto
5) le Lopo Vaz , como de todos os Fiial-
5) gos , e Capitães , e não vejo coufa por
), onde haja de entregar a índia a Lopo Vaz.
5) Porque fe ElRey foubera que eu eíiava
)) de poíTe da governança , nao mandara tal ;
)) e ainda no mefmo Alvará de Lopo Vaz
)) me nomea ElRey por Governador da In-
)) dia , por me haver por peíToa pêra iflb :
^) e o que alguns dizem , por fe quererejn
y, efcufar , quepoítoque metiveííe nomeado
)) primeiro ElRey , me tornava agora a re-
5j vogar, tal não foi, porque ElRey ainda
)) que tudo pofla , e he feu , nunca faz fe-
» não o que he juftiça , como fe vê de hu-
5) ma Ordenação do primeiro livro , capitu-
5) lo fetenta efeis, onde diz , que fendo ca-
), fo , que faça mercê de qualquer cargo da
» adminiílração da juíliça , fazenda , ou go-
)) vernança de feus Reynos , e Senhorios ,
•)) que os poíTa tirar fem nenhuma fatisfação ,
)) fazendo nelles o que não devem a feu fer-
)) viço. Do que fe vê claro não m.e poder
)) ElRey tirar o que me tinha dado , pois
» tem de mim tão boa informação , que ain-
» da neílas fuccefsoes de Lopo Vaz me no-
)) mea por Governador, o que não houve-
)) ra de fazer fe fe houvera por defervido
» de mim. E no fegundo livro aos quarcn-
)) ta. e nove capítulos eftá outra Ordenação,
» porque xnanda, que nenhum Alvará , nenj
» Car-
Década IV. Liv. II. Cap, IX. 145-
) Cartas , e patentes fe guarde huma em
> contrario da outra , fendo da mefina lub-
ílancia , poílo que diga íem embargo da
outra 5 íalvo fe cila declaradatr.cnte diOer,
que fem embargo de ter paliado outro a
foão de tal theor. Pelo que vos requeiro
da parte d'EIRey NoíTo Senhor , que pois
cile me tem feito feu Governador , e cílou
jurado por eíTe , por hum teimo feito em
Cochim 5 em que todos cílais aíUnados ,
me queirais obedecer, e defobedecer a el-
le. E pêra que vejais quanto ferviço d'EI.-
Rey , e quietação deíle eílado pretendo ,
eu me quero pôr em juíliça , e cm direi-
to com Lopo Vaz , e derermine-fe por
vós m.efmos qual de nós he o verdadei-
ro Governador. Mas também vos lem-
bro y que quando fe abrio a terceira fuc-
cefsáo em minha aufencia , ( em que fahio
Lopo Vaz , que jurou de me entregar a
índia como eu vieiTe ; ) logo elle , e
AÍTonfo Mexia determinaram óq me não
obedecerem , e de fe alevantarcm com a
governança ; e alli logo fez mercê da ca-
pitania de Cochim a D. Vafco Deça feu
cunhado , com. eílar homiziado por mor«
te de hum homem , tendo-a promettido
a Diogo Pereira , hum Fidalgo de muitos
ferviços , e negando-a a António de Mi-
randa de Azevedo , e a Filippe de Craíto ,
Couto.Tom.LF.L K n e
146 ÁSIA DE Diogo de Couto
» e a Jeronymo de Soulh. E leni temor d'El-
» Rey fe foi a Ormuz , deixando a índia
» toda de gaerra , e lá fez muitos defervi-
» ços a ElRey , e multas mercês a muitos
» homens pêra os ter de feu bando , o que
)) não podia fazer por governar em meu lu-
)) gar ; e merccs nao as pode fazer fcnao
» hum lo Governador , efpccialmente de di-
» nheiro. Por tanto protefto de nada ler fei-
» to fenão aquillo que for com juftiça ; e
>> fobre tudo iílo me m.andou fazer as af-
)) frontas que viíles , e me tem neíla prizao
)) em que ellou. Peio que vos torno de no-
)> vo a requerer , que façais com. Lopo Vaz
» que fe ponha comigo em direito; e quan-
)) do o nao quizer fazer , o hajais por ale-
)) vantado , e me conheçais por Governa-
)) dor da índia. » Vifto eííe protefto , e re-
querimento pelos Fidalgos todos , o man-
daram também notificar á Gamara de Goa ,
e viíio pelos Vereadores , mandaram reca-
do a Lopo Vaz , que elles tinliam hum pro-
tefto pêra lhe notificar, porfer coufa do fer-
viço d'ElRey , que houveíTc por bem que
lho levaíTem ; ao que Lopo Vaz diíTe , que
lho fizcíTem^ que eile lhes refponderia.
CA-
Década IV. Liv. lí. 147
CAPITULO X.
Do que Lopo Vaz refpondeo aos protejlos
de Fero Mafcarenhas,
COm a rcfpoíia de Lopo Vaz lhe man-
daram os Vereadores notificar pelo Eí^
crivão da Camará o proteílo de Pêro Maí^
carenhas , e os apontamentos que aíTima dif*
femos , mandando-Ihe requerer da parte d'El-
Rey , que pois Pêro Mafcarenhas le com-
punha tanto , que queria pôr fuás ccufas em
juilica , o qiiizeíTe elle também confentir , e
não délTe matéria a fe dizer, que uUiva de
força , e poder , o que ElRey ihe havia de
eílranhar muito , porque até contra íi pró-
prio havia por bem requererem íeus vaíTal-
íos fua juíliça. Lopo Vaz tom.ou os apon-
tamentos de Pêro Mafcarenhas , e os foi
lendo todos \ e porque da refpofta de Lo-
po Vaz fe entenderá a fubílancia delles , os
deixaremos por abbreviar. E vidos por Lo-
po Vaz , foi refpondendo a todos por fua
ordem na maneira feguinte.
)) Quanto ao que diz Pêro Mafcarenhas ,
» que quando os Governadores paíTados hiam
)) fora da índia , deixavam em feu lugar
» quem a regeíTe , he verdade ; mas não ti-
» nham nome de Governadores , e o meu ca-
)) fo he bem defviado : porque depois de
K li . abçr-
148 ÁSIA DE Diogo de Couto
)) aberta a íuccefsao cm que ellc fe achou,
)) parccco ao Veaclor da fazenda , e ao Ca-
» pitão de Cananor com todos os Officiaes
» que prefentes eftavam , que pois cllc eíla-
)) va em Malaca , donde não podia vir tão
» cedo , que fe elcgeíTe Governador pêra as
?) necellidadcs da guerra , e da Índia : e pe-
» ra ifto fer mais á vontade d'EIRey , acor-
» dáram de abrir a derradeira fuccefsao , o
5) que logo fe fez , em que eu fuccedi , e
)) me entregaram a govci^-nança com tal cn-
» tendimenío , que vindo Pêro Mafcarenhas
» lhe entregaria a índia , como Governador
» por fucceísão , e não como commiíTario
» de outro , como fe verá pelos autos.
» E quanto a dizer , que achou cm Cc-
» chim o Veador da fazenda alevantado con-
» tra elle , digo que o fez porque elle que-
3) ria que lhe obedeccíTe como a Governa-
» dor 5 não o querendo elle fazer ás mi-
» nhãs novas Provisões d'ElRey , mandan-
» do prender os Oííiciaes que lhas foram
)) notificar.
)) E quanto ao que diz , que vinha a cf-
» ta Cidade requerer fua juíliça , a ilTo di-
)) go , que vinha mais pêra fazer uniões,
» que pêra iflb , fegundo conílou por car-
» tas que efcrcveo a alguns Fidalgos , e por
» refpollas fuás que eu tenho , que moftra-
» rei quando for tempo , c fobre fua vin-
)) da ,
Década IV. Liv. IL Cap. X. 149
» da , e prizão fe fizeram autos , porque fe
)) mollra claramente lei íerviço d'ElRey mo
» entrar em Goa,
)) E quanto á prizao de Lançarote de Sei-
)) xas , e Simão Caeiro , foi por culpas que
» me delles mandaram de Cochim , e nao
» por requererem fua juíliça, mas antes lhe
» mandei requerer por Fernão de Aguiar , e
» Diniz Camelo Tabelliáes , que requereíTem
)) tudo o que cumprilTe a elle Pêro Mafca-
)) renhas : e lhes mandei deíTem todos os
)A iftromentos que pediíTcm com minhas re-
» fpoftas , como fe verá pelos autos que dif-
» to fe fizeram,
» E quanto a dizer Pêro Mafcarenhas ,
)) que as cartas d^ElRey eram miílivas , di-
» go , que eu não governo fenão por verda-
» deira fuccefsão , que aqui dou também em
» reipofta ; e as fuccefsóes não são outra
» coufa , que cartas miílivas 3 pois todas fal-
» Iara por nós EiRe)'- , e são aílinadas por
» final rafo ; pois logo as declarações del-
» las como hão de fer fenão afiinadas pelo
» mefmo final rafo ? Eílas cartas vieram a
)) Afronfo Mexia com declaração , que fe
^ abriífem as fuccefsóes que com cilas vi-
» nham , e que fe não ufafiTe mais das que
>» elWam , e iíto por quanto no regimento
» do Veador da fazenda eílá declarada eíla
)) derradeira vontade d'ElRey , em que hou-
» ve
i5'o AS IA DE Diogo de Couto
» ve por bem governar eu a índia , c que
)) precedeíTe a Pêro Mafcarenhas , e que por
)) meu falecimento luccedeíTe çUq Pêro Mal-
» carenhas , e as melmas cartas dou por re-
» fpofta.
» E quanto ao que diz, que porferaber-
» ta a lua fucceísao fe náo iiavia de abrir
)) a minha , nem ufar delia, e que ElRey
)) diz que fe guarda ílem , e levaflem, o que
» fe nfio podia fazer fendo já abertas ; re-
» fpondo , que queria ElRcy que fe não abrif-
» fem aqueílas fuccefsoes por evitar efcan-
)) dalos , e efcufar alterações. E fe ElRey
» houvera por bem , que fendo abertas as
» fuccefsocs de Pêro Mafcarenhas , que das
» minhas fe não ufaíTe , forçado o havia de
)) declarar nas mefmas cartas , por onde fe
» moílra claro querer ElRey que fe abrif-
)) fem as minhas fuccefsoes , poíto que as
» de Pêro Mafcarenhas foíTem já abertas. E
)) quanto o que diz na carta derradeira não
)) dizer ElRey que fe abriíTe a minlia fuc-
» cefsão , baila dizello na prinieira , pois
)) todas vieram cm hum anno , e cm huma
» Ariuada.
)) E quanto ao que diz , que ElRey ha-
» via de declarar que elle Pêro Mafcarenhas
y> lhe entregaíle a índia , a iífo digo , que
» como ma havia de entregar , fe eu era
30 Governador por fucceísao , e citava em
}i pof-
Década IV. Liv. II. Cap. X. i5'i
» poíTe , e as Provisões d'EIRe7 vieram a
)) mim , a quem liavia eu de entregar a In-
» dia fenão a mim , pois delia eílava de pof-
)) fe , e deíla maneira cumpri o juramento
)) que fiz , quando me entregou o Veador
)) da fiizenda a índia , em que me obriguei
)) a entregai la a Fero Mafcarenhas , ou a
» qualquer outro Governador ^que ElRey
» mandaíTe. E quanto a dizer , que eílá de
)> poiTe , a fua foi mental , e civil , e a mi-
» nha real , adlual , peíToal , e corporal ; e
)> em quanto de mim a nao teve , a fua pof-
» fe era nenhum.a , porque de mim a hou-^
» vera de haver.
» E quanto a dizer, que fe ElRey fou-
)> bera a fua Provisão era aberta , mandara
)) que a mjnha fenáo abriíTe , a iílb digo que-
)) he entendimento de adivinhar tão repro^
)) vado em Direito , efpecialmente nos man-
)) dados d'ElRey , cuja vontade he leij fe
)) clle quer adivinhar iíTo , também eu adi-
» vinho, que ainda que ElRey foubera que
» fuás Provisões eram abertas , me mandá-
» ra as m.inhas dobradas , pelo que fallou
)) por palavra nova , dizendo que das ou-
)) trás fe nao ufaííe ; moftrando claramente,
» que ainda que delias fe tiveííe uíado , def-
» tas minhas queria que fe ufaíFe , ainda que
)) elle governaíTe a índia, que eíla he amor
)) dcrogatoria , que dizer , fem embargo >
» por-
i5'2 ÁSIA DE Diogo de Couto
» porque he de fua certa vontade. E quan-
» to á Ordena^^ão que allega tenho-Iho em
» mercê, porque faz porElRey, por qunn-
» to pôde tomar os cargos , e officios a
)> quem os tiver , lem íatisfacao , nem. en-
)) cargo de confciencia , e aíli o tirou a Pc-
» ro Mafcarenhas por fer aíli fua vontade.
)) E quanto á outra Ordenação do fegundo
» Jivro , digo 5 que por iíío fallou ElRey
)) por palavra nova , dizendo , que das de
» Pêro Mafcarenhas fe i^ao ufa ria , fenáo
>> das minhas ; e rtiais nas fuccefsoes nao ha
» tempo atempado , e tudo he d'ElRey , e
)) pode-o dar , e tirar a quem quizer , por-
» que todas as íuccefsoes vem até fua mercê.
)) E quanto a dizer que eílou alevantado
» com a índia , a iífo refpondo que lho ne-
» go , e que falia muito defcortezmente , que
7í eu tenho a índia de bom titulo por Pro-
» visões d'ElPvey mui choras , e mui boas ,
)) e approvadas por todas as peHbas de que
» EIRey conna fua fazenda , juílica , e for-
)) talezas , e por todos cílou obedecido por
)) Governador natural , e verdadeiro. E en-
» tao o era também , e por EIRey gover-
)í nava em fua aufencia , (até elle vir , ou
)) outro de Portugal. ) E nao era muito pa-
» recer a AfFonfo Mexia , que nao vielfe
)) Pcro Mafcarenhas de Malaca , porque fa-
)» bia as nccellldades que de fua peíToa ha-
» via
Década IV. Liv. IT. Cap. X. i^^
)) via neífas partes de Malaca , Sunda , Ma-
» Jiico , pêra prover áquellas fortalezas , cii-
» de elle melhor parecera , e mais tendo no-
» vas certas dos Caftelhanos que na fua com-
)) panhia vieram , e não vir-íc á índia com
)í muitos navios , e gente (que lá era ne-
)) cciTiiria) a fazer uniões, e dcfobedecer ás
)) Provisões d'EIRey , e inquietar aterra que
)) eílava muito quieta , e m.uito em juíliça ,
)) e preíles pêra o ferviço d'£lPvcy ; efe lio-
)) je ha alguns defaíTocegos , ou eícandalos ,
)) elle os caufou com feus requerimentos.
)) Pelo que bem fe vé , que o faz mais por
» teima , que por cuidar que tem juíliça ,
» pois eílamos em dez de Agoílo , e cada
'B dia efperamos por Governador doReyno.
» E quanto a taixar minha ida a Ormuz,
» eu o fiz por cartas que tive daquella for-
» taleza , em que me requereram que foíTe
» lá em pefiba , por quanto o Giiazil eíla-
)) va alevantado contra EIRey, e com tudo
)> náo quiz ir lá , fem defpachar prim^eiro a
)) Armada do eílreito , e da Sunda , de Fran-
» cifco de Sá , que ElRey mandava fazer ;
» e depois com parecer dos Fidalgos , e Ca-
» piíáes me embarquei , por haverem que era
y) necclTario pêra íegurança daquella forta-
» leza , fazendo naquella jornada muito fer-
» viço a ElRey , deixando a terra mui fe-
)í giira . e quieta , nao fazendo minha au-
» fen-
i5'4 ÁSIA DE Diogo de Couto
» fencia falta na índia , porque fui por fim
)> de Março , e tornei em fun de Setembro ,
)) deixando António de Miranda Capitão
)) mor do mar com muito boa Armada , e
» gente , e as fortalezas mui bem providas ,
» em Goa mil e duzentos homens, emChaul
)) trezentos e íincoenta , em Cananor paíTan-
)) te de duzentos , em Cochim mais de feis-
» centos 5 e não levei comigo algum navio ,
)) fenão 03 que por forca haviam de ir in-
» vernar fora. Os ferviços que tenho na In-
» dia feito , depois que fou Governador , to-
)) dos os fabem. Eíle inverno concertei to-
)) da a Armada que tenho preftes , e muito
)) bem provida pêra ir bufcar os Rumes ,
» que tenho por novas eílarem cm Cama-
)) râo , c tenho pêra iíTo muicas munições ,
5) porque fó nefta Cidade eíláo cento e tan-
5) tas pipas de pólvora , e cada mez fe fa-
» zem dez, doze mil pelouros de falcão, e
)) quatro m.il defperas de ferro coado , com
» muitos outros artifícios : e tenho toda a
)> gente que ganha foldo na índia , fem ne-
» nhuma ir a chatinar , e tenho pagos du-
)) zentos mil pardáos de foldos , fem coufa
)) alguma fahir do cofre , nem do dinheiro
^ da carga. Pelo que vos mando , e requci-
)) ro da parte d'ElRey , que mais nao fldlcis
» nas couías de Pêro Mafcarenhas , nem. con-
)) fintais fallar , nem recebais mais requeri-
li men-
Dec. IV. Liv. II. Cap. X. eXI. 15-5'
» mentos , nem me façais mais alguns , por-
» que náo ferve iífo de mais que de fazer
» uniáo no povo , perturbar o ferviço d'El-
)> Rey , e dar caufa aos vizinhos tentarem
» contra nós alguma maldade ; e deíla mi-
» nha refpoíla mandareis o traslado a Fero
)) Alafcarenhas , e me dareis a mim outro
» pêra o ter pêra minha guarda. » E os
mandou á Cidade , onde ainda hoje cílani
os próprios aílinados por elle , e Pêro Maí^
carenhas, que nós vimos, e donde tirámos
as forças fubílanciaes , por eílarem em eínlo
judicial 3 que he mui prolixo , e comprido.
CAPITULO XI.
De como os do hando de Fero Mafcareiíhas
trataram de prender Lopo Va% : e das
uniões que fohre ijjò hotíve : e de como
Lopo Vaz os foi prender a todos»
ESta refpoíla de Lopo Vaz foi dada á
Cidade , que a amoftrou aos Fidalgos
da índia 5 por lho aíli requererem, que lida
por todos , vendo que Lopo Vaz de Sampaio
em nenhuma maneira queria confentir faze-
rem-lhe nenhum, requerimento por parte de
Pêro Mafcarenhas , (no que claramente mof-
trava que ufava de força , e que elle era o
que nao tinha juftiça ,) ajuntando-íè todos os
da conjuração fobre efte negocio em cafa dé
Ei-
I5'6 ÁSIA DE Diogo de Couto
Eitor da Silveira , aflentaram que era caio
pêra lhes ElRey pedir conta diíTo , e que
lho eílranharia muito , porque pêra não con-
íèntirem tamanhas fem-razòes tinha elle na
índia tantos , e tao honrados Fidalgos. Pe-
lo que lhes pareceo que deviam de prender
Lopo Vaz como alevantado. AíTentado em
fer aííi neceíTario , o confultáram com os Ve-
readores , que lho louvaram , e ordenaram
o dia pêra iíTo , em que todos haviam de
acudir com fuás armas pêra ePie negocio ,
e começou-fe logo hum grande rumor , e
união por toda a Cidade. De todas eftas
coufas não faltou quem avifaíTe ao Gover-
nador , pelo que determinou de prender Ei-
tor da Silveira , e os mais , e o communi-
cou com Pêro de Faria , aíTentando o mo-
do como havia de fer , c deite negocio deo
conta a António da Silveira , que tinha ca-
iado de futuro com huma filha fua , e a Si-
mão de Mello , e a outros de fua valia , a
que avifou , que ao outro dia fe achaíTem
armados na rua direita em favor de Pêro
de Faria , que havia de fazer a prizão. E
aíiim ajuntando cíles Fidalgos muita gente
de fua valia mui bem armada , tomaram as
ruas direita , e a de S. Jorge , onde poufa-
va Eitor da Silveira : era iílo aos nove de
Agofto. O Governador cavalgou , e fe foi
pôr na rua direita, eílando todos preíles , e
ar-
Década IV. Liv. II. Cap. XI. i5'7
armados , e dalli foi o Capitão da Cidade
com o Ouvidor geral , e Meirinho a caía
de Eiror da Silveira , que poufava na rua
de S. Jorge , que he nas coftas da rua di-
reita ; c entrando pela rua achou muita gen-
te que acudio a Eitor da Silveira , porque
lufpeitavam que o Governador o mandava
prender : e por a coufa fer tão lupita, fo-
ram fós com as efpadas que traziam nas cin-
tas. Sabendo Eitor da Silveira que Pêro de
Faria eílava a fua porta , aíTomou-íe a hum
balcão que fazia a efcada pêra a banda de
fora , e perguntou-lhe que queria : elle lhe
diíTc , o Governador o mandava prender, e
que lhe requeria da parte d'ElRey que lhe
défle a menagem : ao que lhe elle refpon-
deo , que íubifTe aííima a lha tomar , que
elle lhe faria o que elle merecia , pois era
tão roim Fidalgo que acccitava illo prender.
Pêro de Faria mandou logo chamar o Go-
vernador , que acudio mui apreflado com
muitos que o feguiam ; e chegando á rua
de S. Jorge , vio mui grande revolta de gen-
te , que acudia a Eitor da Silveira com mui-
tas lanças , e alabardas , e já com Eitor da
Silveira eftavam todos os Fidalgos da liga.
Vendo o Governador o rifco em que aquel-
le negocio eílava , como era homem, de gran-
de animo , foi rompendo por toda a gente
até chegar defronte das caías. Diogo da Sil-
vei-
1^2 ÁSIA DE Diogo de Couto
vcira chegou ao balcão , e diíTe aos da fua
parcialidade que eftavam na rua : Não ve-
des , Senhores , ifto , que quer Lopo Vaz que
ãhi ejhi , tomar por for ^ a a governança da
índia a cuja he , nao he bem que lho con-
fintara , ( iílo difle pcra que os da rua co-
jTicçaíTcm a travar a briga , por nao ferem el-
les os primeiros , pêra Jhes não ficar em cul-
pa o mal que diíTo íe íeguiíTe. ) Lopo Vaz
ouvindo dizer a Diogo da Silveira , que elle
governava a índia por força, diíTe alto com
ira : Por força a governo , e por força a
hei de governar. E defcendo-fe do cavallo ,
cmbraçou huma adarga , e tomando huma
lança nas mãos, foi commettendo a efcada ,
bradando-lhes que fe deíTem á priísao , fem
os da rua oufarem abolir comíigo. (O que
parece que permittio Deos , porque huma fó
•cfpada que fe arrancara , tudo fe acabava ,
•porque os mais dos que eftavam na rua hou-
veram de morrer na briga , de que Lopo
Vaz não podia efcapar , porque da outra
parte eram todos os Fidalgos principaes que
havia na índia. ) Lopo Vaz foi commetten-
do a efcada , onde fe lhe atraveíTou Antó-
nio Rico Secretario do Eílado , como ho-
'inem mui acordado , e mui cavalleiro , e li-
ando-fe com o Governador , IhediíTe: Ten-
de-vos 5 Senhor , e nao fubais , que nao he
■Jerviço d^E/Rej ^ de cuja parte vos requei-
ro^
Década IV. Liv. II. Cap. XI. 15-9
ro , que não queirais pôr hoje a Índia ci
rifco de fe perder , porque ejjes Fidalgos
que emfima ejiam são muitos , e muito apa-
rentados , e muito hojírados , e eu por taes
os tenho , que fá pelo que cumpre ao fervi-
co d^ElRey cortarão por Ji ^ c fe darão
por prezos. Bradando alto aos de íima : Se-
nhores , %'ede o que fazeis , não queirais de-
fervir a ElRey , de ctija parte vos requei-
ro vos deis d prizão , porque fe não perca
hoje a Índia, Eitor da Silveira ouvindo aquil-
lo , cahindo na razão , pelo Deos mover , che-
gando ao peitoril da efcada , diííe ao Go-
vernador que fe quieraíTe, e fe rccolheíTe ,
que elle , e es outros Fidalgos fe davam por
'prezos 5 por cumprir aííi ao ferviço d'Ei-
■Rey , que clíe lhe daria conta da força que
fazia. O Capitão Pêro de Faria , que eílava
pegado com o Governador , ouvindo aquil-
lo 5 lhe pedio que fe recolheíTe , que elíe le-
varia a rodos prezos á fortaleza : fello o
Governador afíi , e Pêro de Faria fubio aííi-
rna , e diííe áquelles Fidalgos o muito gran-
de ferviço que naquelie negocio tinham fei-
to a ElRey , que lhe fizeíTcm mercê de fe
irem com elle pêra a fortaleza , onde elle
poufava , até fe quietarem aquellas coufas :
o que elles fizeram , e fe foram com elle
todos os que na caía eílavam , que eram os
ieguintes : Eitor da Silveira . D. António da
Sii-
i6o ASTA DE Diogo de Couto»
Silveira, Diogo da Silveira, D. Triílao de
Noronha , D. Jorge de Caftro , Vaíco da
Cunha , Alaríini Vaz Pacheco , Jorge da Sil-
veira , D. Henrique Deça , Diogo de Mi-
rantla , Franciico de Ta ide , Siniao Delga-
do Qi-iadrilJiciro niór , Nuno Fernandes Frei-
re , D. Franciico de Caílro , Simão Sodré ,
Jorge de Mello , Aires Cabral. E mettidos
na fortaleza , lhes tomou o Capitão as me-
nagens , de que fe fizeram autos aílinados
por elles , com o que Lopo Vaz lhe pare-
ceo ficava feguro , indo-le reconciliar com
elle os Officiacs da Camará , a quem man-
dou que refpondeíTem ao protefio de Pêro
Mafcarenhas , e lhe nrandaficm a refpoíla
iua , e delles , e que deípediíTcm Mem Vaz ,
o que logo fizeram , refpondendo a Pêro Aíaf-
carcnhas por boca do Goveiniador, que el-
ies o nao podiam obrigar , nem requerer
que fe puzcíTe em direito com elle fobre a
governança, poríaberem que eftava de pof-
iè , e obedecido por Governador por Pro-
visão d^ElRey , e que requercndo-lhe o que
elle queria , parecia pôr em dúvida a Pro-
visão d'EÍRey , que qUc fó era o que podia
julgar eílas coufas , e que lhe pediam nao
quizeíTe vir a Goa , porque não ferviria de
mais, que de flizer alvoroço na gente que
era ncceííario cíliveííe quieta , e conforme
pêra pelcijarcm com os Rumes que efperar
vam^
Década IV. Liv. II. Cap. XI. i6i
vam. Com eíla refpoíla , e com a de Lopo
Vaz , que lhe deram autentica , fe partio Mem
Vaz outra vez por terra , levando também
cartas dos Fidalgos prezos pêra Pêro Maf-
carenhas , em que íe remetriam a Mera Vaz
nas couías paíTadas , pedindo-lhe de novo ,
que em todo calo vieíTe a Goa , porque tu-
do fe fliria bem. Lopo Vaz por nao querer
ter todos os Fidalgos contra ií , mandou íol-
tar dos que eílavam prezos os que tinham
menos culpa , que eram - Vaíco da Cunha ,
D. Triílao de Noronha , Martim Vaz Pa-
checo , Jorge da Silveira, D. Henrique De-
ça , Diogo de Miranda, Francifco de Taí-
de 5 Simão Delgado , Nuno Fernandes Frei-
re , D. Francilco de Caílro , Simão Sodré ;
deixando ficar prezos , Eitor da Silveira ,
Diogo Silveira , D. António da Silveira , e
D. Jorge de Caílro , por ferem cabeças da
conjuração ; e a Aires Cabral , e Jorge de
Mello mandou lev^ar prezos pêra a forta-
leza de Baneílarim , por alvoroçadcres do
povo , mandando-lhes lançar ferros. E no
fim do mez de Agoílo , por fe recear ainda
dos Silveiras , tratou de os mandar prezos
a Cochim em hum catur muito pequeno ,
de que elles foram avifados , entendendo mui
bem que aquillo tratava o Governador mais
pêra ver fe fe podiam perder no m.ar , por-
que o tempo era m.uito verde, que por lhes
Couto. Tom, L P, L L ef-
i6z ÁSIA DE Diogo de Couto
eftreitar a prizao , e lhe mandaram febre if-
fo fazer proteílos , e requerimentos , dizen-
do ncllcs , une eram os principaes Fidalgos ,
que EIRcy tinha na índia , e que não era
razão que os arrifcaíle em tempo tão perigo-
fo : e que acontccendo-lJies algum defaftre ,
daria conta a ElRey de fuás vidas : com o
que Lopo Vaz deíiííio de os mandar , ten-
do fobre elles grandes vigias : e ellcs mui
grande refguardo em fi , porque fe temiam
de peçonha , e fegundo a coufi eftava da-
mnada de parte a parte 3 tudo fc podia rc*
cear.
DE-
l"-
■^ f
DÉCADA (QUARTA.
L I V P. O III.
Da Hiftoria da índia.
CAPITULO I.
Do que aconteceo na jornada de Francifco
de Sd 5 e da defcripçao da Ilha de Jaoa ,
e de qual he a maior , e menor de Mar-
co Polo : e de como Francifco de Mel-
lo rendeo hiima não de Turcos na
barra de Achem,
ErxAREMos porhiim pouco as coiifas
d^antre Lopo Vaz , e Pêro Mafcare-
nhas , por darmos conta das que nef-
re tempo atrás todo do veráo aconteceram
em Maluco : e primeiro trataremos da jor-
nada de Francifco de Sá de Menezes , que
como diflemos partio de Bintao a fazer hu-
ma fortaleza na Sunda , de que temos dado
conta. ,E fazendo fua jornada, deo-lhe hum
tamanho temporal , que foi correndo com
hum bolfo de vela a vontade dos ventos ^
c foi de forte , que fe apartou a Armada ^
L ii que
164 ASIA DE Diogo de Couto
que eíleve perdido correndo cada hum por
onde pode , porque o tempo foi rijo , e lhe
durou itíUÍlos dias, em que Duarte Coelho ,
que hia em hunia náo grande, e huma ga-
lé, de cujo Capitão não achámos o nome,
e huma fulca , foram depois de muito tra-
balho tomar o porto da Sunda , e com tal
temporal que a fufta deo á coíia , e trinta
Portuguezes , que nella hiam , faiaram a ter-
ra a nado , onde logo forarn mortos pelos
Mouros da terra , que eram inimigos , por-
que o Pvey que queria dar fortaleza era mor-
to , e o inimigo com quem tivera a guerra
lhe tinha tomado o Reyno, e eíbva a eílc
tempo na Cidade de Banta , principal do
Reyno , com muita gente pêra acabar de o
fujeitar. O que tanto que vio a noíTa Ar-
mada , com.o fibia que o Rey paliado man-
dara oíFerecer aos Portuguezes fortaleza na-
quclle porto , quiz-fe vingar nos noíTos. A
náo , e a galé eíliveram tam.bem dadas á
coíla , fe Decs milagrola mente os nao fal va-
ra. Duarte Coelho foube logo o que fizera
á gente da fuPta , e como a terra eílava em
divisões , e Iiouve que era tempo perdido
efperar alli mais , porque nao fabia que fe-
ria feito do Capitão mòr : c aífi abonançan-
do o tempo fe fez á vela pêra Malaca. Fran-
çifco de Sá foi correndo o temporal com
que ferrou a coíla da Jaoa , por onde foi
en-
Década IV. Liv. III. Cap. I. i6^
encontrando os feus navios , que todos ajun-
tou no porro de Faneruca. E porque lerá
razão darmos a conhecer cila terra , faremos
delia huma breve defcripção , e m^oílraremos
quaes são asjaoas maior, e m.enor de Mar-
co Polo 5 por tirarmos a confusão que diíTo
houve antre os Geógrafos modernos. Pelo
que fe ha de faber , que eíla Ilha da Jaoa
quaíi que quer imitar a figura de hum por-
co deitado fobre as mãos , por cujo focinlio
paíTa aqueile canal que chamam de Balabuão ,
e por de baixo dos pés o outro a que cha-
mam o boqueirão da Sunda , que he mui
continuado das noíTas náos. Efta Ilha ellá
lanhada direitamente ao Rumo , a que os
mareantes chamao Leíle Oeíle : terá de com»-
prido cento e íeíTenta léguas , e de largura
no mais largo fetenta. Aquella parte das
codas, que lhe fcam da banda do Sul, não
he tratada de nós , nemt fe lhe fabcm portos ,
nem bahias; m^as da outra parte da barriga ,
que he a da banda do Norte , he mui tra-
tada 5 e communicada de noíTos navios , e
tem muitos , e bons portes j e ainda que ro-
da a coíla he mui fuja , e cheia de baixias ,
todavia, pela continuação são feus canaes ,
e forgidouros mui fabidos , e raramente acon-
tece defaftre a navio algum. Tem muitos
Pvcynos por efla banda do marítimo , huns
íujeitos aos outros ; e começando da cabe-
ça
i66 ÁSIA DE Diogo de Couto
ça , ou da banda do Levante , iremos no-
meando os de que temos conhecimento. O
Valle 5 Paneruça 5 Agafai, Sodayo , Paniâo ,
( cujo Rcy refide peio fertao trinta léguas ,
e he como Emperador dcíles , e de outros
adiante , ) Tubao , Berodao , Cajoao , Japa-
rá 5 ( cuja Cidade principal íe chama Ccri-
nhamá , três léguas pela terra dentro , e a
Cidade de Japará eílá á borda eia agua , )
Damo , Margao , Banta , Sunda , Andrcguir ,
onde ha muita pimenta. Efte Reyno tem
hum rio por onde ella fa.be chamado Jan-
de 5 pelo ferrão tem muitos Reys que fe
chamam Gunos , que vivem em ferras afpe-
riílimas , sao brutos , e falvagens , e muitos
deíles comem carne humana. Elbs ferras co-
mo diíTemos são altiílimas , e algumas delias
lançam fogo pelos cumes , como a Ilha de
Ternate : cada Rey deíles que nomeamos
tem lingua fobre li, mas quaíi todos fe en-
tendem por ellas . como nós com os Galle-
gos , e Caílelhanos. Efte Reyno da Sunda ,
de que falíamos , he muito profpero , e abaf-
tado , e fica lançado entre as terras de Jaoa ,
e Çamatra , porque por antre ambas fe faz
aquelle boqueirão que chamam, da Sunda.
Tem efte Reyno muitas Ilhas adjacentes , que
correm do longo delle para dentro do bo-
queirão , mui perto de quarenta léguas, e
fíca a Cidade de: Banta no meio defte cftrei-
to.
Década IV. Liv. III. Cap. I. 167
to , que no mais largo terá vinte e cinco
léguas , e em partes doze , e no mais cílrei-
to íeis : todas as fuás Ilhas tem muito pou-
ca agua , mas muita , e boa madeira , algu-
mas sáo povoadas ; e huma pequena , que Cx*
tá na entrada do boqueirão da banda do
Levante , que fe cjiama Maçar, affirmam
que tem muito ouro. Os portos principaes
do Reyno da Sunda são Banta , Ache , Xa-
catara, por outro nome Caravao , aos quaes
vam todos os annos mui perto de vinte lom-
mas 5 que são embarcações do Chincheo ,
huma das Províncias marítimas da China ,
a carregar de pimenta , porque dá eíle Rey-
no todos os annos oito mil bares delia , que
são trinta mil quintaes. A Cidade de Ban-
ta eílá em altura de íeis gráos do Sul , íi-
tuada em hum.a enceada tão larga , c formc-
ía , que de ponta a ponta terá três Icguas ,
fica a Cidade em meio , que feria de com-
prido oitocentas e íir.coenta braças , e de
longo por huma das bandas , que he a do
mar, quatrocentas, mss pelo ferrão hemais
com^prida. Paíía por meio da Cidade hura
formofo rio , porque podem entrar juncos ,
e galés , que deita hum braço por huma ilhar-
ga da Cidade menos capaz, porque não en-
tram por elle fcnao embarcações pequenas
até catures. Tem a Cidade a huma parte
huma fortaleza , cujo muro (aue he de ado*
bes)
i68 ASIxV DE Diogo de Couto
bes ) fera de largura de íetc palmos , e os
baluartes de madeira de dous íbbrados ,
com boa artilheria : eíla enceada he limpa ,
em partes tem lama, e em outras arêa : ha-
verá por toda ella de fcis até duas braças
de fundo. E por eiKender ElPvey D. João,
que tendo alli huma fortaleza íèria íènhor
de todo aquelle boqueirão , e de toda a pi-
menta daquelles Reynos, encommendou mui-
to ao Conde Almirante a mandaíTe alli ta-
zer por Francifco de Sá , e ainda hoje fe
entende que lerá mais importante , aíli pê-
ra defender a entrada aos Inglezes , e Tur-
cos, como pêra fegurança do trato, e com-
mercio daquellas partes , que he o fubílan-
cial da índia. E affi fe pratica antre os ho-
mens velhos, e antigos, que tendo ElRey
de Portugal três fortalezas , huma neíla par-
te , outra na ponta do Achem , e outra na
corta de Pegú , íicariami fechadas com três
chaves as partes do Levante , e feria fenhor
de todas fuás riquezas : e pêra iíío dam mui-
tas razoes , que nós deixamos por não fer
cumprido. Tornando á Ilha da Jaoa , he
toda ella m.uito abadada de todas as coufas
iieceffaria? á vida humana , e tanto , que del-
ta fe prove Malaca , Achem , e todos os mais
vizinhos. São os naturaes daqui, a que cha-
mam Jaós , homens tão foberbos , que cui-
dam que nenhuns outros lhes precedem , an-
tes
Década IV. Liv. III. Cap. I. 169
tcs que clles o fazem a todos ; em tanto ,
que paíTando hum Jao por huma rua , fc
acertar alguma peíToa de outra nação eílar
íobre algum poial, ou algum lugar mais al-
to , que aquclle por onde elle paíTar , fe fe
logo não defcer abaixo , até que elle paíTe ,
o matará , porque não coníente cuidar al-
guém que pode ficar mais alto que elle : e
aíFinão porá hum Jao fobre fua cabeça hum
pezo j ou carga , ainda que por iíTo o ma-
tem. São homens cavalleiros , e tão deter-
minados 5 que por qualquer offenfa que fe
lhes faz , fe fazem amoucos , pêra fe fatif-
fazerem, delia ; e poílo que lhe ponhao hu-
ma lança nas barrigas , vam-fe mettendo por
ella fem receio algum até chegarem ao con-
trario. E porque deftes amoucos em outra
parte damos melhor razão, o deixamos ago-
ra. São todos hom.ens mui exercitados na
arte da navegação , em tanto , que fe tem
por mais antigos nella que rodos , ainda que
muitos dam eíla honra aos Chins , e affir-
mami procederem dellcs os Jaós; mas he cer-
to navegarem eíles já até o Cabo de Boa
Efperança , e terem comm/unicação na Ilha
de S. Lourenço da banda de fora , aonde
ha muitos naturaes BaíTos , e Ajavados , qus
dizem procederem delles. E querendo nós
inquirir de alguns Jacs práticos daquella ar-
vore de que falia Nicoláo de Conti Vcne-
zea-
170 ÁSIA DE Diogo de Couto
2cano achar-fe na Ilha da Jaca , cm cujo
âmago diz nafcer huma verga de ferro mui
ilibtil , e de tanta virtude , que quem a
trazia apar da carne nao podia fer ferido
com alguma arma , e que muitos Jaós fa-
ziam feridas em partes de feus corpos , e
que mettiam pedacinhos deíle ferro , e tor-
iiando-as a cozer , ficando dentro perpetua-
rnente , nunca já eram feridos , do que eíles
Jr.os a quem o perguntámos zombaram bem.
E confiderando em Marco Polo , o. que fal-
ia dejaoa maior , e menor , nos parece que
efla de que tratamos lie a menor , e que a
Ilha de Çamatra he a que elle tem pela
Jaoa maior ; porque diz que a maior tem
duas mil milhas cm roda , e que náo fe vê
nella a eftrella do Norte , e que tem oito
Reynos 5 Faleh , Ba fina , Gamara, Drago-
jão, Lambri , Faofur , do que fe vê muito
claro fallar da Ilha de Çamatra , porque
quafi tem a mefma grandeza , que lhe elle
dá , e nella fenao vê o Polo Ardico , por
ficar debaixo da Equinocial , o que nao tem
cm nenhuma outra Ilha daqucllas da banda
do Norte , porque de todas ellas fe vê aquel-
ia eftrella. E amda iílo fe vê mais claro nos
Reynos que nomea , porque o de Gamara ,
não ha dúvida fenao que quiz dizer Çama-
tra , Dragojáo , que he Andreguir , Lambri y
ainda hoje conferva o nome naqiiella Ilha ,
e to-
Década IV. Liv. III. Cap. I. 171
e todos os mais que nomea , que a corrup-
ção , que nelles fez o tempo , os faz já def-
conheccr. E deixando ifto pêra outro lugar ,
( fe nos cahir mais a propoíito , ) tornando
a continuar com Fra.nçifco de Sá , depois
de ajuntar os feus navios , foi feguindo fua
derrota até tomar o porto de Bata , onde
furgio 5 mandando á terra recado de amiza-
des , e oíFerccimenros áquelle Rey , pedin-
do-lhe houveííe por bem deixar-ihe fazer
huma fortaleza naquelle feu porto , como
ElRey feu anteceílbr o mandara pedir, pê-
ra ficar o commercio entre elle , e os Por-
tuguezcs miais feguro , com o que feus Rey-
nos enriqueceriam , como fizeram todos os
do Oriente , que acceitáram a amizade d'EI-
Rey de Portugal. O Rey , que era máo ho-
mem , parecendo-Ihç que antes fe o confen-
tifle perderia o Reyno , (que iíTo tem os
tyrannos , andarem femprc timidos , e receo-
fos de lhes tom.arem o que elles ufurpáram , )
mandou-fe efcufar , com o que Francifco
de Sá fe refum.io em defembarcar em terra ,
e fazer por força , o que não queria confen-
tir por vontade. E cqmmettendo a defem-
barcaçao acJaou tal rtíiílencia , que com mor-
te de quatro homens , e outros bem efca la-
vrados, fe toruQu arecolh-er, e não queren-
do-a guardar allimais., deo á véla pêra Ma-
laca , Qi>de eliegou pouco depois d« Pêro
Maf-
172 i\SIA DE Diogo de Couto
Malcarenhas embarcado , e deixando-fe ficar
alli , dcípedio logo Francifco de Mello por
Capitão de hiima caravela chamada a Perei-
rinha 5 pêra levar cartas ao Governador , a
quem mandava pedir mais gente , e Arma-
da pêra tornar a commetter aquelie negocio.
Francifco de Mello foi íeguindo fua jorna-
da 5 correndo a cofia do Achem , e fobre
fua barra viò eftar furta huma náo á carga
pêra Meca , e tomando confelho com os
companheiros fobre o que faria , aíTentáram
que fe commetteíTe , porque não fícaíTe aquel-
la jornada fem haver hum papo quente. E
pofios em armas foram commetter a náo af-
íi á vela , que eftava já preparada pêra fe
defender, porque logo conheceram a noíTa
caravela : Eílavam os de dentro tão fober-
bos 3 que em nada eílimáram es noílos , por-
que eram trezentos homens d'arm.as Achcns ,
e quarenta Rumes , e Turcos. Francifco de
Mello chegando perto delia a começou a
csbombardear , matando-lhe daquella primei-
ra falva muita gente ; e porque a viram lao
crefpa , e cheia de gente , determinaram de
a baterem até a render , porque fenaò atre-
veram a abordalla , e aíli fe puzeram á trin-
ca batendo-a rijamente -, e quiz a fortuna , que
lhe acertaram com hum camelo ao lume
d'agua que a varou dentro , por onde fe
encheo delia, e os Mouros fe lançaram ao
mar
Dec. IV. Liv. III. Cap. I. E II. 173
mar pcra fe fal varem : os noííos fizeram nel-
ies tal m.atança que eíc a param bem poucos,
ficando todos defconfolados de fe uao ce-
varem naquellanáo, que eílava cheia de fa-
zendas , e feguindo feu caminho foram to-
mar Cochim táo tarde que náo puderam
paíTar a Goa. .
CAPITULO II.
De como D. Garcia Henriques fez pazes
com ElRey de Ti dor e , e a razão porque lo-
fo as quebrou , e de como faleceo aquelle
\ey : e das fufpeitas que houve fer ajuda--
do a ijjò com peçonha que fe lhe deo,
ENrregue D. Garcia Henriques da capitar
nía de Maluco , na vagante de Antó-
nio de Brito , (que logo fe partio pêra Ban^
da efperar a monção da índia , ) achando a
fortaleza falta de todas as couíàs , defpedio
logo Martim Corrêa em hum junco pêra
Banda , pêra ver fe achava naquelías Ilhas
algumas embarcações de Portuguezes ,. em
que fe proveíTe do neceíTario , e fazendo fua
jornada , teve hum tao grande temporal que
cíleve perdido , e chegou a Banda derroca-
do de todo 5 onde ainda achou António de
Brito 5 que o ajudou a reformar , e concertar.
Poucos dias depois delle furgíram naquelle
porto huma foma de juncos que hiam de
Ma-
174 ÁSIA DE Diogo de Couto
Malaca , de que era Capitão mor hum Fi-
dalgo chamado Manoel Falcão , que Pêro
Maícarenhas depois do negocio de Bintão
deípedio pêra Maluco com provimentos que
levava Fernão Baidaia , que hia por Elcri-
vão da feitoria deTernate. Eíles provimen-
tos rccolheo Martim Corrêa no fcu navio
com o Baidaia pêra íe logo ir pêra Ter-
natc 5 pela neceíTidade em que ficava. E an-
tes que partifie foi aviíado da gente da ter-
ra de verem andar per nntre aquellas Ilhas
duas náos grandes da feição das noflas , e
não cuidando quaes podiam fer , porque Ma-
noel Falcão vinha de Malaca , (onde não ha-
via coufa alguma pêra poder partir pêra
aquellas Ilhas , ) aíTentáram fer de Caflelha-
310S , e que não deviam de fer fós , antes po-
dia fer da companhia de alguma grande Ar-
mada , o que os fobrefaltou muito , porque
fe tal era , não hiam pêra outra parte le-
ilão pêra Tcrnate ^ com o que correria rif-
co aquella fortaleza pela pouca gente que
tinha. Pelo que Martim Corrêa requereo ú.
António de Brito , e a ?vIanoel Falcão da
parte d^ElRey foíFem foccorrer aquella for-
taleza , que eftava arrifcada , fe aquellas náos
foifem de Caftelhanos , mandando fazer Jium
ííuto do tal requerimento. António de Bri-
to não quiz tornar-fe , mas deó da gente ,
e munições j que levava a Martim Corrêa,
que
Década IV. Liv. III. Cap. II. 175*
que íe fez á véla com Manoel Falcão , e
ambos íiirgíram em l'alangame , e vendo- Ib
com D. (jarcia Jhe deram conta do que
paílava , que com o provimento , e gente
que lhe veio , diiTe , que lhe dava muito pou-
co que vieíTcm dez náos de Caílelhanos. An-
dava D. Garcia neíle tempo em contrato de
pazes com EiRey Almanfor de Tidore ,
o que encontrava muito Cachil Daroez tu-
tor , e tio de Bohat filho mais velho do Bo-
lei^c 5 que havia de herdar o Reyno como
tiveíle idade , porque depois da morte do
Pai ficou governando o Daroez , que defe-
java de eílorvar as pazes com Tidore , por-
que receava paííar-íe lá ocommercio do cra-
vo , e ficar Tcrnate comiíTo muito abatido,
e elle homiziado com aquelle Rey pelo fa-
vor que fempre deo aos Fortuguezes contra
elle. E por muito que niíTo trabalhou , as
pazes fe aíTentáram com condição , que tor-
naria o Rey de Tidore a fuíla que nas guer-
ras paíílidas tinha tomada com fua artilhe^
ria , e que entregaria todos os Portuguezes'
que lá andavam fogidos , e com outros pon-
ros que não são fubítanciaes. E porque o Rey
de Tidore foube o defgoílo que tivera dei-
tas pazes Cachil Daroez , defejando de o
confervar em amizade , (pêra ficar mais fe-
guro com a dos Portuguezes , pelo provei-
to que diíTo tiijha , ) tratou de o cafar com
liu-
176 ÁSIA DE Diogo de Couto
huma filha fua , por fe liar com elle , por-
que também como eíliveílem liados , e con-
formes 5 teriam os noííos enfreados , e nao
receberiam dos Capitães tantas offenías. Dom
Garcia foi logo aviíado deíles tratos , de que
jhe não vinha bem , porque depois de jun-
tos com qualquer achaque fe alterariam , e
dariam trabalho á fortaleza , e trabalhou de
eftorvar aquellas lianças , o que nao pode já
fer por cílarem ambos fatisfeitos : pelo que
determinou de com alguma invenção que-
brar as pazes (como logo fez) mandando
pedir ao Rey de Tidore a artilheria da fuf-*
ta 5 que nao era ainda entregue , nem o tem-
po era paíTado. A ifto fe efcufou ElRey
com di'zer que a tinha empreftada a ElRey
de Bachão , que como a arrecadaíTe a entre-
garia. Eftava neíie tempo efte Rcy de Ti-
dore muito enfermo , e mandou pedir a Dom
Garcia hum Medico pêra o curar, el!e lhe
mandou hum boticário , mas aproveitou pou-
co j porque o Rey morrco daquella doen-
ça 5 e fafpeitou-fe que o ajudaram a iíTo. O
que fabido por D. Garcia , e que eílava to-
da a Cidade occupada cm feu enterramen-
to, embarcou-fe com muita preíTa em algu-
mas corocoras , e foi fobre aquella Ilha ,
m.andando diante recado aos Regedores que
lhe mandaíTem a artilheria , fenão que ha-
via por quebrada a paz , e que alC lho no-
ti-
Década IV* Liv. IIT. Cap, II. 177
tifícaíTc. Eílc recado lhes dcrsm , cftando ain-
da o corpo d'ElRey por enterrar , ao que
UiQ refpondêram que logo lha entregariam.
E fazendo-lhes a notificação Fernão Baldaia ,
que a iíTo foi , tornou-fe a D. Garcia que
hia por caminho , e chegou a Tidore de
madruc:ada. Como todos eíravam. defcuida-
dos de tal , defembarcou D. Garcia com to-
dos os due levava , e foi entrando á Cida-
de, e pondo-lhe fogo por algumas partes,
que ateou braviíHmamente. Ao eítrondo , e
terremoto acordaram todos , nao tendo o
tento em mais que em falvar fuás peíToas ,
acoihendo-fe pêra os matos, ficando os nof-
fos fenhores da Cidade , que laquearam á
faa vontade , achando fete peças de artilhe-
ria 5 que D. Garcia mandou recolher ; e dei-
xando a Cidade poíta a ferro , e a fogo ,
tornou-fe a embarcar. Ficaram os noíTos delle
negocio com o credito perdido entre todos
aquelles Reis daquelle Arquipélago , dizen-
do-fe publicamente que não guardávamos
a fé. Pelo que defenderam logo pela m^ór
parte daquellas Ilhas noíTo commercio , naa
confentindo os noiTos nellas. Os Tidores ,
tanto que fe embarcou D. Garcia , tornáram-
fe pêra a fua Cidade, que acharam feita em
cinza , e alevantáram logo por Rey Cachii
Raxamira , filho d'ElRey Almanfor o mor-
to , que por fer muito moço fe lhe deo por
Couto. Tom, LP. L M tu-
17B ÁSIA DE Diogo de Couto
tutor a Rade Cachil , ficando a guerra de-
clarada coR-J a noiTa fortaleza , que lhe deo
bem de trabalho , con";o pelo decurib da
hiíloria fe verá.
CAPITULO III.
T)o que acontece o a Z). "jorge de Me7?ezes
72a jornada de Maluco , e de como defcuhrio
as Ilhas dos Papiias : e da Armada que par-
tio de CajlcUa pcra aquellus libas de Ma-
luco 5 e da derreta que levou até chegar a
ellas,
PArtido Dom Jorge de Menezes de Ma-
laca pêra as Ilhas de Mi^luco , como
atrás temos dito , (que foi a primeira coufa ,
em que proveo Pêro Mafcarenhas , depois
de ter recado que era Governador , ) foi iè-
guindo fua viagem pela via deBorneo, co-
mo levava por regimento. Chegando ás Ilhas
do Moro íètenta léguas de Ternate, indo de-
inandar á terra pêra íurgir , nao achou fun-
do por fer tudo á roda daquellas Ilhas mui
alcantilado , e nao fe poder iurgir fenao com
os proizes em terra ; e como D. Jorge nao
queria vizinhar-ie tanto a ella , foi-fe na vol-
ta do mar. Da Ilha foram logo viftos , e
fahíram duas almadias ás náos ; e porque
nao fe determinaram ferem Portuguezes , ou
Caílclhanos , nao fe oufáram a chegar. Dom
Jor-
Década IV. Liv. III. Cap. III. 179
Jorge lhes mandou capear, com o que Jiu-
ma das almadias fe arriícou , c chegou a bor-
do. D. Jorge lhes mandou perguntar pelo
Capitão de Maluco , e pelo cílado em que
a noíla fortaleza eílava , de que lhe nao fou-
beram dar razão , e por anoitecer fe affaf-
táram com alguns pannos , que lhes mandou
dar D. Jorge por irem contentes. De noite
acalmou o vento , ficando os noíTos navios
anhotos ; porque como não havia fundo pê-
ra furgir , nem vento pêra governar, e as
aguas por antre aquellas Ilhas corriam pêra
o Levante , como a pedra da mão , foram
levados até os lançarem fora de todas as Ilhas
em hum golfo de mar mui grande , onde
lhes deo hum temporal mui groiTo , com
que foram correndo quaíi perdidos alguns
dias 5 até haverem viíla de huma terra que
lhes pareceo Ilha , que eftava em altura de
• . . gráos do Norte , e indo-a demandar fo-
ram furgir perto , e em muito bom fundo.
Logo vieram algumas embarcações a elies ,
cm que vinham alguns homens muito pre-
tos 5 e de cabellos revoltos , como os Ca-
fres dejalofo, ou com.o os do Cabo de Boa
Efperança pêra Moçambique , e entrados nas
nãos lhes fizeram os noíTos grandes gazalha-
dos 5 mas não houve quem os entendeíFe ;
mandando com elles algumas peíTcas a ter-
ra n fallar com o feu Rey , e haver o que
M ii eí-
l8õ AS IA DE Diogo de Couto
■cila tinha , e acharam EIRey que também
tra preto , como os outros , que os recebeo
'bem , faliando-lhe por acenos , c viram ater-
ia abaílada cie mantimentos , gados , e gal-
linhas , que os nofíos mandaram refgatar por
pannos , e por calaim. Vendo D. Jorge que
não havia monção pêra tornar pêra Malu-
co 5 fenão dalii a alguns mezes , deixou-fe
alíi íicar commutando com os da terra tudo
o de que tinham neceílidade , achando aquel-
les moradores dalli domeílicos , pofto que
diziam que pela terra dentro liavia nações
que comiam gentes. Aqui viram os noílbs
alguns dos naturaes , aíli homens , como mu-
lheres , tao alvos 5 e louros como Alemães ,
e perguntando como fe chamavam aquellas
gentes , diííeram que Papuas : e pelo pouco
conhecimento que enrao tínhamos daquella
Terra , cuidaram os nofios ferem Ilhas ; mas
quanto a nós pelo que depois fe veio a al-
cançar , efta terra Jie aquella a que Marco
Polo Veneto cham>a Lochac , que diz fer
•riquiíFima de ouro , que diz que cílava fe-
tecentas milhas (que sao mui perto de du-
zentas léguas noflas ) da Jaoa , e a poe
da outra banda do Trópico , e diz que ao
•derredor eftavam as Ilhas de Sodur , Pen-
tan 5 Malay ur , e outras , e do que delias de-
pois fe foube 5 e defcubrio , em outro lugar
to diremos* E deixando a D. Jorge em quan-
to
Década IV. Liv. IIL Cap. IIL i8i
to lhe tarda a monção , tornemos ás náo5
dos Caílelhanos , de c]ue em Ternate anda-
va fama , e diremos que Armada era , e o
que lhe aconteceo na jornada. Depois de
chegar a Hefpanha aquclia formofa náo Vi-
toria , da companhia de Fernão de Maga-
lhães , dando razão ao Emperador Carlos
V. Máximo ( que já governava ) do delcu-
brimento que fizera das Ilhas de Makico ,
fazendo-ihe crer ficarem na fua demarcação ,
encarecendo-lhe as riquezas delias , mandou
logo ordenar no porto da Corunha outra
Armada de íete velas , de que deo a capi-
tania a Frei Garcia de Loaíza Fidalgo Bií-
cainho , Commendador de S. João. EflaxAr-
mada deo á vela vefpera de Sant-Iago de
mil e quinhentos e vinte e cinco annos : lua
nella por fota-Capitão o mefmo João Se-
baftião dei Cano. A Armada era de quatro
náos , dous galeões , e hum pataxo. Os Ca-
pitães eram Frei Garcia , João Sebaftiáo dei
Cano , D. Rodrigo da Cunha , e Diogo de
Vera : eíles hiam nas náos , os das carave-
las náo foubemos. Partidos da Corunha , fo-
ram tomar a Gomeira , e correndo a coda
de Guiné , faltando-lhes o tempo pêra do-
brar o Cabo de Santo Agoílinho , por con-
felho de todos determinou o General de fa-
zer fua derrota pelo Cabo de Boa Efpcran-
ça : e indo-o demandar , encontraram hum
na-
i82 ÁSIA DE Diogo de Couto
navio de Portuguezes , que entre algumas
coufas que delles íouberam , foi , que acha-
ram huma Ilha chamada S. Mattheus , em
que fizeram aguada , e acharam finaes de
já fer povoada em algum tempo , porque
havia alli muitas larangeiras , e arvores de
efpinho , gailinhas , raílo de porcos , e em
alguns troncos de arvores grandes acharam
letras Portugaezas , em que fe moílrava que
havia oitenta e íete annos , que já alli efti-
veram gentes noíTas , do que em nenhuma
outra eícrirura achámos feito memoria. Em
fim largando o navio , foram feguindo fua
derrota até paíTarem o Cabo de Santo Agof-
tinho : tornaram a demandar o eílreito de
Magalhães, porque lhes entrou bom vento;
e indo correndo a cofta , lhe deo hum tem-
po que apartou o General dos outros na-
vios , que foram tomar hum rio formofo ,
c grande , a que mandaram o pataxo que
arvoraííe fobre a fua barra huma cruz , e
aíli lhe deram o nome do r/o de Santa Cruz :
ao pé delia deixaram huma panella com car-
tas, em que contavam a jornada que fizeram
até li , pêra o feu General fe alli foíTe ter ,
dizendo-lhe que o hiam efperar ao eftreito
de Magalhães. Partidos dalli acharam outro
rio 5 a que puzeram nome de Santo Elefon-
fo , que era tamanho que cuidaram fer o
eftreito ^ e mandando João Sebaftião dei Ca-
no ,
Década IV. Liv. III. Cap. III. 183
no , ou indo elle mefmo a vello , deo na
boca delle em fecco , indo em Jium batel ,
e hum parente feu em outro , e fez íinal ás
n:ios que hiam commettondo a entrada que
tornaram a voltar , e Sebailiao dei Cano 5
e o outro paíllíram grandes trabalhos até
tornarem ás náos. E correndo outra vez a
coíla adiante dersm com o ellreito , onde fur-
giram ao pôr do Sol , pêra ao outro dia com-
metterem a entrada , e bafcarem nelle por-
to pêra efperarem o feu General. A mefma
noite llies deo ham tempo mui rijo com
que o pataxo fe metteo em hum eíleiro , e
Joáo Sebailiao dei Cano indo caíTando mui-
to , cortou a amarra , e deo o traquete ; mas
foi varar tâo perto de terra , que da ceva-
deira faltaram cinco homens nella , e mor-
reram dezenove affogados. A outra náo de
Diogo de Vera teve-íè fobre a amarra até
paíTar o tempo , e como pode , deo á véla ,
e nunca mais appareceo. D.Rodrigo da Cu-
nha , Capitão da outra mio, pníTado o tem-
po , deo á véla , e foi-fe na volta de Caftel-
ía , mas logo encontrou o General , e com
pouca vontade voltou com cWq , e embocan-
do o eílreito , viram a náo de Sebaftiao dei
Cano perdida, e a gente em terra que lhe
fez fmai , e mandou o batel a bufcar o Ca-
pitão y e a todos os companheiros mandou
dizer que efperaíTem, que logo os mandaria
buf-
184 ÁSIA DE Diogo de Couto
hiiícar, porque hia demandar algum porto
cm que pudeíTc llirgir : c entrando o cftrci-
to , llirgio da banda de dentro no primeiro
pou fo que achou bom ; e dalli tornou a
•niandar huma caravela (que o acompanhou
fem.pre) a bufcar a gente da náo perdida.
Efta caravela tornou a íahir fóra do eílrei-
to 5 e rccolheo a gente toda , e voltando
com ella , antes de entrar oeílreito, lhe deo
Jium tempo , com que defgarrou a outra
cofia. A capitânia caííbu com todas as an-
coras paíTante de huma légua , tocando mui-
tas vezes em baixo com o arfar , pelo que
abrio , e fez tanta agua , que lhe foi força-
do alijarem m.uitas coufas ao mar. Frei Gar-
cia deLoaíza, vendo que o tempo crefcia ,
íeceando que a náo fe perde 'Te , foi-fe no
batel pêra terra , porque era perto , e o mef-
mo fez toda a mais companhia , ficando fó
os iBarinheiros. Paflada a tormenta tornou-
fe a embarcar , e fahio-fe fóra do eílreito ,
e foi tomar o rio de Santa Cruz , que eíla-
va dcllc cincoenta léguas , pêra concertar
as náos que eílavam deílroçadas , nas marés
que alli crefciam , e vafivam fete braças. Dal-
li mandou D. Rodrigo da Cunha a bufcar
o pataxo 5 que achou junto da náo perdida,
e tomando-lh.e a gente que quiz , nao que-
rendo mais profeguir naquella jornada , tor-
nou-fe pêra Caftelia , e o pataxo fe foi pêra
o Ge-
Década IV. Liv. III. Cap. III. 185:
o General , e lhe deo aqucllas novas , por-
que fabiam fiia dererniinaçao. Concertadas
as náos , tornou o General com os galeões ,
e pataxo a entrar oeílreito com determina-
ção de invernar no meio delle , e acudin-
do-lhe bom tempo , fahio fóra delle , e fen-
do quatrocentas léguas da cofta lhe deo hum
temporal com que fe perderam os galeões ,
e o pataxo foi tomar a nova Hefpanha. O
General foi fó feguindo fua derrota , e por
confelho de João Sebaíliao dei Cano paííoii
a Equinocial , por lhe elle dizer , que em
doze gráos eftavam humas Ilhas mui ricas
de ouro , e prata : e indo-as demandar adoe-
ceram muitos , e faleceram em poucos dias
o General , e o João Sebaíliao dei Cano ,
e o Piloto 5 e Thefoureiro , e todos morre-
ram de humas nódoas pretas que lhes fahi-
ram pelas pernas. Os que ficaram vivos ele-
geram por Capitão Toribio Alonfo Salazar ,
que fe tornou a raetter de baixo da linha ,
e faleceo chegando ás Ilhas das Velas , que
agora chamam dos Ladroes. Por fua mor-
te houve grande alvoroço fobre a capitania
entre Martim Inhegues de Carquicios Al-
guazil maior da Armada , e Fernão de Buf-
tamente Thefoureiro da náo Santo Efpirito ,
a perdida , de que foi Capitão João Sebaf-
tião , que tinha já ido a Maluco na náo Vi-
toria , e por evitarem contendwas , concerta-
ram-
i86 ÁSIA DE Diogo de Couto
ram-fe que ficaíTem ambos Capitães , e man-
dalTem igualmente , até chegarem a alguma
das Ilhas de Maluco, onde fe determinaria
quem ficaria fó : e feguindo fua derrota , fo-
ram haver viíla de Mandando , onde foi Mar-
tim Inhegues julgado de todos por Capitão ,
que também era Fidalgo Bifcainho. Marrim
Inhegues foi logo demandar Maluco , e che-
gando a Cope lugar do Morotay no Moro ,
tomou refrelco , e agua , dal li fe paílbu a
outro lugar chamado Camafo , que he na
Morotoja, cujo Sangage era vaflallo deTi-
dore. Foi ifto no próprio tempo que Dom
Jorge de Menezes fe adaftou delias , e fe
foi defgarradcrrom as correntes , e todavia
foi vifto dos Caílelhanos , e conheceram fer
a náo Portugueza : pelo que fe foram os
Caílelhanos mettendo bem dentro no golfo
de Camafo , que he da outra banda do Le-
vante da Ilha do Moro , onde furgíram. A
gente da terra foi á náo a vifítar o Capitão ,
e o levaram com todos os feus pêra terra ,
e os agazalháram bem , pela amizade que
fabiam tinham com o feu Rey. AUi foube-
ram como os Portuguezes tinham fortaleza
em Ternate , e todas as mais coufas que eram
fuccedidas até então , e da guerra que Dom
Garcia fizera ao feu Rey. Os Caílelhanos
ufando de fua natureza , fe lhes offerecêram
pêra ajudar o feu Rey contra os Portugue-
zes ,
Década IV. Liv. III. Cap. III. 187
zes , lançando feus defpechos , promettcndo-
ihes de os comerem todos afiados. Com if-
to lhes deram os da terra tudo o que ha-
viam mifter , e não lhes queriam tomar di-
nheiro , porque eíTe leria o intento de fuás
promeíTas , que bem íabiam elles que os Por-
tuguezes eram máos de aíTlir , e peiores de
tragar. Eílas novas deíla náo são as que
deram a D. Garcia Henriques , (como atrás
temos dito,) e certiíicando-fe ferem Caíle-
Ihanos , defpedio logo Martim Corrêa , e
com elle Diogo da Guerra em huma coro-
cora mui ligeira , pêra irem ver o que aquil-
lo era. e pêra tomarem lingua da terra. Ef-
tes homens foram ter a hum lucrar de Ca-
mafo , onde foram certificados da verdade ,
e de como ficava naquella Cidade aquella
náo, e que partiram de Hefpanha fete jun-
tas , porque fe efperava , e aííi o afiirmavam
os Caílelhanos , e fouberam que os da terra
eftavam com elles mui foberbos , e ufanos :
com iílo fe tornaram , e deram as novas a
D. Garcia , que com muita preíTa armou dous
navios de remo , em que mandou embarcar
fetenta Portuguezes , e pedio a Cachil Da-
roez 5 que fe cmbarcaíTe em fuás corocoras ,
como logo fez em dez , ou doze , e defta
Armada fez Capitão mor Manoel Falcão,
dando-lhe por regim.ento , que chegaíTem á
vifta da náo , e mandaíTem a ella o Ouvi-
dor
i8S ÁSIA DE Diogo de Couto
dor que comelles mandou embarcar, pêra
ir fazer ao Capitão hum requerimento que
lhe deo por efcrito , e com ilTo huma bre-
ve carta pêra o Capitão , e que não queren-
do defírir a coufa alguma , pelejaíTem com
ella 5 e lhe levaílem todos os Caftelhanos
prezos. Manoel Falcão foi feguindo fua jor-
nada 5 e ao fahir do golfo de Camafo en-
controu anão, e mandou a ella o Ouvidor
em huma corocora pêra ir fazer a diligen-
cia. Chegado o Ouvidor a bordo da náo
entrou dentro , e foi recebido mui honrada-
mente de Martim Inhegues , a quem deo a
carta que levava , em que D. Garcia lhe re-
queria da parte doEmperador Carlos Qj.iin-
to , que fe foíTe pêra aquella fortaleza de
Ternate , onde o agazalhariam como a vaf-
fallo de hum Senhor tão parente , e amigo
d'ElRey de Portugal , e que dalli fe torna-
ria pêra Hefpanha , e que nao quizeííe an-
dar por aquellas Ilhas , que eram da Coroa
de Portugal , inquietando a paz que havia
entre aquelles Reys , e com iífo lhe fez o
Ouvidor o proteílo , mandando fazer delle
hum auto pelo feu Efcrivão. Martim Inhe-
gues lhe refpondeo , que aquellas Ilhas eram
do Emperador feu Senhor , por caberem em
fua demarcação , e que tinha fobre iíTo ha-
vido fentença contra ElRey de Portugal,
pelo que requeria a elle D. Garcia , que não
fof-
Década IV. Liv. III. Cap. III. 189
foíTe elle o quebrantador da paz. Feitos os
proreftos de parte a parte , teve Martiin Inhe-
giics muitos cumprimentos com o Ouvidor,
que notou muito devagar a náo , e a gen-^
te que levava, e defpedindo-fe delle fc tor-
nou pêra Manoel Falcão , a quem deo con-
ta do que paflara com Martim Inhegues , e
lhe affirmou que a náo eílava muito forte ,
e que tinha em fi trezentos homens , e mui^
ta artilheria ; e vendo que era em vão com-
mettella 5 torna ram-fe pêra Ternate , e infor-
maram a D. Garcia do que era paliado. A
náo foi feu caminho, e furgio no porto de
Tidore dia de Janeiro deíle anno em que
andamos de vinte e fete , havendo dous me-
zes que tinha chegado a Camafo , onde ef-
teve até ElRey de Tidore o mandar cha-
mar. Logo aquella noite poz a gente , e ar-
tilheria em terra , a que o ajudou ElRey,
que o feílejou muito. D. Garcia teve logo
vifta da náo , e mandou a mefma Armada ,
pêra que lhe foíTe dar huma falva , como
fez 5 porque chegando-fe de noite perto del-
ia a começaram a bater fortemente, matan-
do-lhe dentro dous homens : e ao outro dia
também continuaram a bateria , e quatro ar-
reio mais, fem a poderem metter no fundo,
por fer forte , pelo que fe tornaram. Mar-
.tim Inhegues mandou metter a náo dentro
do arrecife , como fe elles foram , e defenir
bar-
I
1^0 ÁSIA DE Diogo de Couto
barcou tudo em terra , e ordenou com mui-
ta prclTa dous baluartes de pedra ençoíTa na
fronteria da Cidade , e a náo pofta em meio
com íua artilheria , como outro baluarte,
pêra defensão do porto , com o que ficou
bem feguro. D. Garcia não deixou de con-
tinuar com feus proieftos , e requerimentos ,
fobre que correram recados de parte a par-
te íobre o direito daauellas Ilhas , que ca-
da hum allegava pelo leu Rey. Alartim Inhe-
gucs dizia , que Fernão de Magalhães vaf-
lallo d'EiRe7 D. Fernando de Caftella def-
cubríra aquellas Ilhas , D. Garcia allegava ,
que muito antes daquillo foram defcubertas
por António de Brito , e que o Magalhães
fora alevantado , e que os Rcys daquellas
Ilhas receberam primeiro nellas os Portu-
guezes , e mandaram requerer a ElRcy de
Portugal 5 que mnndaíTe fazer fortaleza em
fuás Ilhas , e aíTentar commercio cm fuás
terras : mandando ElRey de Ternate , e in-
do em peflba o de Tidore a Amboino buf-
car Francifco Serrão , que ai li eftava perdi-
do da companhia de Lourenço de Brito , e
fobre quem o agazalharia , e daria em ter-
ra lugar pêra fortaleza aos Portuguezes , ti-
veram muitos defgoílos hum com o outro ,
requerendo-lhc fempre D. Garcia , que fe
foíle pêra aquella fortaleza , e que lhe daria
hum lugar apartado , em que eíliveíTem to-
dos
Década IV, Liv. III. Cap. III. 191
dos á fua vontade até fer tempo de fe tor-
narem ; e que não compraíTe nenhum cra-
vo , nem danaíTem o preço que nelle efía-
va pofto pelos Officiaes d'ElRcy de Portu-
gal j e que não o querendo fazer , protes-
tava por todas as perdas , e damnos que diíTo
refuItaíTcm. Martim Inhegues também fez
feus proteftos , ficando aíli o negocio travado
em guerra , e deitaram fuás corocoras ao mar
com que andavam fazendo feus faltos. Poucos
dias depois deftes derradeiros proteftos toma-
ram duas corocoras deGeilolo , ehum,a cham-
pana deTernate, que hia carregada de cra-
vo 5 e mataram hum Portuguez que nella
hia 5 e alguns Ternatezes. Vendo-fe os Ti-
dores fcivorecidos dos Caílelhanos , ( que
' lhes faziam caftellos de vento , e que lhes
fahíra aquella preza bem , ) armaram fuás
corocoras , e foram dar em hum lugar d'El-
Rey deTernate chamado Gacca , e o rouba-
ram , e queimaram : diílo teve logo D. Gar-
cia rebate , e armou algumas corocoras , em
que mandou Martim Corrêa , e indo buC-
car os Tidores , deo com ellcs , vindo-fe re-
colhendo com a preza , e inveftindo-os os
axorou , e abalroou , e lhes tomou a mor
parte das corocoras , e da preza que leva-
vam. Aqui fizeram osTernates, que foram
com Martim Corrêa , grandes cavalleriasj
e cruezas.
CA-
ip2 ÁSIA DE Diogo de Couto
CAPITULO IV.
J)e como Z). Jorge de Menezes chegou a
Maluco , e de como fez tregoas com os
Caflelhanos , que Jè quebraram logo : e
de como faleceo ElRey Bayano , e Jucce-
deo feu Irmão Ayalo. E de como ElRey
deLobu matou os Fortuguezes que efta-
'vam em feu porto , e tomou huma galé
for engano.
S Caflelhanos dando-lhcs pouco dos
requerimentos de D. Garcia , que lhes
mandou fazer por muitas vezes , começaram
a refgatar cravo por elTas Ilhas , danando
p antigo preço , e fazendo-o íubir em qua-
tro vezes o dobro , com o que lhe acudio
todo o daquellas Ilhas. Diílo foi logo Dom
Garcia avilado , o que fentio muito : e por-
que fe lhe não acudiíTe feria deílruiçao da
fazenda d'ElRey , e do feu commercio da-
quellas Ilhas 5 mandou negociar algumas em-
barcações , e pedio a Cachil Darocz que o
acompanhaíTe nas fuás corocoras , do que
í<i çMt nao efcufou , e D. Garcia fe embarcou
com cem Portuguezes , e a gente de Daroez ,
e foi de noite demandar o porto de Tido-
re , e furgio a tiro de bateria da náo , que
logo começou a bater com três cameletes ,
^uc levava em humas embarcações ^ que or-
de-
Década IV. Liv. III. Cap. IV. 193
dcnou á maneira de barcaflas com fuás man-
tas , e arrombadas. Alli eftiveram três dias
fem faxerem mais que dar na náo , desfa-
zcndo-a por cima toda, e fazendo-lhe por
baixo alguns rombos. E porque fe lhe aca-
baram as munições , rccolhêram-fe pêra hu-
ma enceada da m.eíma IJha , em. quanto foí^
icm buícar outras , porque D. Garcia logo
mandou com muita preíía. Eílando neíta en-
ceada 5 mandou D. Garcia a Martim, Corrêa ,
e a Cachil Daroez , que foíTem queimar hum
lugar de Mouros , que eílava íobre hum te-
zo 5 aonde Marti m Inhegues mandou por
alguns Caílelhanos a rogo d'ElRey , por-
que fe receou daquillo. Partidos elles pêra
o lugar , deram nelle huma miadrugada , e
o queimaram , e aíToláram. Os Caílelhanos
em fentindo os noílbs fahíram-íe fói*a do lu-
gar, e embrenháram-fe em hum mato per-
to , donde ao fahir dos noíTos do lugar lhes
atiraram muitos tiros , de que hum quadre-
lo deo a Martim Corrêa abaixo da orelha ,
de que cahio como morro , e foi recolhi-
do : D. Garcia defgoílofo recolheo-fe. Os
Caftelhanos ficaram tao ufanos , e foberbos ,
que diziam aos da terra , que os Portugue-
2es fugiram delles , e que não eílariam na-
quella fortaleza mais que em quanto elles
quizeffem : e todavia a Villa em que elles
citavam ficou aíTolada , e a náo da bateria
Couto, Tom. L P. L N tão
194 ÁSIA DE Diogo de Couto
tão aberta , e deílroçada que fe foi ao fun-
do : o que elles fcntíram muito , por lhe
não ficar outro navio , c perderam o orgu-
lho com que cila vem , e ficaram efperando
por recado de Hcfpanlia. D. Garcia Henri-
ques negociou hum. junco , em que mandou
Martim Corrêa , e 'Manoel Lobo a Mala-
ca a pedirem foccorro contra os Caílelha-
nos 5 que partiram em Janeiro do anno de
vinte e fete , e logo o Maio feguinte che-
gou áquclla fortaleza D. Jorge de Menezes
dos Papiías onde o deixámos , que trazia
muito pouca gente , por lhe morrer a mor
parte por aquellas Ilhas por onde invernou.
D. Garcia lhe entregou a forialeza. Tanto
que Martim Inhegues foube de fua chega-
da o mandou vifitar , e a voltas diíTo lhe
mandou fazer queixume de D. Garcia, que
nunca quizera com elle fenao guerra , e que
lhe mettêra a fua náo no fundo : pedindo-
Ihe quizeíTe correr com elle em amizade,
pois eram Chriílacs , e quaíi naturaes , e
vaíTallos de dous Reis tão amigos , e pa-
rentes. D.Jorge lhe mandou dizer que fol-
gava muiro de ter chegado a tal tempo ,
porque efpcrava de o íervir , que lhe pe-
dia , que pois eílava fem náo : que fe fof-
fe pêra aquella fortaleza , onde o agazalha-
fia , e ferviria , e lhe daria embarcação pê-
ra fe irem pêra a nova Hefpanha, ou pêra
Caf-
Década IV. Liv. III. Cap. IV. i^j
Caílella. A iilo não defino clle nada: o que
vifto por D. Jorge , mandou-lhe fazer pro-
teicos 5 e requerimentos pelo Alcaide mor ,
na fórma dos que lhe D. Garcia tinha fei-
tos : e depois de paílar era muitos recados
de parte a parte , vieram a concluir em tre-
goas , que fe aíTentáram até lhe vir recado
de Portugal , e de Hefpanha : e fempre os
Caílelhancs fe paíláram pêra a fortaleza, fe
ElRey de l^idore lho não efcorvára. Du-
raram eftas tregoas pouco , porque logo fe
quebraram. Neíle tempo falcceo ElRey Bar-
yano , que eftavn reteudo na noffa fortale-
za , e eftando já pêra morrer , lhe deo o
Capitão licença pêra fe ir pcra fua caía , on-
de logo faleceo , e o povo alevantou por
Rey Cachii Dayalo feu Irmão , que D. Jor-
ge também recoiheo na fortaleza j e como
neílas exéquias fúnebres fazem eftes grandes
exceílbs , c duram muitos dias , ajuntando-
fe a eílas muita gente , faltaram pêra iílo
mantimentos, e Cachii Daroez Regedor do
Reyno mandou ao Aloro algumas embarca-
ções a bufcallos. Vindo eftes navios de lá,
lhes fahio Cachii Rade Regedor de Tido-
re , e as tomou , e cativou todas as peíToas
que nellas vinham. Tanto que ifto fe fou--
be , determinou Cachii Daroez de fe defaf-
frontar , e pedio ao Capitão D. Jorg^ al-
guma gente que lhe deo : e partindo huma
JN ii noi-
196 ÁSIA DE Diogo de Couto
noite com huma boa Armada , chegaram a
Tidore de madrugada , e defembarcáram em
huma parte fóra dos fortes dos Caíleihanos ,
e deram na Cidade , a que puzeram fogo ,
em que ardeo a m.ór parte , fem os Caíle-
ihanos lhe poderem valer , e os noíTos fe
recolheram muito a feu falvo : com iílo fi-
caram quebradas as tregoas , e não por culpa
dos noíTos , (como dizem alguns Eícritcres
Hefpanhoes 5) e deixallos-hemos aqui, e da-
remos conta das coufas que neíle tempo fuc-
cedêram em Malaca. ElRey de Lobu na
cofta de Çamatra era hum Mouro , que cor-
ria em grande amizade comi os Capitães de
Malaca , e de fua terra hiam áquelia forta-
leza comprar , e vender ; e o meíino faziam
os mercadores Portuguezes a Lobu , fem
nunca nelle , nem nos feus acharem engano ,
nem fallidade. Succedeo neíte mefmo tem^-
po , depois de Pêro Mafcarenhas embarca-
do pêra Goa , ir áquelle porto hum navio
de Portuguezes a fazer feu refgafte , os da
terra , ou folTe por cubica , ou pelo que quer
que foíTe , mataram todos os que hiam nel-
le. Difto foi Jorge Cabral Capitão de Ma-
laca logo avifado , e querendo tomar fatis-
fação daquelle negocio , mandou Álvaro de
Brito por Capitão de huma galé , com fe-
tenta homens , pêra fe ir pôr fobre aquelle
porto , c tomar todas as coufas que íahiC-
fem 5
Década IV. Liv. III. Cap. IV. 197
fem 5 e entraííem nclle. Efta galé foi a Lo-
bu , onde os da terra mataram todos os Por-
tiiguezes delia , e a tomaram , fem fc faber
o como. Eílas novas foram a Malaca , que
Jorge Cabral fentio muito , aíTi pela perda j
como pela afrronta ; mas diífimulou por não
ter navios , nem gente pêra fe ir fatisfazer.
Eftando com eíla mágoa, chegou poucos dias
depois ao porto de Malaca António de Bri-
to , que vinha de Banda , como atrás diíTe-
mos , (poílo que Caílanheda diz que era Mar-
tim. Corrêa , o que foi erro , porque iílo fuc-
ccdeo no tempo em que elle eftava ferido
em Maluco do quadrelo , e António de Bri-
to deixamo-lo partido de Banda. ) Efte Fi-
dalgo foi bem recebido de Jorge Cabral ,
que eílava com a mágoa frefca , e lhe pe-
dio quizeíTe fatisfazer aquella aíironta , o
que CiIq acceitou de boa vontade , e arman-
do algumas lancharas , mandcfwi em.barcar
déíTa pouca gentQ que havia , e com a que
António de Brito trazia prefez cento e vin-
te foldados 5 e fazendo-fe á vela atravelTou
a outra cofta de noite , e foi demandar o
porto de Lobu , fem delle terem viíla da
terra. E fendo paíTado o quarto da Modor-
ra 5 embarcou-fe nos navios ligeiros , por-
que hia na fua náo , e entrou pelo rio , e
fem fer fentido defembarcou na Cidade,
inandando-lhe primeiro, que tudo pôr o fo-
go
198 ÁSIA DE Diogo de Couto
go por algumas partes; e como era de ma-
deira , c palha , ateou-le em toda com tao
grande cílrondo , e terremoto , que foi cou-
fa efpantoía. Como ifto tom.ou todos repou-
fando 5 e defcuidados 5 nao-fizeram mais que
faltar fora das camas , e fugir pêra as ruas ,
onde acharam os noíTos , que não faziam
mais que matar , e andar, nao perdoando
a coufa alguma , fbizendo tamanha dedrui-
ção , e tomando tao cruel vingança da af-
fronta paííada , que ficou perpetuamente por
memoria naquella Cidade. Depois de dei-
xarem tudo poílo a ferro , e a fogo , em-
barcáram-fe muito á fua vontade , e toma-
ram a galé 5 que eftava no rio com toda
fua artilheria , e outras muitas embarcações ,
e pondo o fogo a outra cópia delias , que
eftavam em eíialeiro , fe foram pêra Ma-
laca 5 onde foram recebidos com triunfo.
Jorge Cabr.f! fabendo de António de Bri-
to do eitndo em que Aíaluco eíiava , def-
pedio logo duas navetas , e hum junco
cheios de mantimentos , e munições , e dous
mil cruzados em roupas , e cem homens
Porruguczes pêra irem de foccorro. A ca-
pitania deílas velas deo a hum Fidalgo cha-
mado Gonçalo Gomes de Azevedo. Eíle
foccorro partio na entrada de Janeiro de
vinte e fete , quafi no mefmo tempo que
de Maluco partio Martim Corrêa a pedir
íbc-
Década IV. Liv. III. Cap. V. 199
foccorro , e da jornada de ambos adiante
daremos razão.
CAPITULO V.
De como D. Simão de Menezes fohou Fe-
ro Ma fc are nhãs : e dos requerimentos que
771 andou fazer a Lopo Vaz : e da Arma-
da que ejie anno de vinte e fete partio
de Portugal: e de como duas nãos delia
Je perderam na liba de S, Lourenço.
^ I "i Ornando a continuar com as coufts dos
i dous Governadores , que deixámos com
a refpoíla que Lopo Vaz deo aos requeri-
menios de Pêro Mafcarenhas , com que che-
gou Me m Vaz a Cananor, e tanto que foi
viíla por Pêro Mafcarcnhr.s , e que ieo as
cartas dos Fidalgos que ficavam prezos , bem
vio que Lopo Vaz queria levar aquelle ne-
gocio por força , e ajuntando-fe com Dom
Sim.ao 5 mandou chamar o Feitor, Efcri-
váes , e mais OlEciaes , e os cafados , e pe-
rante todos fez Pêro Alafcarenhas hum pro-
teílo a D. Simão , mandando-lhe ler os que
mandara fazer a Lopo Vaz , e a refpoíla
que deo a elles , e mandou a Mem Vaz que
recitaíTe alli tudo o que paíTára , e o modo
de como fora a prizão daquelles Fidalgos.
Depois de tudo ifto notificado , lhe reque-
reu da parte d^ElRey , que pois Lopo Vaz
fe
2jo ASIA de Diogo de Couto
lè não queria pôr com elJe a direito , antes
moftrava ular de força , que o reconhecei^
íem a cUq Fero Malcarenhas por Governa-
dor da Índia , conforme áquclia fiiccefsao
d'ElRey , e auto da poíTe , que fora dada
naquella fortaleza , mandando-lhe ler tudo
novamente , e que pois Lopo Vaz não que-
ria juftiça , que pêra iíTo tinha ElRcy os
Fidalgos como eile na índia, pêra não con-
fentirem coufas tanto contra feu íerviço.
D. Simão ficou de todo efcandalizado do
modo de Lopo Vaz , c logo mandou tirar
os ferros a Pêro Mafcarenhas , e o levou
á Igreja , e pre lente o povo todo mandou
ler lua íucceísão , em que elle fuccedeo por
morte de D. Henrique de Menezes , e o
auto da entrega da governança , que foi fei-
ta a Lopo Vaz até fua vinda de Alalaca ,
e todos os mais aue foram feitos , e das
reíiílencias que lhe Affcnfo Mexia fez em
Cociíim , e todas as mais coufas paíTadas
até aquelle dia. Depois de tudo lido , diiTe
Pêro Mafcarenhas alto , que todos ouvi-
ram ; )) Tudo aquillo , Senhores , vos foi
)) notificado , pêra que íaibais quão injufta-
» miente fui injuriado , prezo , e maltrata-
)) do 5 como le eu fora algum malfeitor , e
» que quizera entregar a índia aos Mouros ,
» fobre a mercê que me fez ElRey da go-
» vernança da índia , pelos muitos , e mui
D grau-
Década IV. Liv. III. Cap. V. 2or
)) grandes ferviços que nella , e cm outras
)) partes lhe tenho feitos ; e agora por re-
)) mate de todos , com lhes fegurar Mala-
» ca com toda a tomada de Bintão , cui-
)) dando que vinha receber o galardão del-
)) les , fui eípancado de AfFonib Mexia ,
)) prezo em ferros de Lopo Vaz, coufa tão
)) fea , que até os Mouros , e Gentios de
)) todo o Oriente fe efcandalizam diíTo. Af-
» fonfo Mexia , que por razão de feu oíli-
» cio era obrigado a favorecer o íerviço
)) d'ElRey , e não confentir a Lopo Vaz
» fazer-me tamanha força , o fez tanto ao
)) contrario , que como meu inimigo capi-
» tal ordio todas eítas diíTensões , com que-
» rer dar entendimento á carta d'ElRey ,
» diíFerente do que era fua tenção , e tem
)) com iíTo poíla a índia em bandos , e di-
» visões 3 e em perigo de fe perder ; e Lo-
)) po Vaz o ajuda por fua parte em fe não
» querer pôr comigo a direito , e por não
)) ir a requerer minha juíliça (por faber que
» a tenho) me impedio a entrada de Goa ,
)) mandando-me prezo em ferros , como
)) viíles , pêra efta fortaleza , como fe eu
)) pretendera entregar o eílado da índia ao
)) Turco 5 e publicamente diz que por ar-
)) mas fe ha de fuftentar naquelle lugar, e
)) aíTi parece que quer nellas pôr fua juíii-
» ça 5 pois prende , e maltrata a todos , que
» por
202 ÁSIA DE Diogo de Couto
» por minha parte lha requerem : e agora
)) com a prizáo daquelles Fidalgos , que
» são os principaes que ElRey" tem na In-
)) dia , ficou tão ufano , que fegundo tenho
)) por cartas 5 eftá apoítado a vir cercar eC-
)) ta fortaleza , e prender o íenhor D. Si-
)) mão , que a mim já o tem feito em tem-
» po que ha tão certas novas de galés de
» Rumes. Todas eílas coufas são mui cla-
yt ros íinaes de homem alevantado , e que
» lhe dá pouco , aíli da Provisão d'£lRey ,
3) como de tão honrados vaíTalIos , como
» tem neíle Eítado ; e a todos os que não
yi são feus parentes , e criados , parece mai
)) o modo de como procede neíle negocio.
» Pelo que , Senhores , vos requeiro a to-
:» dos os que prefentes eftais , e de novo o
y) torno a fazer ao Senhor Capitão , e Of-
» íiciaes dajuftiça, c fazenda d'ERley , que
» vifta a contumácia de Lopo Vaz , e co-
5) mo quer ufar de força , e não de juíliça ,
» ( pois trabalha tanto por eu não chegar
)> com elle a direito fobre a governança
5) da índia , que ElRey me tem dado pri-
)) mci';o que a elle , ) que todos me hajais
)) por voílb Governador , c me entregueis
)) a índia por voífa parte , pois todos já
^) me obedeceftes , pêra que com efte fa-
)) vor , e com outros que elpero poíTa conC-
» tranger a Lopo Vaz a íe pôr comigo ^
» dl-
Década IV. Liv. IIL Cap. V. 203
» direito , pêra que fique a governança a
» cuja for 5 porque nao pretendo outra cou-
» fa mais , que paz , c quietação da índia ,
» porque fe não perca vindo a dlà a Ar-
» mada dos Turcos. E torno de novo a
» requerer , e a vos notificar, que confin-
» tais no que vos peço ; e quando nao ,
» protefto d^ElRey vo-Jo eílranhar , e de
» llie dardes conta dos males que fuccede-
)) rem , e de haver por voíTas fazendas to-
» das as perdas, e damnos que diíTo rece-
» ber. De tudo ifto que teníio dito vós Ta-
)) belliáo me dareis hum eílromento com
» luas refpoílas , ou fem ellas , e calou-íe. »
Todos os que prefentes eftavam a huina
voz diíTeram , que nao tinha neceílldade de
coufa alguma , que elles o conheciam pjr
feu Governador , e que como a tal eílavam
preíles pcra lhe obedecerem ; e logo íe fez
hum auto diíTo , em que todos fe aílináram ,
e D. Simão de Menezes o aíTentou na ca-
deira , e Jhe deo a menagem da fortaleza
em fuás mãos , como a Governador da ín-
dia , em nome de ElRey de Portugal , de
que tudo fe fizeram papeis , e o Governa-
dor fe agazalhou na fortaleza com D. Si-
mão , correndo com as coufas como Go-
vernador. E poílo que o Caftanheda nao
declara fe ElRey de Cananor o houve por
Governador , e o tratou , e viíitou como
ef-
204 ÁSIA DE Diogo de Couto
efle 5 quanto a nós D. Simão lho fez pri-
irieiro a faber , como o fazia a rodas as
coufas que fuccediam , pela pontualidade
com que corriam com elle em amizade. As
novas difto chegaram logo a Cochim , que
caufáram em todos grande alvoroço , e Af-
fonfo Mexia ficou fobre faltado , porque já
lhe nao vinha bem governar Pêro Mafca-
renhas pelas atfrontas que lhe tinha feito ,
de que receava que fe vingaíle. O verão
entrou logo , e de Cochim , e Couláo Ce
vieram pêra Pêro Mafcarenhas alguns Ca-
pitães de navios , e outras muitas pcíToas ,
e lhe deram a obediência , com o que elle
íicou com mais confiança de Lopo Vaz fe
pôr com elle a direito ; e quando por aqui
não pudeíTe levar efte negocio ao cabo , ha-
veria que não era Deos fervido diíTo , e tra-
tou de não lhe ficar coufa alguma por fa-
zer. E porque da carta de Chriílovão de
Soufa ( que atrás dillemos ) cntendeo que
liavia fua prizao por injufta , quiz dar-lhe
conta do eftado em que ficava , pêra ver fc
o podia grangear pêra o ter de fua parte ;
porque como era hum dos principaes Fi-
dalgos da índia , muito aparentado , e ri-
co , e eílava certo penderem todos á fua
parte delle , com o que ficaria fendo fua
juíliça mais certa , logo defpedio hum na-
vio ligeiro pêra Chaul , em que foi Fran-
cit
Década IV. Liv. III. Cap. V. 205'
cifco Mendes de Valconcellos com cartas
pêra eUc , e procurações baftantes pêra o
que foííe neccíTario , e os traslados dos au-
tos de como ficava obedecido por Gover-
nador , pedindo-lhe que requereíTe a Lopo
Vaz , que íe puzeíTe com eJle a direito , e
quando o recufaíTe , que lhe obedeceíTe a
dic como tinJia feito D. Simão , pois elle
era o que queria juíliça pêra paz , e foce-
go de toda a índia : e mandou outro re-
querimento a Lopo Vaz , aíli por fua par-
te , como pela de D. Simão , em que lhe
requeriam íoltaíTe os Fidalgos que tinha pre-
zos 5 efcrevendo a todos cartas de oífereci-
mentos , e eíperanças de cedo ferem foltos.
Francifco Mendes chegou a Goa , e deo os
requerim.entcs que levava na mão do Se-
cretario 5 e as cartas aos Fidalgos. O Se-
cretario levou os papeis a Lopo Vaz , e
por clles foube com.o Pêro Mafcarenhas
ficava folto , e obedecido por Governador ,
e bravejando fobre iíTo , cahindo no erro
que fizera em o confiar de ninguém , re-
ceando que lhe entraífe hum dia de fupito
em Goa , o que feria fua perdição , porque
fabia de certo, que em pondo alli os pés,
lhe haviam de acudir todos os Fidalgos.
Pelo que defpedio Sim^ão de Mello em hu-
ma galeota , e hum bargantim pcra fe ir
pôr em Goa a velha ^ porque não entraífe
por
'2o6 ÁSIA DE Diogo de Couto
poraquella barra. Era iílo ainda entrada de
Agoílo , e poucos dias logo depois chega-
ram á barra as duas náos da invernada do
anno paíTado , de que eram Capitães Vicen-
te Gil 5 e António de Abreu , que lurgíram
aos dezefeis daquelJe mez, e deíembarcan-
do foram ao Governador , que llies deo
conta das coufas dantre ú\q , e Pêro Maf-
carenhas , e lhes moílrou as fuccefsoes , aíll
humas como outras , e todos os mais pa-
peis 5 fobre o que lhes pedio íeus parece-
res , rogando-lhes , que livremente lhes dií^
feííem le era por virtude daqucllas Provi-
sões verdadeiro Governador da índia ; e
não fe contentando com aquillo , lhes deo
juramento dos Santos Evangelhos. Os ou-
tros como não tinham mais informação,
que a que lhe elíe mefmo deo , e os to-
rnou depreíTa , pêra que logo lhes rcfpon-
deífem. , diíTeram , que pelo que lhes tinha
dito , e por aquelles papeis , cllava de mui-
to boa poííe. Diílo mandou fazer hum ter-
mo 5 em que ambos fe aíhnáram. PaíTado
ifto , aos féis de Setembro chegaram á bar-
ra duas náos do Reyno , de cinco que ti-
nham partido , de que era Capitão mor
Manoel de Lacerda , que por culpa do feu
Piloto varou na Ilha de S. Lourenço > e o
mefmo fez outra náo que o feguia , de que
era Capitão Aleixo de Abreu, que ambas
jun-
Década IV. Liv. III. Cap. V. 207
juntas vararam na Bahia de Sant-lago , que
jaz da banda do Poncnte em vinte gráos e
meio , e foi em parte que fe falváram to-
dos em terra ; e por fe fegurarem da gen-
te delia 5 ordenaram humas tranqueiras , em
que fe recolheram com algumas armas que
falváram , e com as coufas que tiraram das
náos , e que depois o mar trouxe a terra ,
com o que fe ficaram fuílentando miferavel-
mente , commutando com os da terra (que
era m.uito falta de mantimentos naqueila
parte) algumas coufas poucas, deixando-íè
ficar alli efperando que paíTaíTe alguma náo
a que fízcílem final pêra os tomar. Deixal-
]os-hemos aqui até tornarmos a elles. Das
outras duas náos , que chegaram á barra ,
eram Capitães Balthnzar da Silva , e Gas-
par de Paiva , em que vinham embarcados
D. Joáo Deça , cunhado de Lopo Vaz de
Sampaio , que vinha com a capitania de
Cananor apôs D. Simão , e Francifco Pe-
reira de Berredo com a de Chaul. Eftes
Fidalgos foram m.ui bem recebidos de Lo-
po Vaz 5 e lhes moftrou os autos , e pa-
peis 5 e deo conta de luas coufas , como
fez aos Capitães da invernada ; e pergun-
tando-lhes o que lhes parecia , diíferam que
eftava de boa poíTe , dando-lhe pêra iíFo
fuás razoes , de que elle mandou fazer hum
termo affinado por elles. Depois diílo já no
fim
2o8 ÁSIA DE Diogo de Couto
fim do mez chegou a Goa outra náo que
faltava , de que era Capitão Chriílovão de
Mendoça irrnão de Dona Joanna Duqueza
de Bragança , filho de Diogo de Mendoça ,
que vinha provido da fortaleza de Ormuz
na vagante de Diogo de Mello. Efte anno ,
de vinte e fete foi mui trabaihofo de gran- I
des terremotos , e tremores de terra em Lis- !
boa , de que cahio a mor parte daquella i
Cidade , e houve grandes damnos , mortes , 1
ruínas , deílruiçóes , e andava a gente toda
tão aíTombrada , que viviam pelos campos ,
e defertos , e foi também o laco de Roma
pelo Duque de Borbon.
CAPITULO VL
Da Armada , que o Turco Solehnao man-
dava contra os Portuguezes : e das dif-
f crenças que houve entre os Capitães :
e de como mataram o General ^ e
a Armada fe desfez,
O Turco Soleimao , filho de Cely , que
fuccedeo no Império Othomano os ân-
uos áo Senhor de i5'io, o mefmo dia que
o invencível Emperador Carlos Quinto foi
coroado em Aquifgrana , o que parece or-
denou Dcos NoUo Senhor pêra enfrear a
foberba daquelle bárbaro , que tanto que
tomou poíTe do governo , e começou a fen-
tir
Década IV. Liv. III. Cap. VI. 209
tir o pczo do Império , entre as cargas que
lhe carregaram muito , foi a de noítas Ar-
madas , que todos os annos lhe entravam
pelo ertreito do mar Roxo , fazendo por*
clle grandes damnos , deílruindo-lhe leus
vaíTalios , e impedindo-lhe a navegação , e
romagem da fua cafa da abominação de
Mafunede , com o que o commercio , e
rendas daquelle eftreito eílavam totalmente
perdidas , fendo fempre as mais importan-
tes que os Impérios Romano , e Egypcio
tiveram pela groílidao de fuás entradas , e
continuação de muitas náos , que de todas
as partes do Oriente hiam áquelles portos ,
carregadas de m.uitas , e ricas fazendas ;
querendo acudir a eftas coufas , tinha os
annos atrás paíTados mandado pêra iíTo or-
denar huma groíTa Armada no porto de
Sues pêra mandar á índia contra os Por-
tuguezes , pêra o que fe levou huma gran-
de íomma de madeira dos Montes negros,
e deífas partes de Satalia , muito ferro ,
cordoalha , carpinteiros , ferreiros , meílres
de galés , e todos os mais officiaes ddlàs ,
o que tudo foi levado em muitas náos por
vezes ao porto de Alexandria ; ahi fe def-
embarcaram , e em barcas foram levados
pelo Nilo aílima até o Cairo , onde le car-
regaram em Camelos , e por efpaço de vin-
te e quatro léguas de terra deferta , e fera
Quto, Tom. L P. L O agu a ;,
2 IO ÁSIA DE Diogo de Couto
agua , foi tudo paíTado a Sues com defpc-
zas mui exceíTivas , onde íe começaram ar-
çnar as vazilhas , e galés , em que gaíláram
(inço , ou Íeis annos peJa incommodidade
do porto 5 porque até a agua que haviam de
beber os Oínciaes , ié ievava em Camelos
de muito longe , e pela meíma maneira to-
das as mais coufas que eram neceíTarias ,
que tudo alli chegava á cuíla de grande
fomma de ouro ; porque como o Turco
entrava neíle negocio com o zelo de lua
religião , pêra deíimpedir aquella romagem
da cala de Meca , tinha mandado fe gaí-
taílem todos íéus theiouros , e aífi a poder
delles íè armaram fetenta e féis velas de
todas as fortes , que fe acabaram efte an-
uo , nomeando pêra General defta empreza
a Soleimáo Baxá Governador do Cairo,
hom.em de grande confelho , e esforço ,
dando-lhe gente , dinheiro , moniçoes , e
artilheria , tirando tamanho cabedal de íi ,
fem embargo de andar occupado contra EI-
Rey Luiz de Ungria , que com demazia-
do esforço 5 mas pouco confelho, lhe apre-
fentou aquella batalha entre Buda , e Bel-
grado 5 em que foi morto , e desbaratado.
Deo o Turco por regimento ao Baxá que
fizeífe primeiro que tudo huma fortaleza na
Ilha de Camarão , porque não tentaíTe El-
!p.ey de. Portugal y como já fizera , mandar
far
Década IV. Liv. III. Cap. VI. iix
fàzella alli , e que depois fe paflaíTe á ín-
dia , e lançafle delia os Portaguezes. E
qucrendo-o honrar por eílc negocio em-
que o occupava , lhe deo o cargo de Ba-
xá de fua camará , que he o mais a qua
fe pode chegar , mandando com elle Ef-
cander Can por íeu lugar Tenente , e mil
Janizaros da íua guarda , homens efcolhi-
dos , em que entravam Moílafá Beran , fo-
brinho do .mefmo Baxá , filho de fua ir-
mã , Coge Çofar natural de Otranto , que
já na Armada de Mir Ocem , (que o Vi-
lo-Rey D. Francifco de Almeida desba-
ratou , e em Dio fora por Capitão de hu-
ma galé , ) homem de ardiz , e invenções ,
porque veio a valer muito , e a efte tem-
po era thefoureiro do Cairo , eíle trazia
fua mulher , e hum filho já homem , cha-
mado Maarran , (que depois, fe chamou
RumeCan, como em feu lugar diremos,)
e duas filhas mais , huma cafada com Afe-
re Can , homem tão façanhofo de corpo ,
e forças , que por ellas foi depois chama-
do Tigre do Mundo , de que algumas ve-
zes havemos de fallar. Vinha mais neíla
envolta Moflafá Carmany Elaracen , que
depois foi fenhor deBaroche, eAcemLaji-
caíta Cherquez , que depois teve no Re)?^
no de Cambaya o titulo de Madre Malu-t
CO 3 com quein pelo decurfa da Hiíloria
O u ha-
212 ÁSIA DE Diogo de Couto
havemos de continuar muitas vezes. E na
entrada defte Verão , em que andamos ,
partio o Baxá de Sues com eíla potente
Armada , cuja fama atroou o Mundo , com
que os Mouros da índia andavam alvoroça-
dos , cuidando que noíTas coufas eram acaba-
das de todo. O Baxá foi tomar a Ilha de Ca-
marão 5 onde com muita preíTa poz as m.aos
á obra da fortaleza , que acabou por todo
mez de Agoílo , e provendo-a de gente ,
e mcniçoes , fe embarcou pêra paíTar á ín-
dia ; mas quiz Deos NoíTo Senhor que na
boca do eííreito lhe deíTem os levantes de
rofto tão rijos , que tornaram a voltar pê-
ra dentro , e tomando confelho fobre o
que fariam , aíTentou-fe que foflem efperar
os ponentes de Abril em Cobit Sarif , por-
to do Reyno de Zabit, na terra de Ará-
bia da outra banda da Ilha de Camarão ,
aonde defembarcáram em terra , e arma-
ram fuás tendas ; e porque ficavam ociofos
todo aquelle tempo , determinou o Baxá
de conquiílar aquelle Reyno , marchando
contra a Cidade de Zebit, dez léguas pe-
lo fertão. Sendo aquelle Rey , que fe cha-
mava. Soltao Hamede 5 avifado da potencia
do Baxá , largando a Cidade , fugio bem
pêra o fertão , ficando a Cidade fó , que
feus moradores também fe quizeram fegu-
rar. O Ba.xá entrou nella, e líj^ndou lan-
çar
Década IV. Liv.-III. Cap. VI. 213
çar pregoes pelas aldeãs viziriiias, pêra que
todos os da Cidade íe tornaíTem livremen-
te pêra íiias caíiis , promettendo-Ihes hon-
ras , e favores 5 com o que acudiram logo.
O Baxá proveo aquella Cidade de guarni-
ção , pondo nella por Governador a Mir
Eícander , ficando aJli efperando a mon-
ção pêra paíTarem d índia. Mas como Deos
Noflb Seniior tinha os olhos nella , e a
queria guardar , e defender , pêra que por
toda ella foíTe dilatada fua Santa Fé , or-
denou aquellas coufas de feição , que fe
desfez a Armada ; porque fe paíTára á ín-
dia naquelle tempo de tantas divisões , íèm
dúvida fe perdera de todo. E foi a coufa
deíla maneira. Antre o Baxá , e Mir Ef-
cander começaram a haver alguns arrufos
no principio , ainda que pequenos , que
crefcêram , e fe vieram a accender por ef-
ta maneira. Tiveram os Janiçaros queixas
do Baxá , ou fobre as prezas de Zebit ,
ou fobre a paga , de que clle fez pouco
cafo , e como fabiam o defgoílo que Mir
Moílafá tinha do Baxá , trataram com cl-
le em fegredo de o matarem , o que fize-
ram 5 dando hum dia de fupito nas fuás
tendas , que roubaram , e efcaláram, Mof-
tafá fobrinho do Baxá vendo o tio mor-
to recolheo-fe ás fuás galés com os Jani-
çaros de fua valia , em que entravam os
que
214 ÁSIA DE Diogo de Couto
que aflima nomeamos , que eram Capitães
das galés , e fe apoderou do rhefouro, e
tratou de fe fazer cabeça da Armada , fo-
Jicitando a gente pêra o feguirem na jor-
nada da índia, a' que o tio hia enviado,
promettendo-lhes grandes prezas , e rique-
zas 5 de que todos zombaram , porque hiam
muito defgoftofos naquella jornada por fer
contra Portuguezes , cuja fama das vitorias
que cada dia tinham na índia , os trazia
aííombrados ; o que vifto por Moílafá com
CS Capitães de fua valia , que eram finco ,
fe foram em faas galés pcra outro porto ,
levando nellas quatrocentos Turcos , Q mor
parte delles efcravos , que foram doBaxá,
e como tiveram tempo , e em Abril , fe
paíTáram a Xael , de que adiante faliare-
mos. Os mais Capitães das galés vendo-fe
fem' cabeça embarcados nellas, fe tornaram
pêra Sues , onde as vararam , levando no-
va ao Turco do fucceíTo , que em eftrcmo
fentio , porque lhe cuílou aquella jornada
huma grande fomma de ouro , ficando Mir
Efcander em Zebit com muitos Turcos que
com elie quizeram ficar , € logo fe appel-
iidou Rey. Fernão Lopes de Caílanheda ,
e Petro Mapheo dizem que Moita fá , e
Coge Çofar mataram o Baxá , e que fe fo-
ram pêra Cambaya , no que foram mal in-
formados 5 porque efta verdade nós a âve-
ri-
Década IV. Liv. IIÍ. Cap. VI. 215'
riguámos com Caracen , hum deftes Jani-
caros , eftando por Capitão de Baroche ,
com quem converlainos naquella Cidade por
fer homem muito amigo dos Portugviezcs ;
e depois que nos foi encommendada cila
hiíioria , o tornámos a ratificar com hum
Mouro Arábio chamado Bcnaoder , que
neíle tempo eílava em Adem , e nos con-
tou neíla Cidade de Goa todas as parti-
cularidades defca jornada , de que nao fa-
zemos menção , mais que das cbufas fub-
flanciaes, que fervem pêra a noífa liiftoria*
As novas deíle fucceíTo chegaram a Chaul
entrada de Setembro por algum.as náos de
Meca, que ãquelle porto foram, com que
Chriítovão de Soufa ficou deíalivado , e
logo as enviou a Lopo Vaz. Pouco de-
pois chegou áquella fortaleza Francifco
Mendes de Vafconcelíos com as cartas de
Fero Mafcarenhas , D. Simão , autos , e
mais papeis que levava , porque foube fi-
car Fero Mafcarenhas obedecido por Go-
vernador em Cananor , aprefentando-Ihe ,
e notificando-lhe com hum Tabelliao o
mefmo Francifco Mendes hum proteílo , e
requerimento pôr parte de Fero Mafcare-
nhas 5 em que requeria a elle Chriftovao
de Souíli que lhe obevieceífe , e conhecef-
fe por Governador tia Índia , confbrnie à
fuccefsâó d'£iRèy , que fe abrio por fíiór-
le
ii6 ÁSIA DE Diogo de Couto
te de D. Henrique , já que Lopo Vaz que-
ria uíar de poder , e nao fe queria pôr
com elle a direito , proreílando de haver
por elle Chi-iftovao de Soufa (não lhe que-
rendo obedecer ) todas as perdas , e dam-
nos que diíTo recebcíTe , e de dar conta a
ElRey daquelle negocio , e elle lho eftra-
iihar 5 e caíligar , por confcntir a Lopo Vaz
ufar de força. Chriílovao de Soufa vendo
aquillo, chaiTiou a confelho o Feitor, Al-
caide mor 5 Fidalgos , e Cavalleiros , que
alli íè acharam invernando com elle , que
eram muitos , e lhes deo conta daquelle
negocio , e da prizao dos Fidalgos , e do
efcandalo que antre todos havia delia , e
de Lopo Vaz querer ufar de força , e po-
der 3 e não fe querer pôr a direito com
Pêro Mafcarenhas , nioftrando-lhe todos os
a'equerimentos , e proteílos , c todos os mais
papeis , pedindo-lhes , que lhes diíTeíTem o
que mais lhes pareceííe cumpria ao fervi-
ço d^ElRej. Viílo por todos muito bem ,
aíTentáram que obcdeceíTe a Pêro Mafca-
renhas por Governador da índia , com de-
claração , que a todo tempo que Lopo Vaz
fe quizeíle pôr a direito com elle , tornaf-
fe acoufa a ficar devoluta até fc averiguar
por juftiça a qual delles pertencia a go-
vernança , e que logo fe havia de acudir
áquillo, antes que Lopo Vaz aquiriíTe maio-
res
Década IV. Liv. TIL Cap. VI. 217
rcs forças , com que fe quizeíTe fuílcntar
naqiielle lugar por armas, dando pêra iíTo
muitas razoes , com que Chriftovao de Sou-
fã determinou obedecer a Pêro Maicarc-
nhas , mandando fazer hum auto de tudo
o que fe alli aíTentou , com que fe aííiná-
ram todos os que fe acharam naquelle pa-
recer ; com declaração , que fe notificaíTe
a Lopo Vaz, que fe puzeffe a direito com
Pêro Mafcarenhas , e que então fe julgaíTe
qual era o legitimo Governador : e alfi lo-
go começaram a nomear Pêro Mafcarenhas
por eífe , efcrevendo-Ihe Chriítovão de Sou-
la pelo mefmo Francifco Mendes de Vaf-
concellos de como ficava obedecido por
Governador , mandando-lhe o traslado do
auto que fe fez. O mefmo efcreveo a Lo-
po Vaz , de que elle fe tornou m.uito , def-
pedindo logo António da Silveira com hu-
ma Armada a Chaul , dando-Ihe por regi-
mento 5 que requereífe a Chriílovao de Sou-
fa , que lhe entregafíè a Armada que ti-
nha em Chaul , mandando embarcar com
elle Francifco Pereira de Berredo pêra o
metter de poíTe daquella capitania , de que
era provido por ElRey. António da Sil-
veira chegou a Chaul , e á barra lhe man-
dou Chriíiováo de Soufa requerer que não
cntraífe dentro , porque não havia de obe-
decer a nenhum mandado de Lopo Vaz ,
por-
ai8 ÁSIA DE Diogo de Couto
porque fó a Pêro Mafcarenhas conhecia
por Governador da índia ; que fe íe qui-
zefle ver com elle , que elle iria em hum
catiir , e que vieíTe ellc em outro ao meio
do rio 5 onde fc ajuntariam , e ahi falla-
riam , c aíli íe fez. António da Silveira
lhe notificou o regimento de Lopo Vaz ,
a que Chriílovao de Soufa refpondeo , que
lhe não havia de obedecer , porque tinha
mandado em contrario do Governador Pê-
ro Mafcarenhas , e que não havia de en-
tregar aquella fortaleza a ninguém , fenao
por Provisão fiia , fobre o que hum , e
outro fizeram feus proteftos , e requerimen-
tos , e Francifco Pereira outros contra Chri-
ítovão de Soufa pelos ordenados da ca-
pitania , e de tudo tiraram feus inílr amen-
tos, e papeis.
CAPITULO VII.
l)e hum ãjjinaão ^ que António ãe Miran-
da de Azeiedo deo a Fero Mafcarenhas
de lhe obedecer : e do que ajfentàrayyi o
mefnío António de Miranda , e (Ihri-
Jiovão de Soufa fohre as coufas
dantre os Governadores.
ANtonio de Miranda de Azevedo Ca^
pitão mòr do mar^ q«è invernou em
Cochim -y tanto <jiie foram qttÍH-ze dé Se-
tem-
Década IV. Liv. III. Cap. VIL 21^
tenibro , que o tempo Jhc deo lugar ne*-
gociando lua Armada , d'^o á véla pêra
Goa, tomando Cananor pêra prover aqacl-
■]a fortaleza do que tivelíc neceíTidade j c
furgindo na Bahia , lhe mandou o Gover-
nador Pêro Maícarenlias fazer hum re^ue-
rimento , a que foi D. Simíio em peííoa
com hum Tabellião , em que lhe requeria
da parte d'ElRey , que pois o mefmo Dom
Simáo 5 c Chriftovao de Soufa , com a
maior parte dos Fidalgos da índia , o ti-
nham havido 5 conhecido , e obedecido por
Governador , por virtude de fua fuccefsão ,
fazendo elle primeiro tantos proteftos , e
requerimentos a I.opo Vaz , (que indevi-
damente fe appellidava Governador , nio
o fendo elle lenao em fua aufencia , por-
que a fuccefsão em que elle fuccedeo nao
podia fer aberta , tendo-fe já ufado da
fua , ) e que Pêro Mafcarenhas por paz, é
íocego da índia queria pôr fuás coufas eni
juíliça , o que Lopo Vaz nao queria con-
fentir , fenao ufar de força , que pois el-
le requeria juftica , devia elle António de
Miranda , como Capitão mor do mar ^
obedecer-lhe , e enrregar-Ihe aquella Ar-
mada pêra a tornar a receber de fua
mão , porque aíH podia fer que fe movef*
fe Lopo Vaz a fe pôr com elle a direito
guando fe viíTe fem Armada , qúe elle nâe
que-
aio ÁSIA DE Diogo de Couto
queria mais , fenão que fe julgafle qual
delles havia de fer Governador da índia;
porque fe o era Lopo Vaz , elle Pêro MaC-
carenhas fe queria ir pêra o Reyno a dar
razão de íi a ElRey , porque de outra ma^
neira daria má conta de íí : e quando elle
António de Miranda lhe nao quizeíTe obe-
decer 5 que elle proteílava de haver por el-
le feus ordenados , e de ElRey o caíligar
como lhe pareceíTe juíliça, e o cafo reque-
ria. António de Miranda vendo as juftifi-
cações de Pêro Mafcarenhas , e que tudo •
o que requeria era juíliça , de que Lopo
Vaz fugia tanto , refpondeo ao requerimen-
to 5 que por ora elle nao podia fazer mu-
dança de fi até fe não ver com Lopo Vaz ,
e faber delle fe fe queria pôr a direito com
elle ; e que não o querendo fazer, então
lhe obedeceria a elle Poro Mafcarenhas , e
o haveria por Governador. Com efta re-
fpofta tornou D. Simão a Pêro Mafcarenhas ,
que não ficou fatisfeito delia , e todavia
tornou a mandar pedir por D.Simão, que
lhe déíTe hum aífinado daquillo que pro-
mettia , fobre o que debateo com D. Si-
mão , e por fim houve de o conceder , que
continha ofeguintc: «Digo eu António de
» Miranda de Azevedo Capitão mòr do mar
» da índia , que cu me obrigo ao Senhor
>» Pêro Mafcarenhas de fazer com o Senhor
» Lo-
Década IV. Liv. III. Cap. VIL 221
•» Lopo Vaz de Sampaio , que ora he Go-
)) vernador da índia , que fe ponha a di-
» reito com elle , (que também pretende fel-
j) Io , ) fobre qual deiles deve de ficar com
yt o governo ; c não querendo elle pôr-fe a
» juízo 5 por efte dou minha fé , e faço
» prcitomenagem ao dito fenhor Pêro Maf-
)) carenhas de me ir pêra elle , e lhe obe-
» decer como a verdadeiro Governador.
» Feito 5 e aílinado por mim aos dezefete
)) de Setembro de 15*27. » Dado efte aíUna-
do 5 foltou a véla pêra Goa , onde chegou
em breves dias, c vendo-fe com o Gover-
nador Ihedeo conta de tudo o que paíTou
com Pêro Mafcarenhas , e do aílinado que
lhe deo , dizendo-lhe que pois Pêro Maf-
carenhas não queria mais fenão que fepu-
zeíTe com elle a direito fobre qual deiles
havia de fer Governador , que parecia que-
rer ufa r de força não o querer elle con-
fentir ; que fe lhe parecia que tinha juftiça,
devia de o fatisfazer , por fe quietar, e fe
acabarem tantas divisões antre todos os Fi-
dalgos. Lopo Vaz lhe eftranhou muito o
que tinha feito , aíErmando-lhe que fe não
havia de pôr em direito com Pêro Maf-
carenhas fobre a mercê que lhe ElRey fi-
zera , e que bem fe podia tornar pêra elJe
como fe lhe obrigara , porque nao faltaria
a quem dar a capitania mor do mar da
In-
222 ÁSIA DE Diogo de Couto
índia. António de Miranda fe dclculpou ,
certifícando-lhe que nao dera aqueile aíli-
pado com tenção de o cumprir . íenão por
íe livrar de Pêro Mafcarcnhas pelo ver tao
damnado , que receou algum dcfmancho.
Lopo Vaz esbravejou , e diíTe a António
de Miranda , que logo fe partifle pêra Cbaul ,
dando-lhe por regimento , que tomaíTc a
Armada, que lá eítava , e íizeíTe mctter de
poíTe daqueila fortaleza a Francifco Perei-
ra de Berredo. Não faltaram homens ami-
gos de novidades , que aconfelhaflem a Lo-
po \^vz, que prendeíTe António de Miran-
da, e que IhetiraíTe a Armada, o que pe-
la ventura feria mais por cada hum delles
apertender, que por verem que havia pê-
ra iíTo razão. Lopo Vaz diílimulou aquel-
les coníelhos por nao fazer com iílb mor
união nos homens , porque nao lhe vinha
bem efcandalizar tantos. António de Mi-
randa chegou aChaul, aonde ainda achou
António da Silveira , que lhe deo conta
do que tinha paíTado com Chriílovao de
Soufa , elle lhe pedio fe dctivciTe até fe
ver com ellc , porque já fe levava pcra
dar á vela. E logo mandou recado a Chrif-
to^'ão deSoufa, que importava ao ferviço
d'ElRey verem-fe ; ao que lhe refpondeo ,
cjue íe era pêra lhe entregar a Armada , e
capitania da fortaleza ,. que. já tinha refpon-?
di-
Década IV. Liv. III. Cap. VIL 223
dido fobre iflb a António da Silveira , e
com iflb lhe mandou fazer hum requeri-
mento pelos Officiaes em companhia de to-
dos os Fidalgos , que alli havia , em que
dizia 5 quevilTem bem a força que Lopo
Vaz , e AfFonfo Mexia faziam a Pêro Maf-
carenhas em lhe tomarem a governança da
Índia , fem fe querer Lopo Vaz pôr com
elie em direito íbbre a qual delles perten^.
cia : que lhe requeria da parte d'ElRe)r,
como a peflba tao principal na índia , e
Capitão mor do mar , fizeíTe com Lopo
Vaz , que não ufafl:e naquelle negocio de
poder abfoluto , e que confentiíTe ficar em
direito , e juftiça , pêra fe fazer a quem a
tivefle ^ e que em ília mão eilava determi-
na r-fe efte cafo 5 e acabarem-fe todas as
diiTensÔes que havia na índia. De tudo que
lhe notificaram fe fez hum termo allinado
por todos aquelles Fidalgos. António de
j Miranda refpondeo , que dlc fe iria ver
com ellc á fortaleza , como logo fez , in-
do fó , e ambos em fegredo praticaram fo-
bre aqucllas coufas , e por fim vieram a
concluir fizefícm com Lopo Vaz , que fe
puzefl^e a direito com Pêro Mafcarenhas ,
fazendo ambos huns apontamentos fobre o
modo que fe niflTo teria, que era o feguin-.
te : » Que fe julga fiem aquellas differenças
)í de antre ambos os ÇQvernadores. por fo
»te
224 ÁSIA DE Diogo de Couto
» te Juizes , que ellcs elegeram logo , e fí-
)j zeram dellcs hum rol aíTinado por ambos
» pêra ficar em fuás mãos em fegredo , fem
» pelToa alguma faber quaes eram , e que
)) fe não defcubririam fenão á hora que o^
)) chamaíTem pêra a fentença , os quaes lo-
» go nomearam , que eram António de Mi-
» randa , D.João Dcça , Francilco Pereira de
)) Berredo , Baltliazar da Silva , Gafpar de
)> Paiva 5 Fr. João Dalvi da Ordem dos Me-
» nores , Fr, Luiz da Vitoria da Ordem
» dos Pregadores ambos Letrados. Nefta elei-
ção íe começou logo a tomar a juftiça a
Pêro Mafcarenhas , porque todos aquelles
Juizes , tirando aquelles Frades , tinham da-
do aíTmados a Lopo Vaz de como elle era
"verdadeiro Governador , e bem o entende-
ram elles 5 mas trataram de quietar por alli
a Lopo Vaz , porque ainda que fe déíTe
por elle a fentença , já eílava de poíTe da
governança ; e Pêro Mafcarenhas ainda que
por então lhe tomaíTem o direito , depois
lhe ficaria refguardado pêra ElRcy o fatis-
fazer , porque fó trataram eíles Fidalgos de
apaziguar a índia. Chriílovão de Soufa não
quiz que elle , nem Fidalgo algum feu pa-
rente entralTe na conta dos Juizes , porque
não fícaíTe Lopo Vaz tendo pejo nelles ,
porque tudo aqui fe tratava a feu gofto.-
Ç)s apontamentos que fe haviam de publi-
car
Década IV. Liv. III. Cap. VII. 225-
car eram cftes. » Que António de Miranda
» daria lium aííinado a Chriílovao de Souía
)) tal como o que dera a Pêro Maícarenhns ,
)) e outro em que fe obrigalTe a elle Chrif-
» tovao de Soufa pêra poder ir a Goa cm
» fua companhia , e fallar íeguramentc com
)) Lopo Vaz 5 íem perjuizo de fua fazenda ,
)> parentes , e amigos , pêra que livremente
» lhe pudefle requerer o que lhe pareceíTe
)) ferviço d'ElRey, fcm entervirem palavras
)) fora da matéria ; e que chegando todos a
)) Goa 5 ficaria a Armada fora da barra , e
» António da Silveira genro de Lopo Vaz
)) dentro nella em reféns , em poder de pef-
)) foas de confiança , e a Armada entregue a
» hum Fidalgo , que daria a menagem a el~
)) le Capitão mor ; e que declaraíTe, que fen-
)) do cafo que Lopo Vaz prendeíTe a qUq
» Chriílovao de Soufa , que em tal cafo o
»que ficaííe na Armada fe foíle com toda
» ella pêra Pêro Mafcarenhas , e que lhe obe-
-)) deceíTe como a Governador ; e que Chri-
)) ftovão de Soufa daria hum aífinado aíli
» por elk 5 como por todos os Fidalgos ,
» que eftavam com elle , em que fe obrigaf-
-» fem a obedecer a elle António de Miran-
» da com toda a Armada , que em feu po-
)) der tinha, até chegarem a Goa ; e que não
yt querendo Pêro Mafcarenhas confentir no
■» que elles tinham ordenado , fe foííem to-
Coutõ, Tom, L P, L P » dos
220 ÁSIA DE Diogo de Couto
)) dos pêra Lopo Vaz , e lhe obedeccíícm ,
)) íem mais íer ouvido Peio Aiafcarenhas j
)) e que o Alcaide mor que fícaíTe em Chaul ,
)) promctteria também de entregar aquelJa
» fortaleza a Lopo Vaz pela mefma manei-
5j ra j e que confeiitirido ambos os preten-
y^ fores , que fe puzeíTe fua caufa em direito :
y^ que antes dos Juizes pronunciarem nella
j, coufa alguma , prometteriam ambos com
)) juramento 5 que o que delles ficaíTe nogo-
)) verno nao entenderia na peíToa , fazcn-
jj da 5 parentes , amigos , e criados do ou-
)) tro , nem desfaria o que outro tiveíTe já
j) feito até então, e a qualquer delles, que
)) niílo não confentiíTe , lhe defobedeceíTem.
^ E que tanto que ambos chegaíTem a Goa ,
^ feriam logo foltos Eitor da Silveira , e os
yf mais Fidalgos que eílavam prezos , que
» também prometteriam de guardar o que
)) alli determinavam ; e que efte negocio fe
indeterminaria em Cochim, onde fe ajunta-
)) riam ambos os pretenfores , c que em par-^
)) tindo Lopo Vaz de Goa defiíliria da go-
» vernança , e iria como peíToa privada em
» poder de x\ntonio de Miranda , e que cbe-
)) gando a Cananor fe entregaria também de
» Pêro Mafcarenhas , e que Lopo Vaz íica-
» ria entregue a Chriílovão de Soufa , ou a
)) D. Simão de Menezes , pêra que o levaf-
yi fe nos navios em que foífem : que além
» do
DeoIV. Liv.ITI. Cap.VII. eVIIL 227
j> do feguro que António de Miranda havia
)) de haver pêra Chriílovao de Soufa do Go-
)) vernador , íhe haveria outro do Capitão ,
)) e Vereadores da Cidade de Goa , que ju-
)) rariam que não guardando Lopo Vaz o
)) feguro 5 obedeceriam a Pêro Mafcarenhas. )>
Eíla pauta le leo a todos os que eftavam na
fortaleza , e Chriílovao de Soufa lhes diíTe
a caufa porque a fizera , requerendo que lha
ajudaíTem a pôr em eíFeito , e de tudo fe
fez termo , em que todos fe aíTináram , fei-
to por Gafpar Affonfo Tabcllião em quatro
de Outubro de mil quinhentos e vinte e fe-
te annos.
CAPITULO VIIL
De como fe mojlrou a pauta a Lopo Vaz ^
e de como jurou de a cumprir , e fe par-
tio pêra Cochim , aonde fe havia de
julgar a contenda : e do que paffou
em Cananor com Vero Maf-
carenhas,
COncIuido iílo 5 que foi o melhor mo-
do que pode fer pêra a quietação da In^
dia , partiram todos aquelles Fidalgos pêra
Goa , ficando a fortaleza de Chaul entregue
a Álvaro Pinto Alcaide mor delia. Chega-
dos a Goa , foi-fe António de Miranda ver
<:om o Governador^ e perante o Licencia-
P ii do
228 ÁSIA DE Diogo de Couto
do João de Soiiro Ouvidor geral , e o Se-
cretario António Rico , lhe moilrou a pau-
ta, dizendo-]he que fizera aquillo por cum-
prir aíli ao ferviço de Deos , e d'ElRe7 , e
íe evitarem grandes males, que cílavam or-
denados ; e que peles muitos proteftos que
em Chaul lhe fizeram confentira naquillo
muito contra fiia vontade , porque bem fa-
bia que eliQ era o verdadeiro Governador,
e que pêra lua juíliça trabalharia que os Jui-
zes foítem fcm íuipcita , e fete fomente , pê-
ra terem menos que apurar. O Governador
ficou íbbrelaltado com aquillo , dizendo-lhe
que elle tinha a culpa , pois fe fiara mais del-
Je depois que dera o aíTuiado a Pêro Maf-
carenhas , e que fe cuidara que fizera aquil-
lo por evitar males , que agora ficavam el-
les mais prenhes ; e querendo-lhe António
de Miranda dar mais razoes , lhas não quiz
ouvir , dizendo-lhe , que já que aíli era , en-
tendeíTe que os Juizes não haviam de fer
mais de fete , como lhe tinha dito , o que
lhe elle certificou que não feriam mais. E
porque vio Lopo Vaz tão accezo , e cheio
de paixão , fem embargo do juramento que
tinha feito , lhe defcubrio os Juizes que eC-
tavam declarados, com o que Lopo Vaz fe :
defapaixonou , ficando mui defaliviado , e lhe
pedio lhe déíTe hum afiinado feu de ferem
Juizes aquelles que lhe tinha dito ; que lhe
el-
í
i
Década IV. Liv. III. Cap. VIII. 229
elle deo , em que fe alTináram o Ouvidor
geral , e o Secretario. Lopo Vaz inoítrou
a pauta a Pêro de Faria , e a feus amigos ,
que lhe aconfelháram confentiíTe nella , por-
que não o fazendo íe alevnntariam todos
contra elle , e perderia o direito que tinha
na governança , e o mefmo lhe diíleram os
Vereadores , a quem deo conta daquelíe ne-
gocio ; e por tím de tudo diíTe a António
de Miranda que confentia na pauta , mas
que havia de ir como Governador até Ca-
nanor , e que a honra de AíFonfo Mexia fof-
fe guardada , e que julgando-fe o negocio
por Pêro Malcarenhas , não o tiraria dos
oíiicios que tinha , do que António de Mi-
randa foi contente , e lhe paíTou diíTo leu
aílinado. Pelo que logo fe fokáram os pre-
zos 5 e paíTou feguro a Chriílovao de Sou-
fa pêra poder entrar em Goa , porque até
então ellava na barra , ( onde foi avifado
que Lopo Vaz tratava de o prender , e o
mefnío a António de Miranda , ) e deixou-
fe ficar fora fem querer entrar dentro. Pelo
que afTentou com Àntojiio de Miranda , que
diíTeíTem na aguada huma MiíTa , e que neí-
la tornaíTem a ratificar o juramento que ti^
nham feito , e de novo fe obrigavam a Lo-
po Vaz ir até Cananor por Governador , e
aííi a fcgurança de AíFonfo Mexia , o que
juraram de novo alevantando-ie a Floília ,
ef-
230 ÁSIA DE Diogo de Couto
eftando prefentes por parte de Lopo Vaz
D. Joao Deça , e o Secretario , que de tu-
do fez hum aíTento , em que le declarou ,
que tanto que Lopo Vaz chegaííe a Cana-
íior fc deíèmbarcaria do galeão S. Diniz ,
( por fer tão poderofo que lo com elle po-
deria pelejar com toda a Armada da índia , )
e que como reteudo fe entregaria a Antó-
nio de Miranda na fua galé , do que Lopo
Vaz foi contente , e o jurou eílando em S.
Franciíco ao levantar do Santo Sacramen-
to 5 fazendo algumas declarações , e protef-
tos que lhe convinham. Aos vinte e dous
dias de Outubro fe embarcaram todos , e
cliegáram a Cananor aos fcis de Novembro ;
e defembarcando Chriftovâo de Soufa , e
António de Miranda , foram dar conta a
Pêro Mafcarenhas de tudo o que era paíTa-
do , dizendo-lhe elle, que tudo confentiria
por pacificação da índia , poílo que tinha
entendido que todos tratavam de lhe toma-
rem feu direito , porque já António de Mi-
fanda tinha defcuberto o fegredo dos Juizes
à Lopo Vaz, como vira porhuma carta fua
que houvera ás mãos por luas intelligencias ,
efcrita ao Vcador da Fazenda , em que lhos
nomeava , e aiitre elles a Fr. Joao Dalvi,
que lhe tinha promettido de votar por elle ^
moílrando-lhe logo a mefma carta , do que
António de Miranda ficou atalhado. Pêro
Maf^
Década IV. Liv. III. Cap. VIIÍ. 231
Mafcarenlias lhe requerco , que Ic lançaíTe
fóra Fr. João Dalvi , pois era fufpeito , e
declarara fua tenção , e que em Teu lugar
entraílb Chriíiovâo de Soula , e que bem po-
dia fer hum dos Juizes, pois o era elle An-
tónio de Miranda também; mas Chriftovão
de Soufa fe efcuíbu com dizer , que Lopo
Vaz o tinha por mais íliípeito que a todos ,
pelo que em lugar de Fr. João Dalvi no-
mearam aquelles Fidalgos em fegredo entre
íi íinco Juizes mais , que foram Lopo de
Azevedo , António de Brito , que fora Ca-
pitão de Maluco , Nuno Vaz de Caílel-bran-
co 5 Triílao Dega , e Baíiiao Pires Vigairo
geral da índia , o que fe fez fem embargo
de António de Miranda ter dado o aílina-
do que diffcmos a Lopo Vaz de nao ferem
mais de fete. AíTentado iílo , ao outro dia
eílando todos á Miffa , virando-fe Baíiiao
Pires Vigairo geral com o Santo Sacramen-
to nas máos pêra o povo , jurou Pêro Maf-
carenhas de cumprir a pauta , em que havia
por bem , que ficando Lopo Vaz por Go-
vernador o pudeífe mandar prezo pêra o
Reyno , e o mefmo juraram todos os do
feu bando , de que fe fez term.o aííinado
por elles. Acabado ifto , mandou Pêro Mas-
carenhas chamar o Secretario , e fez lium
termo , em que declarava que os Juizes de-
putados não haviam de pronunciar mais na
cau-
2^z ÁSIA DE Diogo de Couto
caiifa ) fcnão qual delles ambos havia de fi-
car por Governador , porque cuja era a go-
vernança por direito fó ElRéy com os feus
Defembargadores o haviam de determinar,
no que claramente deo a entender pela fuf-
peição dos Juizes , que havia de ter lènten-
ça contra íi ; mas não podia ai fazer , fenao
confentir no que eítava ordenado , e queria
?jue lhe fícaíTe acção pêra requerer aElRey
ua juftiça. Acabado iíío , embarcou-fePero
Mafcarenhas no galeão de Chriftovão de
Soufa 5 e António de Miranda fe paíTou ao
galeão S. Diniz pêra tomar entrega de Lo-
po Vaz 5 fendo obrigado o mefmo Lopo
Vaz paíTar-fe pêra a fua galé, como eftava
aíTentado na pauta , e jurado por todos ,
do que fe Pêro Mafcarenhas aggravou , di-
zendo aChriílovão de Soufa , que já fe que-
bravam os contratos que eflavam feitos , pois
Lopo Vaz fe não queria fahir do galeão S.
Diniz , nem defirtir do mando , e governo ,
e levava ainda bandeira na gávea , como
Governador. Sobre iílo mandou Chriftovão
de Soufa outro recado a António de Mi-
randa , que requereo a Lopo Vaz fe mudaf-
fe á fua galé, como eílava aíTentado, o que
elle não quiz fazer , do que fe todos efcan-
dalizáram , e começou a haver união de no-
vo , o que vifto por Lopo Vaz , mandou
dizer a Fero Mafcarenhas por D. João De-
ca ,
Década IV. Liv. III. Cap. VIII. 233
ça , que pois a caiifa fe havia de averiguar
em Cochim fem elles eftarem prefeiites , que
o bom feria ficarem naquella cofta com a
Armada repartida , fazendo guerra ao Ça-
morim , e defendendo que nao mandaífe fuás
náos a Meca , por não levarem a pimenta
que fazia abater na d'ElRey , e que fó os
Juizes foíTem a Cochim , e que depois de
dada a fentença lha mandariam notificar. If-
ío commetteo Lopo Vaz , porque houve , que
fe o negocio ficava em Affonfo Mexia , que
era cabeça em Cochim , que elle ordenaria
com que fe déíTe a fentença por elle , o que
Pêro Mafcarenhas entendeo mui bem, e re-
fpondeo que nao vinha bem a nenhum dei-
les , porque o que tiveífe fentença contra íi
fe havia logo de embarcar pêra o Reyno ,
pêra o que era neceíTario eííar em Cochim
pêra fe negociar , mandando-lhe requerer,
que fe fahiííe do galeão S. Diniz , fobre o
que fe paííáram alguns dias fem Lopo Vaz
querer defirir a fcus prorefios : a que acudio
Chriílovão de Soufa , e pedio por mercê a
Pêro Mafcarenhas , que deixaíTe ir Lopo
Vaz aonde quizeíTe , porque niíTo hia pou-
co , pois os Juizes haviam de julgar a cau-
f 1 , e não os galeões, com o que houve' de
o confentir ; e dando am.bos os prctenfores
a vela , defparárani cada hum feu tiro , a
c.ijo íinal os homens , que pêra iífo tinham
nas
234 ÁSIA DE Diogo de Couto
nas gáveas , tiraram as bandeiras juntamen-
te , pêra que fe entendeffe , que por aquelle
final defiftiam ambos do mando , e gover-
no , e que até fe julgar a caufa ficariam co-
mo pefToas privadas , e ao tirar das bandei-
ras proteftáram ambos , que não defiftiam
da poíTe que tinham. Feiro ifio , António
de Miranda entregou Pêro Mafcarenhas a
Chriftovão de SouTa pêra no galeão S. Ra-
fael , em que hia , o levar a Cochim , e lá
lho entregar , e elle tomou entrega de Lo-
po Vaz , ficando então como Capitão mor
que era da índia , a primeira peíToa delia ,
e ambos os Governadores de baixo de feu
poder. E fendo eu moço , fervindo a ElRey
D.João na guarda-roupa 5 ouvi dizer áquel-
les Fidalgos velhos daquelie tempo , falian-
do neftas coufas , que diíTera ElRey , que
António de Miranda não foubera fer Go-
vernador da índia. E em huma falia que o
mefmo António de Miranda lhe fez fobre
feus fer viços , dizem , que lhe refpondêra El-
Rey , que de huma fó coufa fe não houve-
ra por bem fervido delle , que fora não lhe
mandar prezos Lopo Vaz , e Pêro Mafca-
renhas depois de os ter em feu poder, o que
elle bem pudera fazer , ficando governando
a índia com titulo de Capitão mór até El-
Rey a prover, como logo fez.
CA-
Década IV. Liv. III. 235*
CAPITULO IX.
De algumas defauenças , que houve em Co-
chim entre os Governadores : e de como
Je accrefcentdram mais dous 'Juizes
por parte de Lopo Vaz ^ e do que
mais pajjou,
SUrtos todos no porto de Cochim , foi
António de Miranda a terra , e deo con-
ta a AíFonfo Mexia do que era paíTado ,
moílrando-lhe a pauta , c todos os mais pa-
peis 5 que eílavam feitos antre os Gover-
nadores 5 de que Aííbnfo Mexia tomado dif-
fe , que tal não havia de confentir , pois íè
tratara tudo aquilio fem fua authoridade ,
fendo a fegunda peíToa do Eílndo em car-
go , que a elle havia ElRey de eílranhar
mais aquellas coufas que a todos elles. E
com quantas razoes António de Aliranda
\hc deo 5 não o pode mover a coufa algu-
ma , porque era homem mui afferrado a
íeu parecer. O que fabido por Pêro Maf-
carenhas , e pelos de fua valia , requere-
ram a António de Miranda , e a Chrifto-
vão de Soufa , que pois AíFonfo Mexia
não queria jurar a pauta , nem confentir na-
quellas coufas , que eram pêra paz , e foce-
go do Eílado , (no que fe queria moílrar par-
te ^ e claramente fufpeiro a Rias coufas , )
que
236 ÁSIA DE Diogo de Couto
«
que fe não dererminaíTe aquelle negocio em
Cochim fenão em Coulao , que era dalli hum
dia de caminho. E entendendo elles que Lo-
po Vaz o não havia de querer, por terem
iabido que toda fua efperança eftava no Af-
foníb Mexia, porque quanto ao direito ef-
tava delle bem duvidofo , como na verda-
de eftava , fe o não tomaram tão claramen-
te a Pêro Mafcarenhas todos quantos or-
díram aquella tca ^ e como elles eftavam apoC-
tados a fazerem em tudo a vontade a Lopo
Vaz 5 e acabar-fe já aquella contenda , fi-
zeram com Pêro Mafcarenlias que deixaíTe
fentencear aquelle negocio , pofto que A£-
fonfo Mexia não aílinaíTe a pauta : o que
elle confentio , porque não vieíTe aquelle ne-
gocio ás armas pêra mais juíliíicação fua pê-
ra com ElRev. Com ifto fe foram a terra
António de Miranda , e Chriftovão de Sou-
fa , e fe recolheram no Mofteiro de Santo
António pêra nomearem os Juizes , inliftln-
do Chriftovão de Soufa em fe lançar fora
Fr. João Dalvi , e que em feu lugar fe
iTietteíTem os que já eftavam declarados , no
que não quiz confentir António de Miran-
da até o fazer a faber a Lopo Vaz , que
tomou muito mal a mudança que fe queria
fazer nos Juizes, e difle bradando alto, que
já não podia foffrer mais , e que bem efcu-
fado fora enganarem-no , e trazcrcm-no affi
de
Década IV. Liv. III. Cap. IX. 237
de Goa , que elle tinha diíTo a culpa, e que
a elle António de Miranda , e a todos os
mais efpetaria em hum pá o : e que fe fof-
fem logo pêra Pêro Mafcarenhas , porque
fe nao quizelTe confcntir no que eftava af-
íèntado , nem elle coníentia cm algum dos
Juizes , nem fe queria por a direito com peP-
Iba alguma , que elle naquellc galeão pele-
jaria contra todos , e que a ventura diria
quem era o Governador ; e que elle Antó-
nio de Miranda daria conta a Dcos , e a EI-
Rey de todas as defaventuras que fuccedef-
fem 5 pois elle íó fora a caufa delias. António
de Miranda affrcntado daquellas palavras,
lhe refpondeo , que elle não enganava a nin-
guém , antes tinha feito o que devia ao fer-
viço de Deos , e d'ElRey , e bem , e quie-
tação naquelle Eílado : que elle fe queixaria
a feu Rey das injúrias que lhe alli dizia ,
e que elle era o que não queria razão , nem
juíliça , deíèntoando-fe em palavras , que fe
não ouviram bem com a grande revolta dos
que fe mettêram em meio : e aíll apaixona-
do , e blazonando fe fahio do galeão , e fe
paífou ao de Pêro Mafcarenhas. Sabendo
clle o que paíTava , lhe requereo que por
virtude da pauta , ejuram.entos feitos, (pois
Lopo Vaz quebrava as condições delia , e
não confentia nos Juizes , ) que o houveíTe
por Governador , conforme aos aíTentos que
ef-
238 ÁSIA DE Diogo de Couto
eftavam feitos , fem mais fer ouvâdo Lopo
Vaz , e o meímo requerimento lhe fizeram
CS Fidalgos que alli ellavam. António de
Miranda diíTe que lhe obedecia , mandando
fazer hum auto , que pois Lopo Vaz que-
brava os contratos, e juramentos feitos , que
havia Pêro Mafcarenhas por legitimo Go-
vernador da índia ; e logo lhe entregou to-
da a Armada que tinha a feu cargo , que
era a galé baílarda , em que eílava Eitor da
Silveira , e a ndo de Nuno Vaz de Caftel-
branco , duas caravelas , de que eram Ca-
pitães Vicente Pegado , e João de Sá , hum
galeão de que era Capitão Simão de Mel-
lo, que naquelle tempo não eftava nelle , e
alguns navios de remo , e o galeão S. Ra-
fael 5 em que eílava o meímo Pêro Mafca-
renhas. Com Lopo Vaz ficaram os galeões
S. Diniz , e S. Luiz , de que era Capitão
Martim AíFonfo de Mello Juzarte , e o Ça-
morim em que eftava João de Mendoça , e
ás galés de Ruy Pereira , e António da Sil-
veira , a caravela de Fernão de Aloraes , e
muita fuftalha , que eftava no porto de Co-
chim ; e aííi fe apartou Pêro Mafcarenhas
com a fua Armada a huma parte , pondo-
íè em ordem* de peleja , o mefmo fez Lo-
po Vaz pêra averiguarem aquelle negocio
por armas, como já aconteceo antreAuguf-
to, e Marco António fobre o Império de
Ro-
Década IV. Liv. III. Cap. IX. 239
Roma, levando todos fua artilheria , eaíTa-
calando fuás armas , como fe cada hum deC-
tes Governadores houvera de pelejar com
Rax Soleimao fe paíTára á índia. A gente
ordinária de Pcro Mafcarenhas bradava por
batalha , dizendo que já não era razão fot-
frer tanto a Lopo Vaz , de forte que tudo
era huraa confusão , e barbarice que met-
tia medo , e efpanto , porque , fegundo o po-
der de ambos eftava igual , não pudera dei-
xar de haver a mor deíaventura do Mundo ,
porque eílava certo não fe apartarem fem.
a vitoria de alguma das partes ^ e aííi o que
ficaíTe com o Império do Oriente , fobre que
contendiam, havia de ferem eílado que mui-
to facilmente o poderia logo perder , por-
que o Çamorim com todos os Reys do
Malavar eílavam á mira com grande Arma-
da , pêra mandarem dar no que ficafíe , e
folicitáram os Reys deCananor, e Coulao ,
pêra fe alevantarem logo contra aquellas for-
talezas , e tudo fe perdera , fe Deos o não
atalhara. Os proteftos corriam apreíTados de
parte a parte , defcarregando hum fobre ou-
tro toda a culpa dos damnos que fuccedel-
fem. António de Miranda fentio-fe muito
culpado em ter defcuberto a Lopo Vaz os
Juizes 5 porque dahi nafceo todo o mal , e
foi contra o juramento, e obrigação que ti-
nha j porque fe os tivera em fegredo, nem
Lo-
240 ÁSIA DE Diogo de Couto
Lopo Vaz foubera quem havia de julgar a
caufa 5 nem houvera mais que eíperar fen-
tença , porque a hora que fe norneaíTem ,
fem fe bulirem dalli , fe havia de determi-
nar o negocio ; e por evitar tantos damnos ,
e defaventuras , dizem , que mandara dizer
em fegredo a Lopo Vaz , que lhe dava fua
palavra de votar por elle , por iíTo que fe
quietaíTe, como fez por confelho de Affon-
fo Mexia ; e mandando cham.ar António de
Miranda , pedio-Jhe perdão das palavras que
lhe diíTera , e depois de reconciliados fez
hum termo em que confentia nos Juizes , e
a requerimento de Pêro Mafcarenhas fe mu-
dou do galeão S. Diniz á náo S. Roque,
efoi entregue a António da Silveira, e Pê-
ro Mafcarenhas fe mudou á náo Flor de la-
mar entregue a Diogo da Silveira , e am-
bos juraram de os entregar a António de
Miranda quando lhos pediíTe. Com iílo fe
foram a terra António de Miranda , e Chri-
ftovao de Soufa com todos os Fidalgos pê-
ra nomearem os Juizes.
1
DE-
ECADA (QUARTA.
LIVRO IV.
Da Hiíloría da índia.
CAPITULO I.
Dos Juíz-es que fe accrefcentârani de V(h
vo: e de como fe de o a fent ença por Lo^
po F^az de Sampaio : e de como Fe-
ro Mafcarenhas fe embarcou
pêra o Rcyno.
EcoLHiDOS Chriftovao de Soufa , e
António de Mirajida em Santo An-
tónio , hum dia pela manhã nomea-
ram os Juizes, que temos dito, eftando na
Capella da Igreja , onde logo fe diíTe huma
MiíTa , e alevantando o Saniillimo Sacramen-
to , juraram os Juizes de bem , e verdadei-
ramente julgarem aquella contenda ; e o Se-
cretario 5 que. havia de tomar os votos , tam-
bém jurou de ter em íegredo os taes votos ,
que os Juizes ihe haviam de dar por feus
aíTinados , e que os não moílraria fenão a
ElRey em Portugal. Eftando já a coufa deC-
Couto.Tom.LP.L Ct ^^
24^ ÁSIA DE Diogo de Couto
ta maneira , apartou António de Miranda
a Chriftcvao de Soufa , e lhe diííe , que el-
le queria accreicentar mais deus Juizes , que
eram Fr. João Dalvi , e Braz da Silva \\e
Azevedo , o que Jhe Chriílovao de Soufa
eftranhou , debatendo com elle muito , até
que lhe prometteo , íe o confentiííe, de dar
feu voto por Pêro Mafcarenhas , e que o
meímo entendia que havia de fazer D. João
Dcça , porque a juíliça citava muito clara
por eile , e que não fazia aquillo fenao por
pacificar , e fatisfazer a Lopo Vaz , e por
quietação da índia ; c tantas couíiis lhe dif-
fe fobre iíTo , que o confentio , fem dar con-
ta a Pêro Mafcarenhas , que todos andavam
a lhe tomar o que era feu : E certo que pa-
receqcoufa efcandalofa a deíle Religiofo Fr.
João Dalvi querer-fe quafi por força metter
reíle negocio , tanto , que a primeira vez
que Pêro Mafcarenhas teve pejo nelle ^ lo-
go fe houvera de lançar de fora , e fegun-
áo a inílancia com que Lopo Vaz iníifria
em o metter por Juiz , parecia que lhe ti-
nha promettido fentença , ou o feu voto ,
em que fe m.oíirava fer bem fufpeito , pois
fe aíiirmava que defcubrira fua tenção con-
tra a obrigação de fua proíilsao , de que íe
os Religiofos haviam muito de aíFaílar , por-»-
que feu officio he rogar a Deos pela con-
fcrvação dos Reynos , e das Republicas , e
dei-
Década IV. Liv. IV. Cap. I. 245
deixar o governo delias a quem os Reys as
enconiineiidam , que são Capiraes , e Caval-
leiros , que com as armas defendem os Ef-
tados , c os dilatam , ganhando fama per-
pétua , e gloria eterna , pelejando pela Fé de
Chriito , que os bons Religiofos ganham
com orações , e lagrimas. E deixando efta
matéria , tornando ás coufas dantre os dous
Governadores Chriílovao de Souía , e An-
tónio de Miranda , deram juramento a Af-
foníb Mexia , e a D. Vaíco Deça , que en-
tregariam aquella fortaleza de Çochim a
qualquer dos dous por quem fe julgaílé a
Governança , o que ellcs fizeram com con-
dição , que juraflem todos os que aili cíla-
vam , que dando-íe íentença por Pêro Maf-
carenhas , tomavam fobre íi a elles , e Ai-
res da Cunha Capitão de Couíão , a Pêro
Vaz Travaííos , e a Diogo Sancho, e aos
moradores de Cochim , aíTi fuás pcíFoas ,
como fazendas , e lhe fízelTem dar a elie
AíFonfo Mexia embarcação pêra o Reyno ,
e que o não obrigaíTem a ficar na índia ,
o que clles juraram juntos \ e apartados os
Juizes 5 deixou-fe ficar dentro cõm elles Chri-
ílovão de Soufa , fem embargo de não que-
rer fer hum deiles , o que lhe António de
Miranda eftranhou , pedindo-lhê fe fahiíTe
pêra fora , tendo elíes aiTentado ambos que
eftariam ao defpacho , o que Chriftovãô át
Q^ii Sou-
244 -^SIA DE Diogo de Couto
Souía não quiz fazer , febre o que alter-
caram razoes , e fe atearam em palavras,
.a que os Juizes acudiram mettendo-fe em
jneio ; e em fím Chriílováo de Soufa fe fa-
■liio pêra fora , entendendo mui bem que íe
queria roubar a juílip a Pêro Mafcarenhas ,
e ficou mui rrifte , e arrependido dos dous
Juizes , que deixou accrefcentar de novo j e
vendo que a coufa toda ficava á vontade
de Lopo Vaz , foi-fe embarcar , e entrando
no galeão de Pêro Maícarenhas , chegando
a tile mui agaftado , diíTe : S'us , façamos
alforges ^ e partamos , que tudo he por de-
7nais , e calou-fe pelo juramento que tiiiha.
■Bem entendeo Pêro Mafcarenhas , que tudo
ficava fobornado por parte de Lopo Vaz ;
mas como não queria mais que paz, e quie-
tação , deixou julgar o negocio como qui-
zeílem , porque bem fabia que EiRey lhe
faria juftiça. E querendo os Juizes entrar na
matéria que levavam já bem eíludada por
parte de Lopo Vaz , chegaram D. Vafco
Deça 5 e Simão Caeiro procuradores de am-
bos os prctenfores , e offereceram fuás ra-
zoes , e apôs elles entrou o Procurador da
Cidade com hum requerim.ento dos Vcrea^
dores , em que lhes pediam da parte de
Deòs , e d'ElRey que não julgaílem a Go-
vernança por Pêro Mafcarenhas, porque le
O faziam j juravam de defpovoar a Cidade,
c paf-
Década IV. Liv. IV. Cap. I. 245-
e paíTarem-fe a terra dos Mouros , offcre-
cendo pcra iíTo huip.as razoes mui compri-
das , que por taes as deixamos , em que apon-
tavam muitas couías contra Pêro Mafcare-
Ilhas 5 porque diziam não poder Ter Gover-
nador. Fechados os Juizes 5 começaram a de-
bater a matéria , em que gaíláram parte do
dia , e da noite , em que os caiados todos
de Cochim andaram pelas ruas em procif-
soes defcalços , com fuás mulheres , e filhos ,
pedindo a NoíTo Senhor os livraíTe de Pe-
i"0 Maícarenhas governar , porque receavam ,
que fendo Governador fe vingafle de todos
pela reíiílencia que lhe fizeram. Viftas pelos
Juizes as fuccefsoes ambas , os autos das pof-
fes , e juramentos , e as razoes de parte a
parte , e depois apartados de dous em dous ,
defcutíram a matéria , e puzeram fuás ten-
ções em efcrito , e aífinando-fe nelles , os
deram ao Secretario , que depois de os ter to-
dos 5 os apurou , e tomando os votos , achou-
fe mais hum por Lopo Vaz de Sampaio ,
que fegundo ouvimos dizer a hum Fidalgo
honrado , e muito velho na índia , foi o do
P. Fr. João Dalvi. Sendo vencidos os vo-
tos por parte de Lopo Vaz , pronunciaram
os Juizes a Sentença neíla forma: Vijios ef-
t€s autos , e o que por elles fe mojira , jul-
gamos por noffa definitiva Sentença , que
Lopo Vaz de Sampaio feja Governador nef-
tas
2^6 ÁSIA DE Diogo de Couto
tas partes da índia , e que Pêro Mafca-
venhas Je embarque pêra o Reyno , dando-
fe-lhe embarcação conforme a fua pejjoa \ e
quanto aos ordenados fique per a ElP^ey os
julgar como lhe bem parecer , e ajji todo o
mais que cada hura quizer requerer, E aí-
finados todos os Juizes , publicou-íc logo a
Sentença, que foi dada aos vinte e liiim de
Dezembro. Tanto que íc publicou , embar-
cáram-íe em hum barga:uim António de Mi-
randa 5 D.JoaoDeça, Braz da Silva ,^ Trif-
tão Dega , e foram á náo de Pêro Mafca-
renhas , que eílava com Chriílovao de Sou-
fa , e D. Simão de Menezes , e prefentes
todos lhe notificou o Secretario a Sentença
que Pêro Mafcarenhas ouvio com hum roí-
to muito feguro , fcm fazer mudança em
coufa alguma; e depois de a ouvir não dif-
fe mais fenao que ElRey lhe faria juíliça.
Dalli fe foram á náo de Lopo Vaz , c lha
publicaram também , que a ouvio com bem
diíFerentes exteriores de Pêro Mafcarenhas ,
porque logo wqiWq , e nos ieus fe enxergou
mui fobcja alegria , dando publicamente os
agradecimentos aos Juizes , e pedindo per-
dão a António de Miranda ; e porque aquil-
Io era já de noite , a paliaram toda no feii
galeão em bailos , e tangeres ; e pela ma-
nha emb<l"cando-íè o Governador em hum
bergantim, foi correndo todos os navios da..
Ar-
Década IV. Liv. IV. Cap. I. 247
Armada pêra fegurar os Fidalgos , que fo-
ram do bando de Pêro Maícarenhas , por-
que receou que fe quizeíTem ir pêra o Rey-
no , e com todos íe reconciliou , apazigou ,
e quietou. Dalli fe foi a terra, onde foi re-
cebido da Cidade com pallio , e grandes fef-
tas , dando logo ordem á carga das náos.
Pcro Mafcarenhas não fe deíembarcou , an-
tes ficou fempre no mar , mandando fazer
preíles as coufas neceíFarias pêra fua embar-
cação; e fendo quinze de Janeiro fe embar-
cou , entregue por mandado do Governador
a António de Brito , que hia rico de Malu-
co, e era hum Fidalgo muito honrado , que
depois de fer em Portugal cafou com hu-
ma irmã de Martim Affonfo de Soufa , que
depois foi Governador da índia , de quem
teve huma filha, que cafou com D. João da
Silva Conde de Portalegre , de quem elle
não houve filhos. Primeiro que Pêro Maf-
carenhas íb embarcaíTe , mandou citar Lopo
Vaz pêra em Portugal requerer contra elle
a Gov^ernança da índia , aííi pelos ordena-
dos , como por todos os próis , e percalços.
Caílanheda diz , que depois houvera fenten-
ça contra elle pelos ordenados , e o mefmo
diz Pêro IMaphco , que o fegue ; e accref-
centa mais , que fora condemnado o mef-
mo Lopo Vaz em vinte mil cruzados , que
era o ordenado de dous anãos , que gover-
nou
248 ASIx\ DE Diogo de Couto
noLi depois de aberras as fucceisòes que vie-
ram do Reyno. João de Barros , fc nos náo
kmbra mal, diz, que foi aleive que Cafta-
nheda aievaiitou a Lopo Vaz j e parece-me
que diz niais , que bulcára os cartórios pê-
ra ver eíla Icntença , e que em neniium a
achara. Fero Malcarenlias foi bem recebi-
do d'ElPvCy , que teve feirtpre muita conta
com fuás coufas , e lhe deo a capitania de
Azamor , e depois de eftar alli alguns an-
nos vindo pêra o Reyno perdeo-fe em hu-
mas caravelas. Foi efte Fidalgo filho fegun-
do de João Mafcarenhas , e neto de Nuno
Mafcarenhas irmão do Capitão dos Gine-
tes Fernão Martins Mafcarenhas : foi ca-
fado com D. Maria filha de Fernão Pe-
reira Barreto , de que houve duas filhas ,
Dona Catharina Pereira Barreta mulher de
D. João de Caílel-branco filho do Conde
D. Martinho , e D. Elena Mafcarenhas , que
cafou com D. Pedro Mafcarenhas , que foi
por Embaixador a Rom,a , e depois porVi-
ib-Rey da índia. Teve mais dous filhos baf-
tardos , João Mafcarenhas , e Jeronymo Maf-
carenhas 5 foi natural da Villa de Loulé no
Algarve. Depois deftas diííerenças ( porque
não houvcITe outras na Lídia) mandou El-
Rey D.João hum regimento, em que diz,
que abrindo-fe as fuccefsoes da Governança
(da índia , fe o que aellas fuccedeíTc não ef^
ti-
Década IV. Liv. IV. Cap. I. 249
tiveíFe defde o Cabo de Çamorim até a pon-
ta de Dio , náo fe eíperaíTe pela tal peitoa ,
e íe abrilTe a outra íuccefsão , ( o que já
aconteceo quando fuccedeo D. Diogo de
Menezes , como em feu lugar diremos. )
Lopo Vaz , depois de defpedir as náos pê-
ra o Reyno , tendo já íabido que a Arma-
da dos Turcos fe tornara a recolher a Suez ,
tratou de a ir bufcar , e queim.ar naquelle
porto , o que poz em confelho , e foi con-
trariado de todos por caufa da Armada que
o Çamorim tinha feita , • aíTentando-fe , que
fe mandaífe o Capitão mor áquelle eílreito
a faber a certeza delias , e que nao vindo
pêra o anno Governador do Reyno , então
as poderia ir bufcar com mais poder , e ca-
bedal. AíTentado ifto , defpedio logo Antó-
nio de Miranda com leis galc()e3 , c huma
caravela , huma g:úé , dez navios de remo ,
em que hiam os Capitães feguintes. No ga-
leão S. Diniz , dlc :, Fernão Rodrigues Bar-
bas no galeão S. Rafael , António da Sil-
va no Reys Magos , Ruv Vaz Pereira no
galeão S. Luiz , Henrique de Macedo no
Çamorim grande , Lopo de Mefquita no
pequeno , Ruy Gonçalves na caravela bi-
cha , Ruy Pereira na galé baftarda. Nos na-
vios de remo Francifco de Vafconcellos ,
Pêro Celas , Francifco Alvares , e outros.
Iriam neíla Armada mil homens d'armas , e
deo
250 ÁSIA DE Diogo de Couto
deo cila Armada á véla cjuafi juntamente
com as náos do Reyno. Lego poucos dias
depois mandou o Governador feu íobrinho
Simão de Mello ás lihas de Maldiva efpe-
rar as náos de Meca , e levou Jium galeão ,
huma caravela , e dous , ou três navios de
remo , e de fua jornada adiante diremos.
Em quanto o Governador fica em Cochim ,
entendendo em algumas coufas ncceílarias ,
tornaremos ás de Maluco que nos cham.am.
CAPITULO IL
Do que pnjjou Z). Jorge Capitão de Malu-
co com D. Garcia Henrique fobre cer-
tos apoiít amentos que levava : e de
como mandou a Malaca pedir
foccorro , e prendeo D. Gar-
cia em ferros,
A Trás temos dado conta das coufas que
em Maluco fuccedêram com a chega-
da de D. Jorge, e de como ficou correndo
em tre.^oas com os Caíklhanos. Vindo a
niouçáo em que D. Garcia íe quiz embar-
car pêra a índia, lhe mandou D.Jorge no-
tificar , que ie foíie pela via de Borneo ,
conforme a hum regimento que levava de
Pêro Mafcarenhas , porque defejava de fe
fazer íempre aquella derrota por fer m.ais
apreíTada , que a que fe fazia por via de
Ban-
Década IV. Liv. IV. Cap. II. 25'!
Banda : que por fer mais apreíTada , man-
dou Anronio de Miranda de Brito , íendo
Capitão de Maluco , defcubrir o anno de vin-
te e três por António de Abreu feu paren-
te 5 que foi o primeiro que por ella nave-
gou , o que Fero Maícarenhas defejava fe
continuaíTe , aíii por ler mais breve a jor-
nada , como por grangear o commercio , e
amizade daquelles Reys , e fenhores das Ilhas
de Borneo , porque tinha por noticia que
havia nellas muito ouro ; e a principal ra-
zão era , porque queria tolher aquella nave-
gação aos Caílelhanos. D. Garcia tomou
iv.Cil a notificação , porque recebia mui gran-
de perda não indo por via de Banda , por-
que efperava de achar alli hum junco que
o anno paíTado mandara a Malaca , e man-
dou dizer a D. Jorge , que de muito boa
vontade fora pela via de Borneo , mas que
era jornada duvidofa , porque já a comet-
téra em tempo de António de Brito, levan-
do muito bons Pilotos , e que , depois de an-
dar muitos dias perdido por antre aquellas
Ilhas 5 tornara arribar a Maluco. D. Jorge
o efcufou 5 ordenando de mandar outrem
defcubrir aquelle caminho. D. Garcia tra-
tou de o eílorvar , porque indo alguém que
não foíle elle , ficava culpado com o Go-
vernador , e diíTe a D. Jorge , que lhe pa-
recia efcufado mandar navio a Malaca, por-
que
i^z ÁSIA DE Diogo de Couto
que fe era a pedir íbccorro , que elle tinha ll
já mandado a iíTo Manoel Lobo , que de-. ||
via de fer já lá , e que a reípofta nao po-
deria tardar , porque como fe foubefle dos
Cartel hanos , forçado fe haviam de apreíTar:
e que vendo lá outro navrio com gente , ha-
veriam que a neceílidade não era grande ,
pois a podia efcuíar , e ainda o faria mais
vagarofo fe lhe levaíTc recado , que ficavam
em tregoas com os Caftclhanos : que elle ti-
nha por novas que Martim Inhcgues orde-
nava hum navio pêra mandar com recado
á nova Hefpanha a pedir náos , e gente :
que elle queria ir efpeiar eíle navio , que
havia de levar o recado , e tomallo , que
lhe mandaíTe armar pcra iíTo o feu navio ,
e outros alguns. D. Jorge nao lhe acceitou
os cumprimentos , fobre o que D. Garcia
lhe fez grandes proteílos , com o que Dom
Jorge deílílio do navio , que queria mandar
a Malaca , e D. Garcia fe começou a ne-
gociar pêra fe partir ; e porque receou nao
lhe deixar D. Jorge embarcar vinte homens
de fua obrigação , pela neceílidade que ha-
via dclles , lhe deo cem bares de cravo , e
paflbu-lhe huma efcritura , que em Malaca'
os daria a feus procuradores , por eftarem
já embarcados , com tanto que lhe deixaíTe
embarcar a gente de fua obrigação , o que'
lhe elle prometreo ^ ( couía mui ordinária
na
Década IV. Liv. IV. Cap. II. 2^^
na índia eni alguns Governadores , e Capi-
tães , dar-lJies pouco de a deixarem em tra-
balhos , e perigos , porque não tratam mais
que de fi , e de levarem com que comprar
rendas no Reyno , e depois em fuás quin-
tas aos foalheiros , quando vam as novas
da índia , perguntam fe ainda vive , e fe
eílá ainda em. pé : no que tem muita razão ,
porque os mais delles a deixaram , e fuás
fortalezas pêra efpirar. ) E tornando a Dora
Jorge , depois de ter feito aquelle partido
tão aííi-ontofo , cahio que fazia erro em não
obrigar a D. Garcia a ir pela via de Bor-
jQco , como lhe mandara Pêro Mafcarenhas ,
pelo que lhe tornou a mandar fazer novo
requerimento fobre iíTo. E porque de todo
lhe pareceo fer obrigação avifar o Capitão
de Malaca das coufas dos Caílelhanos , man-
dou huma corocora mui ligeira , e nella
três Cavalleiros mui honrados , chamados
•Vafco Lourenço , Diogo Cão , e Gonçalo
Vellofo , e hum Piloto Caílelhano , a que
não achámos o nome , dando por regimen-
to a eíles homens que foíTem por Borneo ,
c notaíTem bem aquella derrota , e fe vif-
fem com aquelle Rey , e airentaíTem com
filie pazes , e amizades , mandando-lhe por
elles hum prefente de brincos , e couías cu-
riofís , em que entrava hum panno de raz
de figuras antigas , e grandes muito ricoj
ef-
25'4 ÁSIA t)E Diogo de Couto
efcrevendo ao Capitão de Malaca , e ao Go-
vernador muito largamente iodas as couías
fuccedidas em íeu tempo naqiiellas Illias :
neíla volta foram também cartas de Dom
Garcia . e de Cacliil Daroez pêra o Gover-
nador, em que lhe diziam muitos males de
D. Jorge , e deíla jornada adiante daremos
razão. D. Garcia ficou negociando hum jun-
co feu pêra íe ir pêra a índia , e fuccedeo
lio mefmo tempo falecer Martim Inhegues
Capitão dos Caílelhanos , e Ter eleito hum
Fernão de la Torre , que D. Jorge mandou
viíitar , e faber delle fe queria guardar as
tregoas que citavam feitas , o que elle não
quiz , porque era homem alterado , e de
não muito governo , com o que fe tornou
a atear a guerra , mandando o de la Tor-
re armar huma galeota pêra fazer guerrd
aos noííos. Sabido por D. Jorge , por não
ter .nenhum navio de rem,o poíTante pêra
contra aquella galeota , mandou logo armar
outra , a que fez dar muita preíTa , toman-
do porá ifib quantos carpinteiros havia na
terra , em que entravam alguns que traba-
lhavam no junco de D. Garcia , fobre o
que tiveram muito ruins palavras , em que
chegou D. Garcia a punha r da efpada , e
niettendo-fe muitos no meio , fe recolheo
D. Garcia pêra fua cafa. D. Jorge induzi-
do de homens mal inclinados , (que fempre
nelr
Década IV. Liv. IV. Cap. IT. 25'^
•nefte negocio aíTopram bem o fogo , ) man-
dou pelo Ouvidor tomar a menagem a Dom
Garcia , e que fe vieííe metrer na fortaleza.
ID. Garcia zombou do Ouvidor , ao que
acudio D. Jorge a repique de lino , nego-
ciando-fe pêra o ir prender , mandando dian-
te o Alcaide mor a lhe requerer que fe fof-
fe pêra a fortaleza. D. Garcia eftava com
quarenta homens poftos em armas: dando-
lhe o Alcaide mor o recado , dizcndo-lhe
que D. Jorge hia por caminho , que havia
deefjufar pendenças , refpondeo , que fe ei-
]e lá foííe , que clle o fahiria efperar fora.
Sabido por D.Jorge, m.andou aííeíiar algu-
inas peças de artilheria nas cafas de D. Gar-
cia pêra lhas derribar, mandando-lhe fazer
primeiro notificação pelo Alcaide mor , e
' por Triftão Vieira , que era amigo de Dom
Garcia , que lhe diíTe tantas coufas , que fe
fahio ió^ de caia , e chegando á fortaleza ,
diíTe a D.Jorge: Eis-me aqui ^ que me que-
reis ? D. Jorge lhe tomou a menagem , e
mandou fazer de tudo hum auto pelo Ou-
vidor , ficando na fortaleza alguns dias pre-
zo , em que o Rey de Geilolo por par-
te dos Caftelhanos começou a fazer guerra
aos noíTos com Armadas pelo mar , dando
nos lugares d'ElRey de Ternate. D. Jorge
acudio com algumas corocoras que man-
dou em bufca dos inimigos. Vifto por to-
dos
1^6 ÁSIA DE Diogo de Couto
dos os da fortaleza a guerra travada , pedi-
ram a D.Jorge foltaíTe D. Garcia, que era
hum Fidalgo tão honrado , e que acabara
de ier Capitão daqueíla fortaleza , e que os
Mouros andavam efcandalizados de ver an-
tre cllesaquellas diíTcnsoes i mas como Dom
Jorge eílava teimolb , diíTe que aífi prezo
o havia de mandar á índia : com o que Dom
Garcia lhe mandou requerer que o foItalTe,
e quando nao , que o prendeíTe em ferros ,
ienão que fe havia de ir pêra fua cafa ;
(iílo lhe mandou dizer , porque fcmpre cui-
dou que D. Jorge nao quizeííe chegar com
gWc ao cabo : ) Mas D. Jorge , que eílava
com fua paixão , lhe mandou lançar hum
bom grilhão , com o que os amigos , e cria-
dos, que feriam perto delincoenta, fe amo-
tinaram , tratando de o ir tirar da fortale-
za , mas não puderam : pelo que fe deter-
minaram de fe irem pêra hum lugar forte
do Sertão , do que deram conta a Cachil
Daroez , pêra de lá mandarem requerer a
D. Jorge foltaíTe D. Garcia , fenao que iè
paííariam pêra os Caílelhanos. Eíles tratos ;
defcubrio hum deíles a hum Fernão Bal- :
daya , por fiber que o havia de dizer logo a :
D. Jorge , como fez : pelo que determinou i
de prender os principaes da conjuração , a :
que acudio Simão de Vera , e outro , di- (
zcndo-lhe que melhor feria foltar D. Gar-
cia^
Década IV. Liv. IV. Cap. III. ^^'J
cia , e diílimular-fe tudo , como logo fez ,
fazendo-fe amigos , e rompendo as dcvaílas
ficaram correndo em amizade.
CAPITULO III.
De como os ãe D. Garcia o induziram que
prendejje D, Jorge , e de como o fez ,
e fe metteo na fortaleza,
OS amigos de D. Garcia , c todos os
que pretendiam ir com elle pêra a ín-
dia , não ficaram fatisfeitos deitas amizades y
receando que fe duraffem até fe embarcar,
iiáo levaíTe todos , nem era razão , porque
ficaria a fortaleza fò. Pelo que começaram
a femear novas zizanias 3 perfuadindo a Dom
Garcia fe não fiaíTe de D. Jorge , que por
derradeiro era amigo reconciliado. Tanto
lhe diíTeram diílo , que fizeram com elle an-
dalTe com o olho fobre o hombro , come-
çando a andar acompanhado dos induzido-
res. Por outra parte , alguns que fe moftra-
vam familiares de D. Jorge , o avifavam ,
que não fe fiaíTe de homem a quem tinha
efcandalizado , porque a todo o tempo que
pudeíTe fe havia de fatisfazer ; e que fabiam
que D. Garcia dava muitos avifos aos Caf-
íelhanos , e trabalhava tudo o que podia por
Cachil Daroez fe alevantar contra a for-
taleza 5 e que provocava os Ternatezes ao»
Couto^ Tom, L P. /. R odia-
2)8 ÁSIA DE Diogo de Coxtto
odiarem. E não parando aqui o negocio ,
luccedeo vir EIRey de Baclião á noffa for-
taleza a negocio, e tendo llias eftancias fo-
ra, huma noite deram huns poucos nellas ,
e matando-lhe quatro , ou fmco homens , e
ferindo-lhe muitos , tudo a fim de o omizia-
rem com D. Jorge. x\o outro dia indo El-
Rey á fortaleza a fazer queixas daquillo ,
]he íahíram Triftao Vieira , AíFonfo. Gen-
til 5 e Luiz Dias , (que diziam foram os da
alhada ; ) e como fabiam ao que hia , o ti-
raram diíTo 5 affirmando-lhe que D. Jorge
lhes mandara fazer aquillo em vingança
da morte de certos Portuguczes , que em
Bachão mataram a ièu irm.ao D. Triílão de
Menezes , e dos juncos , e cravo que lhes
tomaram , como na terceira Década fe con-
ta, o que tudo foi fácil a ElRey de crer,
e deixou dalli por di"inte de ir á fortaleza ,
c eíleve de todo pêra fe conjurar cem Ca-
chil Daroez , e darem de fobrefalto na for-
taleza , e tomarem-na ; mas ordenou Deos
que foíTe D. Jorge avifado defte negocio ,
e de todas as mais coufas , em aue o cul-
pavam , de que logo mandou tirar huma
devaííii 5 cm. que fe acharam culpadas as pef-
foas que aííima nomeámos , e outros que
foram avifados , e fe acolheram pêra o ma-
to : pelo que D. Jorge fe vio com ElRey
de Bachão , e lhe contou as coufas como
paf-
Década TV. Liv. IV. Cap. IIL 25*9
paíTárara , com o que ficou delalivado , e
quieto , e tornou a correr em amizade com
elle. Nao ceíTáram por aqui a<5 maldades
dos da parte de D. Garcia , pelo que deter-
minou D. Jorge de o mandar pêra Talan-
game , aue era outro porto da Ilha onde
as na os lurgem : e diíto deo conta ao Al-
caide mor 5 e ao Baldaya , que ^ou por fe-
rem amigos de D. Garcia , ou por quere-
rem ver paz , e quietação, lhe aconíèlhá-
ram , que devia de diíllmular com aquillo
por nao renovar chagas paíTadas , o que cl-
ie fez, porque também defejava quietação.
Mas os máos homens que não defcançavam
em quanto nao viíTem nquelles dous Fidal-
gos baralhados , lançaram pela povoação
huma fama íiirda d'amigo em amigo , que
D.Jorge mandava matar D.Garcia. Depois
de fe ido divulgar, fuccedeo que hum ne-
gro , que D. Jorge levou da índia chama-
do Migue] Nunes , induzido parece por ef-
tes tecedores , em muito fegredo foi dizer
ao Feitor , que D. Jorge lhe mandava ma-
tar D. Garcia , e que por íhe não parecer
aquillo bem, fe queria ir perar os Caftelha-
íios* 'O Feitor parecendo-lhe aquillo muito
"grave , aconfelhou ao negro que avifaíTe Dom
Garcia , o que elle diílc que nao havia de fa-
zer , mas que também não havia de com-
metter hum tão grande crime. O Feitor Ihè
-noj R ii dit
a6o ÁSIA x)E Diogo de Couto '
difle que diffimuIaíTe , c laao fe paíTaíTe aos
jCaílelhanos : ;, por não íaberem Já aquellas
defavcnças-, ficando íurpenío naquella maté-
ria , lobre que deo mil voltas , cuidando íe
feria , verdade 5 ou não; e porque tudo po-
dia íer , determinou de o defcubrir a Dom
Garcia , debaixo de graves juramentos , pê-
ra andar recatado , porque queria ataliiar
tamanha defaventura , fe era verdade que
D. Jorge atentava : e aíTi lho dilTe, duvi-
dando porém poder conceber D. Jorge em
feu peito coufa tão fea ; mas: como as cou-
fas que tocam á vida de hum homem não
lie bem ficarem em dúvida., quiz-le fcgurar
D. Garcia. E dando conta, daquelle negocio
a Manoel Falcão , a Diogo da Rocha , e
íi Manoel Botelho 5 (de quem era mui gran-
de amigo, ,) e como parecia que o demó-
nio andava nas CQuías delia Ilha , entre os
noíTos íemeando zizanias yc díícordias , acon-
felháram-lhe eíles , que cumpria a f ja vida
matar D. Jorge , tirando Manoel P^aleão ,
que lhe diííe , que muito melhor era pren-
dello : e que tiraíTe devaíla de fuás culpas;,
G o mandafiTe á índia, c que ficaíTe cIJe por
Capitão até o Governador prover aquella
fortaleza. Ifto foou melhor a D. Garcia, e
dando conta de tudo a Cachil Daroezij e'á
ElRey de, Bachap , pedindo-lhes favor pe-
ia iffo, que lhe eljes promettêram ( ficando
Década IV. Liv. IV. Cap. III. 261
contentes , e alegres de verem antre aqucf-
jes dous Fidalgos tampinhas diícordias , por-
que por derradeiro eram Mouros , e folga-
vam com o nolTo damno. ) Succedeo nefte
tempo 5 em que eílas meadas fe ordíram , man-
dar D. Jorge a Cachil Daroez que foíTe de
Armada á Ilha de Maquuíe , com quem^ fe
embarcaram a mor parte dos criados , e ami-
gos de D. Jorge. O que vendo D. Garcia ,
pareceo-lhe que o tempo lhe dava todas as
occaíiôes pêra fua prctençao ; pelo que não
quiz defcuidar-fe nellas , traçando com os'
am.igos o modo de como prenderia D.Jor-
ge; e porque tinha m.ui grande inconvenien-
te no Alcaide mor , ordenou com hum Fran*-
cifco deCaílro, que oconvidaíTe o dia que'
elle tinha aprazado , como fez , e o levou
a huma quinta no lugar que cham^am Odo-
loco , huma légua da fortaleza , e na fua
envolta foram a m.ór parte dos moradores ,
e criados de D. Jorge , que ficava fó na
fortaleza. Sabendo I). Garcia que D. Jor«
ge acabara de jantar , mandou Manoel Fal-
cão que lefoííe pêra elle , e armaíTem jogo
de tavolas , (como muitas vezes faziam. )
Eeikndo D.Jorge embebido no jogo , bem-
defcuidado do que fe lhe ordenava , entra-
ram pela fortaleza Pêro Botelho , TrilMo
Vieira, e AíFoníb Gentil (que já eram per-
doados do cafo d'ElRey deBachão) levan-
do
202 ÁSIA DE Diogo de Coxjto
do ordem, do que haviam de fazer , hum
que tomaíTe ã porra da fortaleza , e outro
a.efcada , porque nao fubiíTe alguém , e ou-
tro que fecliafle as portas por fora a alguns
criados que eftavam em fuás cafas dormin-
do 5 porque nao pudeíTem acudir ao reboli-
ço. Feito iílo 3 entrou D. Garcia com outros
armados ; e logo os que tinham cuidado das
portas as fecharam , e fubindo aífima , che-
gando-fe a D. Jorge , liou-fe com, eile , di-
:^endo : Eftai prezo , e Manoel Falcão , e
os mais o ajudaram liando-fe com elle , e
os outros com alguns criados que alli efta-
vam. D.Jorge começou a bradar: Traição ^
traição. Humi pagem efcapulindo dalli teve
tal acordo que foi repicar o fino. D. Gar-
cia , e os outros , que eftavam ferrados em
D.Jorge, tiveram muito trabalho em o der-
ribar , porque era homem de grandes for-
ças , e de grande animo, e com a paixão
de fe ver affi tratado , bracejava , perneava ,
e mordia de maneira , que quafi o nao po-
diam ter, e fempre bradou, dizendo: Trai-
dores , matai-me , não me affronteis , mas em
fim como os outros eram muitos , depois
de grande efpaço deram com D. Jorge no
cháo , e lhe deitaram o próprio adobe , que
eile mandou lançar a D. Garcia , e toman-
do-o nos ares deram com elle em huma maf-
morr^ debaixo do cimo , onde o amarra-,
o b ram
i
Década IV. Liv. IV. Cap. IV. 263
ram a humas camarás de falcão pêra eílar
mais feguro.
CAPITULO IV.
Do que fizeram os amigos de D. Jorge fia-
bendo fua prizao : e das coufas que fuc^
cederam até o foliarem : e do que
aconteceu aos que J). Jorge ti-
nha mandado a Borneo,
O repique do ílno , que o moço fez
acudio o Feitor , que poufava fora , e
outros Portuguezes com armas , fem fabe-
rem o que aquillo era , e achando as por-
tas fechadas , cuidando fer traição , come-
çaram a lhe dar vaivéns, e outros trazerem
efcadas para fubirem por ellas , fazendo hu-
ma grande matinada. Aqui acudio D. Gar-
cia ao muro , vendo aquelle alvoroço , e
lhes diííe : Senhores , ajjocegai , que a forta-
leza eftd por ElB^ey de Portugal , e todos
fomos feus v a ff alio s , e por defejar a paz ,
efocego d.ella , fiz efte negocio , contando-Ihes
tudo o que paílava , com outras couías que
mais accrefcentou : Porijfo vos peço que ha-
jais por bem o que tenho feito , e defta for-
taleza eu tomo entreza , e delia darei con-
5 ta a ElRey , e ao feu Governador da In-
* dia. O Feitor por fe achar culpado naquei-
le nesocio em lhe defcubrir a velhaca ria
do
264 ÁSIA DE Diogo de Couto
do negro , com muita paixão interrompeo
a falia a D. Garcia , queixando-fe deile a
grandes brados , e deílemperando-fc bem
em, palavras. D. Garcia lhe pedio Te re-
çolhcíTe 5 e que correílb com feii officio ,
que da prizao de D. Jorge elle daria con-
ta a ElRey , com o que todos fe reco-
lheram 3 por não haver aili que fazer. Náo
tardou muito o Alcaide mor , e os mais
amigos de D. Jorge, que eram idos ao ban-
quete 3 e fabendo o que paliava , foi a fua
paixão tão grande que trataram de entrar
a fortaleza , c foltar D. Jorge , e aíTi fe ar-
maram , e foram demandar a fortaleza com
efcadas , machados , e outros petrechos pê-
ra quebrarem as portas , começando de íu-
bir ao muro. A ifto acudio D. Garcia com
os da fua valia , e entre todos fe começou
liuma grande briga. EiRey de Bachao com
muita gente acudio logo por parte de Dom
Garcia , com diíUmulaçao , moftrando que
vinha apaziguar, e trazia iiuma adarga em-
braçada , e huma lança nas mãos , requeren-
do ao Alcaide mòr , e aos mais , que fe re-
colheíTem , que aquelle negocio não fe ha-
via de fazer por armas : e que pois todos
eram. naturaes , e vaííallos d'ElRey de Por^
tugal , entendeflem que não era ferviço aven-
lurarem-fe tantos homens por hum íb , po-
idendo-fe pacificar tudo fem tanto damno,
CO-
Década IV. Liv. IV. Cap. IV. 265'
como fe ordenava , que o tempo curava tu-
do ; que nao fe caníhlTem , que aquillo íe
acabaria em bem de D. Jorge. Com ifto fe
recolheram todos muito trirtes. Eílas novas
correram logo por aquellas Ilhas, até chega-
rem a Cachil Daroez , que andava de Ar-
|| mada. Os amigos , e criados de D. Jorge ,
que com elle andavam , que eram quafi to-
dos os que tinha em as fabendo , logo lliQ
requereram que fe foiTe pêra Tcrnate pê-
ra acudirem aquellas coufas , o que Cachil
Daroez fez. O Alcaide mór em chegando
a Armada ajuntou todos os amigos da obri-
gação de D. Jorge, que com elle andavam,
que feriam quarenta , determinou de o ir
foltar, e quando o não pudeíTe fazer, paf-
farem-fe todos pcra os Caílelhanos , que fe
gloriavam deíle fucceíTo. Niílo os favorecia
hum irmão d'ElRev , chamado Cachil Via-
co 5 (hum dos fete baílardos que Bolufe te-
ve,) que era grande amigo de D.Jorge, e
inimigo de Daroez , por lhe entender fuás
velhacarias. A primeira coufa , que o Alcai-
de mór fez , foi impedir huma devaíla que
D. Garcia tirava de D. Jorge , em que tef-
temunhavam todos os da conjuração de Dom
Garcia , vindo com embargos a ella , pro-
teílando por parte de D. Jorge de lhe não
prejudicar. Os da parte de D. Garcia tam-
bém fe ajuntaram contra aquelle bando , de
que
a6ó ÁSIA DE Diogo de Couto
que era cabeça o Alcaide mor , tratando de
o matarem , porque os outros todos fem el-
le não fariam coula alguma. Aos da parte
contraria favorecia ElRey de Bachao , e fi-
cava o partido muito de ventagem , pelo
que o Alcaide mor tratou com Cachil Via-
co de fe irem todos os de feu bando pê-
ra a Serra , e de lá requererem a juftiça de
D.Jorge, e quando lha não quizeilem fa-
zer 5 paíTarem-fe aos Caítelhanos. O Viaco
fe foi com eiles pêra os agazalhar lá , pof-
to que niílb houve algumas diífcrenças com
os da terra, por não levarem licença de Ca-
chil Daroez , que era Regedor do Reyno.
Da Serra começaram a fazer feus requeri-
mentos , aíli a D. Garcia que foltaíTe Dom
Jorge , como a Pêro Botelho Capitão do
navio 3 em que D. Jorge foi de Malaca a
Maluco 5 pêra que fe ajunraíTe com eiles ,
pêra foltarem D.Jorge, ao que lhe não de-
firiam ; e vendo que feus proteílos não apro-
veitavam , mandaram hum Embaixador a
ElRey de Tidore , e a Fernão de la Tor-
re , que lhes deo conta de tudo o que era
paíTado : pedindo-lhe da parte do Alcaide
mor, e dos mais , mandaife requerer a Dom
Garcia foltaíTe logo D. Jorge , e que quan-
do o não quizeíle fazer lhes deíTem licença
pcra fe paíTarem pêra eiles. ElRey , e o Caf-
teihauo tomaram muito mal as coufas que
D.
Deoada IV. Liv. IV. Cap. IV. 2Ó7
D. Garcia tinha feito : e logo lhe manda-
ram fazer hum grande requerimento íobre
aquilio , proteítando de dar conta a ElRey
de Portugal de todas as perdas, e dainnos ,
que da prizao de D.Jorge fuccedelTem. Com
eíle requerimento ficou D. Garcia atalhado ,
porque bem vio que fe elles infiíliam em
favorecer D. Jorge , que lhe dariam traba-
lho , e lhe fariam guerra , e receou muito
aquella carga; e refpondeo ao requerimen-
to , dando-lhe muitas razoes Ibbre a prizao
de D.Jorge, e rogou a Cachil Daroez que
logo fe folTe com o Alcaide mor , e com
os outros á Serra , e diííimuiadamente fou-
befíe dos que lá eílavam fua determinação ,
efeviíTe que todavia iníiíliam a fe pafllirem
a Tidore , os feguraíTe. Cachil Daroez o
fez aíli ; vendo-fe com elles lhes eílranhoii
o que fizeram , porque D. Garcia era feu
amigo , e nao havia de bulir com elles ; ao
que lhes refpondêram que nao queriam cou-
fa alguma delle até não foítar D. Jorge , e
que foubeíTe certo fe o não fazia , que fe
haviam de paíTar aos Caílelhanos , e que
D. Garcia daria conta a Deos , e a ElRey
dos males que diíTo faccedeíTem. Edando
neílas praticas chegaram as corocoras de Ti-
dore , que Fernão de la Torre mandava em
favor do Alcaide mor com alguns Caílelha-
nos , e Tidores , e dâ praia lhes mandaram
di-
268 ÁSIA DE Diogo de Couto
dizer que efperavam por elles. Eíle recado
lhes deram prefente Cachil Daroez , com o
que fe alvoroçaram fazendo-le preíles pe*
ia fe irem embarcar. Viíla por Daroez lua
determinação , lhes pedio , que fe não aba-
laíTem até elle ir fallar com D. Garcia , e
que faria com clle que foItaíTe D. Jorge:
elles lhe diíTeram , que efperariam aqueiJe
dia, mas que fe logo o não foltava , fe ha-
viam de embarcar. Daroez fe foi mui apref-
fado a D. Garcia , a quem deo conta do ne-í i
gocio 5 accrefcentando , que fe paíTavam a Ti» w
dore lhe fíriam todos guerra , a que elle naò
poderia acudir , aíli pela pouca gente que
tinha , como pela falta de mantimentos, e
que fobre tudo fe não poderia ir daquclla
fortaleza , (porque fua determinação era em-
barcar-fe , e levar comíigo D. Jorge , ) e
defiftindo de fua teima tratou de fua foltu-^
ra 5 mettendo-fe em meio Cachil Daroez ,
que foi fallar com D.Jorge, com quem de-»
pois de galkr com elle alguns dias em ra-^-
zóes fobre o compor com D. Garcia , o veio
a render , aíTentando com elle , que o fol-
taíTe , e o tornaíTe á fua poífe, e que elle
lhe déíTe o navio de Pêro Botelho pêra fe
ir pêra a índia , e lhe deixaria levar os da
fua valia com fuás fazendas , e que fe rom-
pcífem todos os papeis que de parte a par-
te cftiveífem feitos , o que tudo fe havia de
Década IV. Liv. IV. Cap. IV. iGc)
jurar por ambos , e que depois de D. Gar-
cia ido pêra TaJangame com todos os feus ,
Simão de Vera Alcaide mór foliaria D.Jor-
ge. AíTentado ilto com D. Garcia , mandou
embarcar fua fazenda , eaíli rodos os mais.
Primeiro que fe íahiíTe da fortaleza , mandou
encravar a artilheria , porque lhe não atiraf-
íem com ella , e partio-fe pêra Talangame ,
deixando a fortaleza entregue a alguns ca-
fados. Logo íc vieram os da ferra , e foltá-
ramD. Jorge com grande prazer de todos,
mas nenhum feu , pelas aíFrontas que lhe ti-
nham feito, E logo mandou de novo fazer
autos de tudo pelo Ouvidor , e tirou hum
inílrumento de como no tempo de fua pri-
zão fe apoderaram os Caílelhanos da Ilha
de Maquufe , por não haver quem lha de-
fendeíTe , no que ElRey de Portugal rece-
bera notável perda , mandando fazer reque-
rimentos a Pêro Botelho , que fe folTe pêra
a fortaleza , porque tinha muita neceííidade
do feu navio por caufa da guerra dos Caf-
íelhanos 5 a que não podemos negar o pri-
mor com que correram com ellas couías ,
porque bem puderam elies atiçallas cie fei-
ção , que lhes ficara aquella fortaleza nas
mãos. Sobre, eftes requerimentos de D.Jor-
ge tornou a haver novas revoltas , e por
íim de tudo D. , Garcia íè embarcou no na-
vio de Pêro Botelho , e de tudo tirou Dom
b Jor-
270 ÁSIA DE Diogo de Couto
Jorge inílrumentos , e fez fuás reclamações ,
dizendo, que confentíra em tudo por remir
fua vexação , fazendo hum auto contra Dom
Garcia , em que o Jiavia por aievantado a
clie , e a todos os que com elle hiam : e tu-
do mandou a Malaca por humi Vicente da
Fonfeca , pêra que chegaíTè juntamente com
D. Garcia , e de fuás viagens adiante da-
remos razáo , e concluiremos agora as cou-
fas de Maluco com a jornada de Vafco
Lourenço, e dos outros, que D.Jorge def-
pedio pêra Borneo , como atrás temos con-
tado : que tomando fua derrota , em que
paliaram muitos trabalhos , e perigos , e
cançados , e enfadados da viagem , foram
tomar a Cidade de Borneo , onde acharam
hum junco , de que era Capitão hum Af- ;
fonfo Pires , que hia pêra Maluco , que era i
muito conhecido daquelle Rey , e como vio
os Portuguezes lhos levou , e elle lhes fez
gazalhado , dizendo-lhe elles , que não vi-^;
iiham a mais , que a viíitallo da parte do
Capitão de Maluco , que lhe mandava pe-i-
dir quizeíTe ter com elle paz , e amizade,
e que correíTe antre ambos trato , e com-r
mercio , do queElRey folgou muito, dan-^
do os agradecimentos a D. Jorge daqueUà
Vontade. Vafco Lourenço lhe aprefentou áà
peças que levava , e abrindo-íe o panno d'ê
íaz 3 em que eftava afigurado o cafameritó
d'
Década IV. Liv. IV. Cap. IV. 271
d'ElRey de Inglaterra com a tia do Empe-
rador , (eílava ElRey muito pelo natural
com íbas veíliduras Reaes , Sceptro , e Co-
roa , e outras íiguras á roda : ) vendo ElRey
coufa táo defacoílumada , perguntou o que
era aquillo , e dizendo-lho , fuípeitou fer
engano , e que os noílbs eram feiticeiros ,
e que aquillo eram figuras encantadas , que
lhe queriam metter em ília cafa , pêra de
noite o matarem 5 e lhe tomarem oReyno,
e muito torvado diíTe , que lhe tiraílem lo-
go aquillo &ãl\i , e que fe foíTem os noíTos
do íbii porto , que níio queria em fua terra
outro Rey íenao elle , e que fe alli eftiveí^
ícm mais , que os caftigaria. Os noíTos fe
viram aíTombrados. AfFonfo Pires , e alguns
Mouros quizerara tirar a ElRey aquella ima-
ginação 5 mas nao puderam . e Affonfo Pi-
res fe tornou pêra Malaca , indo com elle
Vafco Lourenço , e os mais fe tornaram na
corocora pêra Maluco , aonde chegaram a
falvamento. Eftc anno indo hum Gomes de
Siqueira por mandado de D. Jorge bufcar
mantimentos pelas Ilhas de Mindanao , def-
garrando com o tempo , defcubrio muitas
Ilhas juntas em nove pêra dez gráos do
Norte 5 que delle fe chamaram as Ilhas de
Gomes de Siqueira.
CA-
272 ÁSIA DE Diogo de Couto
CAPITULO V.
Das coufas em que o Governador provêo y
em quanto ejieve em Cochim : e das Ar^
madas , que defpachou pêra fora : e da
grande vitoria , que D. João De ca houve
de huma Armada de Calecut : e de como
Chrijlovão de Mendo ca foi entrar ita for-
taleza de Ormuz , e da morte do Gua-
zil Rax Ha me de.
D
Eixámos o Governador em Cochim,
depois de deíbedir as náos pêra o Rey-
Jio 5 com quem he ncceííario continuemos.
A primeira coufa que fez foi deípedirDom
João Deça pêra Capirao mor do Malavar
com hum.a galé , e dezefeis navios , com re-
gimento , que como fe acabaíTe o Verão j
íbíTc tomar poíTe da capitania de Cananor,
por cumprir feu tempo D. Simão de Aíe-
nezes. E por fer já chegado Francifco de
MeJlo com o recado do fucceíTo da Sunda ^
(que EIRcy encommendava tanto , que iium
dos principaes pontos do Regimento do Con-
de Almirante , quando veio por Vifo-Rey ,
era , que logo mandaiTe fazer aquella forta-
leza , ) fabendo o modo de como Francifco
de Sá ficava em Malaca com a mor parte
da gente morta , commetteo a Martim Af-
fonlò de Mello Juzarte , irmão de Garcia
Ju-
Década IV. Liv. IV. Cap. V. 273
Juzarre de Évora , Fidalgo de muitas par-
tes, pêra ir a Malaca ajunrar-ie com Fran-
cifco de Sá pêra irem fazer aquella fortale--
za. E o que diz Caílanheda , que o Gover-
nador mandava a Martim AíFonfo ir fazer
eíla jornada , e que elle que fe efcufára por
fer aquella empreza deFrancifco de Sá da-
da por ElRey , e mais eílando o outro lá
em caminho , havemo-lo porduvidofo , por-
que nem o Governador havia de tirar a hum
Fidalgo táo honrado a empreza , que tinha
nas mãos , pois não deixou de a acabar,
fcnão por falta de gente ; nem Martim Af-
fonío havia de acceitar tal jornada , porque
nem havia de ir debaixo da bandeira do outro ,
nem o outro havia de coníentir igual com elle.
Mas o que diílo podemos alcançar he, que
andando o Governador ordenando mandar
gente a Francifco de Sá , chegou hum Embai-
xador d'EIRey da Cota , vaíTallo d'ElRe7
de Portugal , a pedir ao Governador da par-
te d'ElRey lhe foccorreíTe , porque o Ma-
dune feu irmão lhe queria tomar o Reyno
com o favor , e ajuda do Çamorim , que
lhe tinha mandado huma groíTa Armada ,
com que o tinha em miuito aperto. O Go-
vernador pondo aquellas coufiis em confe-
Iho, aíTentou-fe que fe devia foccorreráquel-
le Rey com muita preíleza : ao que o Go-
vernador defpedio o mefmo Martim AíFon-
CoutQ, Tom, L P. L S ib
274 ÁSIA DE Diogo de Couto
ío de MeJIo com onze velas , em que en-
trava huma galé real , e huma galeota , e
os mais navios de remo , de cujos Capi-
tães náo achámos es nomes mais que a rres ,
1 home Pires 5 Duarte Mendes de Vafcon-
cellos , ejoáo Coelho: dando-lhe o Gover-
nador por regimento , que paílalTe a Ceiliío
foccorrer aquelle Rey , e que dalli íe foíTe
invernar á coíla de Choramandei , e em
Agoílo foííe a Malaca , e enrjcgaiTc a Ar-
mada a Francifco de Sá, Lniçandofama que
jiavia de ir no verão ás prezas á coíla de
Pegú , porque eílava a viagem da Sunda
tão defacredirada , que não havia íbldado ,
que quizeíle receber foláo pcra lá ; e defta
maneira , pela fama que ih lançou , fe embar-
caram quatrocentos homens. Partido Mar-
tim Affonfo , defpedio o Governador Pê-
ro de Faria pêra ir entrar na capitania de
Malaca , porque defejava o Governador de
tirar Jorge Cabral , que eílava provido por*
Fero Maícarenhas , e foi em hum galeão ,
e em fua companhia mandou o Governador
Simão de Soufa Galvão , filho de Duarte
Galvão 5 pêra ir entrar na fortaleza de Ma-
luco 5 e tirar D. Jorge de Menezes , que
era do bando de Pêro Maícarenhas , e lhe
deo huma galé em que foi com fetenta ho-
mens 5 e com dlc D. António de Caflro ,
que hia provido da capitania mór daquelle
Ar-
I
Década IV. Liv. IV. Cap. V. ij^
Archipelago , e da Alcaidaria mor da for-
taleza. E aíTi mandou o Governador outro
galeão entregue a Pêro de Faria com cen-
to e íincocnta homens , pêra lá o dar a Fran-
ciíco de Sá pêra a jornada da Sunda , pêra
que com a gente , e Armada , que Martim
AíFonfo havia de levar, foíTe fazer aquella
fortaleza. AíTi defpachou o Governador a
Chriftovao de Mendoça pêra ir entrar na
fortaleza de Ormuz , a quem deo hum ga-
leão , huma caravela , e dous bargantis , em
quê mandou muitos provimentos pêra aquel-
la fortaleza, muita fazenda d'ElRey pêra fe
lá vender, (porque nefte tempo nao trata-
vam os Governadores , nem tinham o di-
nheiro d'ElRey debaixo de fuás camas, an-
tes o meneavam em proveito da fazenda d''El-
Rey, e nao no feu.) Efta caravela , e bargan-
tins hiam deputados pêra guardarem aquel-
Je eftreito. Córn Chriftovao deMendoca foi
embarcado Rax Xarrafo Guazil de Ormuz ,
que Manoel de Macedo trouxe prezo , co-
mo atrás dilTemos , que hia livre de todas
as culpas que lhe puzeram ; e porque era
mortaiillimo inimigo de RaxHamede, que
ficou em feu lugar , chegando a Mafcate
ordenou , por recado que diante m.andou ,
com que o mataílem , no que dizem que
fòi culpado ElRey , pelo grande medo que
tinha do Xarrafo. Partidos todos eíles Ca-
S ii pi-
276 ÁSIA DE Diogo de Couto
pitaes 5 de cujas jornadas adiante daremos
jrazão , o Governador íe foi pêra Goa , fi-
cando D. João Deça na cofta do Malavar
continuando na guerra contra os Mouros ;
ç tendo avifo que em Mangalor eilava hu-
nia Armada do Carne rim , foi áquelle por-
to 5 e não a achando deo naquella Cidade ,
ç a queimou , e abrazou ; c voltando pêra
o Malavar , encontrou íeíTenta paraos , que
era a Armada de Calecut , de que era Ca-
pitão hum valente Mouro chamado China-
cotiale 5 que vinha de propofito bufcar a
noíTa Armada pêra pelejar com ella. D.João
tanto que os vio chegou os navios á galé ,
tantos de huma parte como da outra , e en-
cadeando-fe , e preparando-fe pêra pelejar
com os inimigos , que a foram commetter
com muito grande deteiminação. D. João
tinha a artilheria dos feus navios mui bem
carregada , e deixando chegar perto os ini-
inigos deram-Ihe aquella primeira furriada ,
de que lhe mettêram alguns no fundo , e
baraihando-fe todos , começou-fe huma af-
pera batalha , que foi da nolfa parte mui
bem pelejada , e muito arrifcada por ferem
os inimigos tão differentes em número de na-
vios 5 e gente , que havia dez para hum. Hum
Capitão de hum navio, aquém não achámos
o nome , ferrou com Chinacotiale , e abor-
dados ambos pelejaram com muito valor,
- . ma-
Década IV. Liv. IV. Cap. V. 277
matando-lhe muitos dos inimigos ; e quiz
Deos c]ue dcíTem no Mouro duas efpingar-
dadas , de que cahio , trazendo já duas cu-
tiladas mui grandes. Os do leu navio em
o vendo cahir loí^o fe lançaram ao mar.
D. João Deça fez neíla jornada o officio de
muito bom Capitão , e de valente foldado ,
pelejando, e governando com muito valor,
e prudência. O Capitão que rendeo China-
cotiale , logo lhe tirou a fua bandeira da
quadra , e a abateo. Correndo a nova pela
Armada que era morto , logo íe poz em
disbarato , e fugida , ficando todavia em
poder dos noíTos quarenta navios. Foram
mortos dos Mouros mil e quinhentos , e
quaíi outros tantos cativos. Chinacotinle ,
que ainda cílava vivo , foi levado a Dom
João Deça , que o eílimou muito , e fe re-
colheo a Cananor , com perda de vinte ho-
mens , e muitos feridos , que mandou curar
mui bem ; e em Chinacctiale mandou ter
grande refguardo , por fer Mouro muito
principal. É porque já era o verão gafia-
do , defarmou os navios , mandando a galé
pêra Cochim , em que foi D. Simão , que
lhe entregou a fortaleza. Com cfta perda
ficaram os Mouros mui quebrantados , por-
que além delia , lhe cuftáram outros vinte
paraos , que fe lhe tomaram por vezes , em
que lhe mataram também mais de mil ho-
mens.
2jS ÁSIA DE Diogo de Couto
mens. Chinacotiale farou de fuás fendas ,
e tratou de feu reígate , que fe veio a con-
cluir em dar doze Porruguczcs , dos que
ellavam cativos em poder do Çamorim , e
quinhentos cruzados em dinheiro , de que
logo fez entrega , e com iíío jurou em íua
lei , e deo fiadores Mouros ricos de Cana-
nor , de mais não fizer guerra aos Portu-
guezes j e com illo fe cerrou eíle Lr/crno.
CAPITULO VI.
Do que acontecen a António de Miranda
no ejlreito do mar Roxo , e das pre-
zas que fez,
Orque ha muito que deixámos António
de Miranda de Azevedo partido do mar
Roxo , fcrá razão que continuemos com elle.
Partido de Goa (como dilTemos) foi feguindo
fua derrota até o Cabo de Guarda fii , ten-
do huma grande tormenta no caminho , e
chegando a monte de Félix , repartio a Ar-
mada em três partes , mandando tomar as
paragens , que as náos coftumavam ir de-
mandar pêra bufcarem o eftreito. AJli fe
deixaram andar ao pairo , por não pode-
rem iurgir j por fer aquelle mar de muito
fundo. E andando em huma das paragens
Henrique de Macedo com outros dous na-
vios , hum dia pela manhã houve viíla de-
hum
Década IV. Liv. IV. Cap. VI. 279
hum galeão mui formoío , c]i:e vinha mui
proípero de gente , e arrilheria , e o navio
em íi iVÁÚto grande , e poíTiime. Os Mou-
ros que hiam confiados na força do navio , e
na nvaira gente, vendo os no lios , os foram
demandar. Henrique de Macedo deo hum
bolfo de véla j e p;eparou-fe , pondo- fe em
armas pêra o efperar , o galeão o foi in-
veílir. A efíe tempo eíbva fó Henrique de
Macedo, porque os outros navios tinham-
fe apartado. Invertidos os galeões deitaram
logo dentro feus arpeos começando-fe a tra-r
var huma muito cruel batalha , porque os
Mouros eram mais -de trezentos brancos , e a
mor parte delles Rumes. Os noffos trábcilha-
vam de entrar no galeão dos inimigos , e elles
o mefmo por fe baldearem no nofíb , fobreo
que fizeram grandes cavallerias , iançando-fe
de parte aparte muitas panellas de pólvora,
lanças de fogo , e outros arremeíTos mortaes.
O vento acalmou , ficando as velas aos pés
dos maílos j e como de quando em quando
dava humas lufadas , com que fe facudiam
as velas, acertou de dar huma lança de fogo
na do noíTo galeão , ateando-fe nella o fo-
go , e dando a lufada de vento , quiz Deos
que ao levantar da véla foífe com tanta for-
ja que facudilTe a lança de fogo no galeão
dos inimigos 5 (que ainda eílava ardendo,)
e dando na véla grande tomou fogo , que
ate-
28o ÁSIA DE Diogo de Couto
ateou tão bravamente, que foi forçado aos
noílbs j por fe náo queimarem , cortar a
balroa , e acudirem ao fogo , que andava
nas fuás velas , que apagaram com muito
trabalho. Na ndo dos Mouros foi o feu
crcfcendo de feição , que fc apoderou de to-
da ella , com tanta braveza , que por não
terem outro remédio fe lançaram ao mar.
Neíte tempo chegaram os dous navios da
companhia de Henrique de Macedo , que
ao tom das bombardadas acudiram , e ven-
do o negocio daquella maneira , lançando-fe
aos batéis foram a pefcaria dos Mouros ,
que andavam no mar , matando nelles á fua
vontade , e cativando alguns que lhes me-
lhor pareceram. Os mais galeões que an-
davam pelas outras paragens vieram-lhe ca-
hir nas mãos per vezes vinte velas , em que
entravam oito náos groíTas carregadas de
fazendas, e pofto que houve alguma defen-
são , foram logo rendidas. E como foi tem-
po de fe recolherem , foi-fe o Capitão mor
a Caixem efperar por toda a Armada por
lhe ter dado regimento que alli fe ajuntaf-
fem com elle , como fizeram todos. Eílan-
do alli o Capitão mor , teve avifo que ainda
ie efoerava por algumas náos do Achem.
Pelo que deixando alli parte da Armada,
e Ruy Pereira Quadrilheiro mór pêra ven-
der as fazendas das lúos , elle com alguns
na-
Década IV. Liv. IV. Cap. VI. 281
navios fefoi a monte deFelix a cfperar el-.
tas náos , que por tardarem muito íe tor-
nou pêra a Armada , e foi tomar Adem ,
onde acliou Ruy Pereira , que alii viera a
cliamado dos Regedores : que fabeiido eftar
a noíla Armada em Caixem , como corriam
comnoíco em amizade , maudáram-Ihe pe-
dir ioccorro cojitra os Turcos , que anda-
vam pela terra dentro deftruindo-lhe o Iley-
no , e ElRey náo eílava enrao na Cidade.
Chegando António de Miranda ao porto ,
mandou fazer aos Governadores feus ofrè^
recimentos , que eílava prelles pêra fíivore-
ccr, e ajudar ElRey contra feuo inimigos,
o que elJes eílimáram muiío, mandando-lhe
agradecimentos , e alguns refrefcos. E por-
que os Turcos fouberam logo fer alIi che-
gada a noffa Armada , recolhéram-fe , e deiC-
aprelTáram a terra. Eftes eram os da com-
panhia de Moílafá , Ibbrinho do Soltáo So-
leimáo y que ( como diíTemos ) fe alevantou
com as finco galés : que depois que foube
íèr a Armada recolliida pêra Sues , i'c foi
pêra Camarão , ou pêra huma enceada , que
eftá na boca do eftreito da banda de Ará-
bia, donde com o favor d'ElRey de Xaéi
pertcndeo Moílafá conquiílar aquelle Rey-
110. António de Miranda foube das galés ,
que eftavam na boca do eílreito , mas náo
•de ferem finco , e cuidou que era toda a
Ar-
282 ÁSIA DE DíoGo DE Couto
Armada; e nao tendo alli mais que fazer,
deo á vela, e foi tomar Zeyla com tenção
de deílruir aquella Cidade, que achou dcf-
pejada , e Ih^ niandou pôr o fogo , em que
toda fe confumio. E por fer tempo de íe
recolher a invernar , o fez , e foi tomar Maf-
cate , onde deixou os navios groíTos , e por
Capitão mor iVntonio da Silva , e elle com
os de remo fe foi invernar a Ormuz.
CAPITULO VIL
De como Simão de Soufa Gahão , que hta
-pêra Maluco , foi com tempo fortuito to-
mar a barra do /Ichem : e da grande ,
e efpantofa batalha que teve com
hmna Armada fua , em que foi
morto , e a galé tomada,
3 Artido Pêro de Faria de Cochim com
toda a mais companhia , de que atrás
dêmos razão , apartou-íe no golfo de Ni-
€ubar a ^:áè de Simão de Soula com hum
tempo que \\\q deo muito groíTo , com que
foi correndo com vélas pequenas , abatendo
toda artilheria , porque o comiam os ma-»
res , vendo-fe muitas vezes perdidos, e ala-
gados ; mas como Deos os tinha guardados
pêra outra morte m.ais gloriofa , largou o
tempo , eílando já fobre a barra do x\chem ,
onde elle os levou já tão canfados todos
do
Década IV. Liv. IV. Cap. Vlt. 28-
do trabalho paíTado , que nao podiam com-
figo. E íiibendo onde eílavam , trabalha-
ram por fe aíFaílarem daquella cofta , por
faberem que aquelles Mouros eram os mo-
res inimigos que na índia tinhamos ; mas
o tempo lho nao deixou fazer por fer o
vento travcílla. Os da terra tanto que vi-
ram a galé , mandou ElRey viíitar o Ca-
pitão delia com muito refrefco , e dizer-llie
que folgava muito de o ver naquelle feu
porto , porque defejava de tratar am.izades
com os Portuguezes : que lhe pedia quizef-
fe entrar pêra dentro , onde eílaria m.ais
feguro 5 e feria melhor provido , porque
defejava de fe ver com elle , e que le qui-
zcíle que o mandaria pelas íiias lancharas
metter pêra dentro. Simão de Soufa , que
era homem precatado , e fabia a malicia
daquella gente , mandou-ihe agradecer aquel-
la mercê , efcufando-fe de nao acceitar ièus
oírerecimentos , porque hia muito apreíTa-
do, e que logo havia de navegar. ElRey
como fua tenção era damnada, quando vio
que por cumprim.enros o nao podia levar,
mandou de noite embarcar mil homens em
vinte lancharas, e a hum feu Capitão, que
lhe trouxeíTe aquella galé pêra dentro , (o
que teve por fácil , porque já fabia o mo-
do de como eílava deílroçada , porque o
prefente , e recado foi mais pêra efpiar , que
por
284 ÁSIA DE Diogo de Couto
por cuidar que acceiuíTem os noíTos feus
cumprimentos.) Preftes as lancharas , m.andou
EJRey diante hum calaiuz , e etlas após el-
le , que chegou á gale , e diíTe a Simão de
Soufa que todavia lhe tornava ElRey a pe-
dir quizeíTc recolher-fe dentro , porque o
tempo não caíTava , e que pêra o revoca-
rem lhe m.andava aqueilas lancharas (o que
fez ElRey por le os noíTos defcuidarem.)
Simão de Soufa tornou-le a efcufar, e vin-
do-fe as lancharas chegando , vendo nellas
tanta gente , tomaram depreíTa armas. Os
Achens , tanto que foram perto , arremetté-
ram á galé com grandes gritas , e alaridos ,
e acercaram á roda. Hum Fidalgo que alli
hia , chamado Manoel de Soufi , foi tão
acordado , que remetteo a hum falcão , que
hia em cima já cevado , e o apontou nas
lancharas pondo-lhe fogo , e foi tão bem
encaminhado o pelouro , e liun;a roca de
pedras que levava , que dando em meio
delias matou muita gente , defaparelhando
algumas , as mais começaram de longe a
combater os noíTos , dando-lhes f3rmofas
falvas deefpingardaria; algumas delias, em
que vinha o leu Capitão mor, ferraram a
galé por pope , por onde fe lançou dentro
hum mui grande número delles , a pezar
de quantos golpes lhes deram os noíTos com
que lhes derrubaram niuitos. Dentro na ga-
lé
Década IV. Liv. IV. Cap. VII. iSj
lê fe ateou bravillimamente a briga com os
daquella parte; porque como todos os mais
eftavam repartidos por partes , nenhum lar-
gou a Ília , porque por todos eflavam bem
apertados dos inimigos. Simão de Soufa , que
com poucos ficou de fóra pêra foccorrer
aonde houveíTe neceílidade , acudio á po-
pa 5 e rem.etteo com os inimigos com ta-
manha fúria , que matando alguns os levou
de arrancada até o toldo , aonde apertou
com elles de feição , que os fez lançar ao
mar com grande damno feu. A batalha por
todas as partes eftava muito arrifcada , por-
que os inimigos eram muitos , e muito de-
terminadamente commettiam a entrada da
^alé com muitos , e amiudados tiros. Os
r.oííos vendo que a falvaçao eftava fó eri>
Deos 5 e no esforço de feus braços , fize-
ram todos tamanhas maravilhas , que paf-
máram os inimigos , de que já eram mor-
tos mais de trezentos. Os mais defconfiados
de entrarem, a galé , e admirados da valen-
tia daquelies homens , que paredam leões
famintos , affaíláram-le pêra fóra , e reco-
Ihêram-ie deftroçados , e desbaratados , fi-
cando dos noíTos dous mortos , e mais de
yinte e finco feridos , fendo por todos os
gue hiam na galé fetenta. Simão de Soufa
mandou curar os feridos mui depreíTa , por-
que bem cntendeo que havia de ter maior
tra-
aSó ÁSIA DE Diogo de Couto
trabalho , porque o tempo pêra nenhuma
parte o deixava caminhar , e lobre a amar-
ra eltava foíFrendo íua importunação , re-
ceofo também de dar á coíla. As lancharas
entradas dentro , indo o Capiíao a ElRcy ,
lhe perguntou pela galé, e clle lhe contou o
que vio. ElRey apaixonado cavalgou em
^lum elefante , e mandou chamar o íeu Ca-
pitão miór 5 e lhe jurou por Mafamcde que
fe lhe nao tTcVzia aquclla galé, que o havia
de efpedacar com aquelle elefante , man^*
dando lançar mais lancharas ao m.ar , com
que prefez fincoenta , em que embarcou
dous mil homens , e todos foram deman-
dar a galé. O Capitão da Armada defpediô
diante huma lanchara com hurna bandeira
de paz pêra fegurar os noíTos , que chegan-
do a borda da galé , fallou hum homem
em Portuguez , e perguntou pelo Capitão,
dizendo que ElPvey eílava mui agaftado ,
fendo tão amigo de Portuguezes , e defe-
jando de lhes fazer honras , e gazalhados ,
não CS quererem acceitar delle : que lhe fa-
zia a faber , ^que aquelle Capitão que com
elle pelejou eftava prezo , porque o agra-
vou , e offendeo em lugar de o fervir , co-
mo lhe elle tinha mandado; epera que viJP-
fe o caftigo que por ilTo lhe queria darj
lhe pedia entraíTe pêra dentro, pois não ha-
via tempo pêra fazer fua viagem. Alguns
fo-
Década IV. Liv. IV. Cap. VII. 287
foram de pr.recer , que deviam acceitar aqiiel-
Jes cumprimentos , que pola ventura feriam
verdadeiros , porque clles já não eílavam
pêra mais, e que não podia haver tamanha
maldade em lium homem , que tinha nome
d'ElRey , que trataífe mal os homens , que
o bufcavam de paz , e confiados em fua
pahivra entravam em feu porto. Simão de
Soufa liies diílb que fe não fiaílem daquil-
lo que diziam , porque aquelle bárbaro era
o mais cruel , falfo , e fementido Mouro ^
que havia em toda a índia , e que entendef-
fem que fe os acolhia , os havia de mar-
tirizar : que muito miclhor lhes era , pois
haviam de morrer , fer antes com as arm.as
nas mãos , vincando bem fuás mortes : e
que quando não pudeíTem falvar as vidas ,
o fariam as almas , que Deos por fua mi-
fericordia lhes receberia , pois acabavam pe-
lejando por fua Santa Fé. Animados todos
com eílas palavras , diíTeram que oieguiriam
em tudo , e logo fe puzeram em armas. O
Capitão mor da Armada fez aquella diligen^
cia , tanto por recear acontecer-lhe outro
desbarate , qual o paíTado , quanto por lhe
encommendar ElRcy muito que lhe levaííe
'todos aqueíles Portuguezes vivos , do que
elle hia defconíiado 5 porque bem fabia que
tiles não fe entregavam a ninguém fenãò
defpedaçados. E vendo que os não podia
le-
i22 ÁSIA DE Diogo de Couto
levar por cumprimentos , inveílio a galé por
todas as partes com tamanho eílrondo , que
puderam eípantar muitos homens , c muitos
navios, dando muitas , e mui apreíTadas fal-
vns de artiiheria , e de arcabuzaria • mas os
noíTos como eftavam determinados a mor-
rerem , poílos em feus lugares rebateram os
inimigos, que queriam entrar a galé, dan-
do com huma Ibmma delies ao mar bem es-
candalizados ; mas como as lancharas eram
muitas , e os inimigos tantos , que no lu-
gar donde cahiam dez le punham trinta ,
a pezar dos golpes dos noíTos entraram huns
poucos na galé , que logo foram ataííalha-
dos , porque nao achavam homens , fenao
leões 5 que remettiam com ellcs aos dentes
pêra os comerem , fazendo aquelles pou-
cos , e canfados homens tamanhas cavalle-
rias 5 que de cada hum. delies fe puderam
encher muitos capítulos , quanto mais de
tantos , que nós abbreviatnos nelle pequeno ,
por nos faltarem palavras pêra os engran-
decer. como merecem. Os que eílavam fe-
ridos do dia dantes , como homens eícan-
dalizados , não davam golpes , que nao cor-
taíTem pernas , braços , cabeças pelo meio ,
não lhes dando couía alguma de fe lhes re-
nov^arem as feridas com outras de novo,
que o furor lhes não deixava fentir. E pof-
to que (como diflemos) todos fizeram tan-
to.
Década IV. Liv. IV. Cap. VIL 289
to , Simão de Soula , e Manoel de Soufa
andavam raes , e ião encarniçados dos inimi-
gos , fazendo tão eipantoías façanhas , que
deixavam muitos Mouros de pelejar pelos
olhar , porque não podiam crer , com o ve-
rem que cm braços humanos havia tantas
forças 5 nem em homens mortaes tão pouco
receio da morte ; porque onde elles viam
mor perigo , alii fe arremeçavam , cortan-
do , ferindo , e deftruindo tudo a que che-
gavam. Durou iílo tempo de quaíi três ho-
ras , em que os nolTos aíli os efcandalizá-
ram, , que fe começaram a alargar da galé,
ficando todos taes , que fe não podiam me-
near 5 fendo já alguns morros , e todos os
mais feridos em muitas partes. Indo-fe já
os Mouros aíFaílando , pafmados do que vi-
ram , permittio Deos que fe defaferrolhaíTe
hum. Mouro , que andava a banco na galé,
que fe lançou ao mar , e foi ferrar huma lan-
chara , indo já aíFaílada , e diíTe aos Achens
que porque deixavam aquella galé , que os
mais dos Portuguezes eram mortos , e to-
dos os outros tão feridos, que não efcapa-
riam. ElRey , que eílava da terra vendo a
briga 5 não fazia fenao cevar os feus com
mais gente j e vendo aíFaftar as lancharas ,
lhes mandou outras de refrefco , com o que
tornaram a voltar , e inveftíram a galé , não
íichando os noilos no eftado em que o Mou-
Couto, Tom. l P, L T ro
1^0 ÁSIA DE Diogo de Couto
ro lhes pintou , fenao tao vivos , e cfpertos ,
como da primeira vez ; e poftos em defen-
são da galé , pelejando como defeípcrados , |i|
faziam novas façanhas : mas como o parti-
do era tão defígual , e muitos dos inimigos
que vinham de rcfrefco , apertaram tanto
que entraram ágalé, não fendo mais os que
pudeíTem pelejar que Simão deSoufa, Ma-
noel de Soufa, D. António de Caílro , An-
tónio Caldeira , e Jorge de Abreu , todos
homens Fidalgos (que tinham feito obras
memoráveis , e dignas de fe recitarem por
efpanto) que todos tinham mortaliílimas fe-
ridas. E como eftes que entraram de tropel
eram mais de trezentos , foram levando ef-
tes Fidalgos até o pé domado, fazendo to-
dos coulas façanhofas. Aqui pregaram as
mãos com huma frecha a D, António de
Caílro na haftia de huma chuffa com que
pelejava , que tinha eníbpada nas barrigas
de mais de quarenta daquella feita : e com
as mãos encravadas pelejou hum pouco co-
mo hum leão , mas com as forças das pan-
cadas fe lhe foi tanto fangue , que cahío mor-
to. Os outros ficaram tendo o Ímpeto aos
inimigos , matando nelles como fe foram
mofquitos : e tão grande medo lhes tinham
todos , que não oufando chegar a elles , de
longe os combatiam com lanças , e dardos
darremeíTo , de que hum deo pelos peitos a
Si-
Década IV. Liv. IV. Cap. VIL 291
Siir.áo de Soufa , que rompendo-llie as ar-
mns o paíToii de parte a parte , cahindo logo
morto. Aqui acabaram de morrer em fcrvi-
ço de Deos , e d^ElRey quatro filhos de
Duarte Galvão , Jorge Galvão , Manoel Gal-
vão , Riiy Galvão, e eíle esforçado Cavai-
leiro Simão de Soufa Galvão , que veio ter
o fim tao peculiar a clle. Os trcs que fica-
ram eílavam já em eílado , que de uao po-
derem menear as armas fe renderam , fican-
do os inimigos fenliores da galé , em que
acharam ainda vinte e finco dos nofiTos vi-
vos , eílirados , e cheios todos de muitas fe-
ridas. Eíla foi a maior , e m.ais bem peleja-
da briga no mar (com tão grande defigual-
dade ) que lemos , nem ouvimos , e certo
que fe pudera efte fucceíTo contar entre os'
cafos famofos do Mundo , e muito mais pê-
ra louvar 5 e engrandecer , que o daquelles
Keroes que acompanharam a Jasão, que as
fabulas tanto louvaram , e alevantáram. Os
Mouros magoados de verem alli tantos pa-
rentes, e amigos feus mornos das mãos dos
nolTos 5 quizeram vingar-fe nos que ainda
eftavam palpitando j mas acudio a ifib o íèu
> Capitão, que lhos tirou das mãos, porque
defejou muito de os levar aíli vivos. ElRey
lefteve vendo como entrava a galé, defem-
barcando o Capitão , mandando levar os
nofiTos ás cofias dos feus (porque fe não po-
T ii diam
1<)^ ÁSIA DE Diogo de Couto
diam bolir) lhos aprcfcntoií. ElRey pordif-
íiinular íua maldade moílrou pezar-Jhe de
os ver tao maltratados, e lentio a morte de
Simão de Soufa : e mandando recolher os
feridos , pêra que os curaílem , lhes diíTe ,
cjiie como faraíTcm , elcgelTem entre fi hum ,
pêra que foíTe a Malaca dizer ao Capitão ,
que mandaíTe bufcar a galé , e aos mais com-
panheiros , porque delejava muito de ter
paz , e amizade com os Portuguezes , man-
dando ter dellcs muito bom cuidado , por-
que queria ver fe com aqueiles podia cajar
outros.
CAPITULO VIII.
De como Gonçalo Gomes de Azevedo , que
hia pêra Maluco , chegou a Banda , e do
. que alli pafjòu com D. Garcia Henriques :
e de como chegou a Tidore Álvaro de Sa-
. yavedra Ceron , que partio da nova Hef-
panha , e do que aconteceo a Z). Jorge
com elle,
PArtido de Malaca Gonçalo Gomes de
Azevedo com o foccorro pêra Maluco ,
como atrás contámos , foi com bom tempo
tomar a Ilha de Banda , onde achou ainda
D. Garcia Henriques, que eftava com tran-
queira , e em terra , que o recebeo bem , e
íe agazalhou em outra tranqueira , que man-
dou
Década IV. Liv. IV. Cap. VIII. 293
dou fazer, pêra onde fe paíTou Manoel Fal-
cão , porque defejava de fe tornar pêra Ma-
luco , e íoldar-fe com D. Jorge , dando-lhe
conta de tudo o que era paíTado antre aquel-
les dous Fidalgos , de que elle ficou mui ef-
candalizado de D. Garcia. Poucos dias de-
pois chegou Vicente da Foníeca , que liia
pêra Malaca com as cartas de D. Jorge ,
com os autos , e papeis contra D. Garcia ,
e foi agazalhar-fe com Gonçalo Gomes , a
que também contou ao que hia pêra Mala-
ca , requerendo-ihe que prendeiíe D. Gar-
cia 5 do que íe elle efcufou ; mas difle que
lhe tombaria o navio por fer da obrigação
da fortaleza. Ifto fe com.eçou logo a rom-
per , o que D. Garcia não pode crer. Tan-
to que foi tempo de ir pêra Maluco , foi-
fe Gonçalo Gomes defpedir de D. Garcia,
que foi com elle até a praia , e embarcado
nos batéis chegou ás náos. , e prepaíTando
pela de D. Garcia , lhe mctteo dentro Ruy
Figueira com alguns Portuguezes , que fez
logo levar a amarra , e deo á vela junta-
mente com Gonçalo Gomes. D. Garcia , que
andava fobre avifo , e tinha já enfaiado o
meftre do que havia de fazer , e eílava pref-
tes com alguns batéis, em que logo fe em-
barcou , foi demandar a náo , que ficava de-
trás por artificio do mcílre , que deo com
iclla por davante. Vendo Ruy Figueira vir
os
294 ÁSIA DE Diogo de Couto
os batéis 5 entcndeo o negocio , e capeou a
■Gonçalo Gomes que hia diante , c]ue vol-
tou 5 e vendo ir os batéis , lhes atirou com
hum camelo , que foi dar em hum delles ,
em que hia Manoel Lobo , e lhe matou al-
guns remeiros. Ruy Figueira acudio ás ve-
las 5 e as fez preparar , e tornou a náo a feu
caminho , com o que D. Garcia fe tornou
muito triík , e magoado , havendo aquillo
além de perda , por affronta mui grande. As
nács,./oram. fua derrota , em que os deixa-
remos 5 por continuar com D. Jorge. De-
pois de D. Garcia embarcado , ficou conti-
nuando na puerra contra os Caftelhanos , a
quem os Reys de Tidore, e Geilolo favo*-
reciam , e ajudavam , lançando fuás Arma-
das no mar, com que defendiam os manti»
mentos 5 que hiam pcra a noíTa fortaleza ,
com o que a puzeram em mui^o grande aper-
to. E pêra pòr os noíTos em mor cuidado ,
chegou a l'idore hum navio de Cafteiha'
nos , de que era Capitão Álvaro de Saya-
vedra , que tinha partido da Nova Hefpa-
nha por mandado de Fernão Cortês , cujo
parente era , porque íc lhe oíFereceo a def-
cubrirdalli Maluco. Partio dia de Todos os ^
Santos do anno de mil quinhentos e vinte
fete com três navios , de que defapparecê^
ram dous , fem fe faber onde , nem como.
Eílç chegou a falvamento pêra dar tantos
tra-
Década IV. Liv. IV. Cap. VIII. 295'
trabalhos áquella fortaleza , e foi o primei-
ro navio , que da nova Hefpanha navegou
pêra Maluco , e poz no caminho três mezes
pelas grandes correntes d'aguas , que achou
per anrre aquellas Ilhas em feu favor. Foi
eíle foccorro muito feftejado dos feus , e ain-
da mais o eílimáram , por faberem a nave-
gação daquellas Ilhas pêra a nova Hefpa-
nha , porque aíli podiam brevemente ferfoc-
coriidos : e aííi ficaram tão foberbos , que
houveram que tinham pouco que fazer em.
tomarem a fortaleza. E logo os Rcys de
Geilolo, e Tidore negociaram fuás Arma-
das pêra irem tomar a Ilha deMoutel, que
era d'ElRey deTernate, do que foram avi-
fados os feus fangajes , e moradores , e man-
daram pedir foccorro a Cachil Daroez. Dom
Jorge mandou em fua companhia Fernão
Baldaya por Capitão da galeora nova , que
já eftava acabada , e lhe deo trinta e íinco
Portuguezes , e regimento a Daroez que an-
dafle no mar da Ilha de Moutei pêra a de
Maquiem , e que fízeíTem aos inimigos to-
da a guerra oue pudeíTera. Dc9i3. Armada
foram os Caíl, 'lhanos avifados : e Fernão
de la Torre defpedio logo Álvaro de Saya-
vedra na galeota nova que também fez ,
com quarenta Caílelhanos , e no caminho
de Moutei fe encontrou com Fernão Bal-
xiaya, que hia apartado de Cachil Daroez^
ê COr
i^G ÁSIA DE Diogo de Couto
c como ambos eram esfor^^ados Cavaliciros ,
logo fe commettêram deíparando primeiro
fua furriada de bombardadas. E envcftiiido-
fe 5 começaram huma mui travada batalJia ,
e nos primeiros encontros mataram Fernão
Baldaya com oito Portuguezes ; os mais
(que era gente muito coitada) logo íe ren-
deram aos Caílelhanos , tanto que lê viram
fem Capitão. Sayavedra fe recoiheo com a
galeota , levando íinco mortos , e rodos os
mais feridos 5 eeniTidore foi recebido com
muita fefia , e aííirmavam os homens de
Maluco que houveram os Cafrellianos eíla
vitoria por culpa do noflb Condeílabre ,
porque não metteo pelouro no camelo da
coxia , ou por efquecim.ento , ou peitado.
Eiie ruim fucceíío fentio muito D. Jorge ,
porque lhe nao ficavam na fortaleza mais
de fincoenta Portuguezes. Cachil Daroez ha-
vendo-fe por tão aitrontado daquelle cafo
ílicceder eftando çWq aufente , de anojado
deixou a Armada em Moutel , e fe foi a
Ternate. Foi iílo aos quatro de Maio j e
aos oito , quando os noíTos citavam mais <ò.t{'-
confiados , chegou Vicente da Fonfeca , (que
fe tornou com o foccorro que achou em
Banda , ) e deo novas ao Capitão da vinda
de Gonçalo Gomes de Azevedo , c do que
paíTára com D. Garcia. Fernão de la Tor-
re, tanto que foube do foccorro, determi-
nou
Década IV. Liv. IV. Cap. VIIL 297
nou de o mandar efperar ao caminho , e ar-
mou pêra iílb as duas galeotas , e liuni bar-
gantim , em que mandou embarcar Sayave-
dra com cento e vinte Jiomens. Gonçalo Go-
mes vindo íua derrota chegou á Ilha deBa-
chao 5 e vio-fc com aquelle Rey , de quem
foube o eílado em que a noíla fortaleza ef-
tava ; e deixando alli Manoel Falcão , até
que o faneaíTe com D. Jorge , foi feguindo
fua jornada. E indo na volta de Tcrnate,
houve viíla da Armada Caíleihana , que lo-
go conheceo , e mandou embandeirar o íeii
navio 5 por lhe moílrar o alvoroço, que ti-
nha de ie encontrar com elles , porque vit
fem o pouco que os receava ; e pondo- fe
cm armas com ambos os navios juntos , to-
cando feus inílrumentos de guerra , os foi de-
mandar. Sayavedra vendo tanta confiança ,
foi paíTando de largo , tocando as trombe-
tas , como que o íàlvava. Gonçalo Gomes
iem fazer cafo mais delles foi furgir em Ter-
nate no porto deTalangame, e dalli fepaf-
jfou á fortaleza , onde foi mui bem recebi-
do de D. Jorge , que logo lhe entregou a
capitania mor do mar , e a Alcaidaria mor
da fortaleza ; e fabendo de D. Jorge o da-
mno que tinha recebido dos Caítelhanos ,
.pareceo-lhe bem tratarem de pazes , e aíli o
^coníelhou a D. Jorge , pelo que enviou
iiura Cavalleiro honrado a Fernão de la Tor-
re,
apS ÁSIA DE Diogo de Couto
re , mandrindo-lhe dizer , que fempre defe-
jára de ter com elle paz , e amizade , aííl
por ferem Chriílãos , como por vaíTalIos do
Emperador , tão liado em parentefco com
ElRey de Portugal , e que já agora podia
cuidar que não commettia aquellas amiza-
des por neceílidades que tiveíTe , pois cita-
va com foccorro freíco ; mas porque llie
parecia ferviço de Deos , e d^^ElRey efta-
rem amjgos : que íe quizelTe acceitar as pa-
zes com aquelles apontamentos , que lha
mandava , eílava preftes pêra as fazer, fe-
não que de todas as perdas , males , e da-
mnos 5 que da guerra fuccedeíTem , daria
conta ao Emperador. Fernão de Ja Torre
rccebeo bem a Jorge Goterres , (que aíli fe
chamava aquelle Cavalleiro , ) e vio os apon-
tamentos 5 que eram os feguintes. » Que Dom
)> Jorge era contente de fazer pazes com os
)) Reys de Tidore , e Geilolo por amor de
)) Fernão delal^orre, eque daria hum Caí-
O) telhano , que Ja cftava cativo do tempo de
)) D. Garcia 5 e que Fernão de la Torre ih^
)> havia de dar todos osPortuguezes , quefo-
» ram cativos na gaiccta , e tornar-lhe a mc-
» lade da Ilha de Maquiem , e que não aju-
)) daria aquelles Reys contra elle: e que os
)) Pcnuguezes , eCaílelhínos , que fe paíTaí^
)> Jèm de huma parte pêra outra , não fendo
» por cafo crime 5 fe entregaílem, e o mef-
))mo
Década IV. Liv. IV. Cap. VIIÍ. 299
)) mo os efcravos : e que Cachil Darocz , e
)) ElRey de Bachao nao íariam mais guerra
» aos Reys deTidore. » Fernão de Ia Torre
confentio em tudo , fomente na reílituiçao
:da metade da Ilha de Maquiem , porque
dizia que era já do Emperador , e fem lua
licença o nao podia fazer. Jorge Goterrcs
refpondeo , que pois aíli era , que fícaífe co-
mo dantes ; e defpedindo-fe delle fe foi pê-
ra Ternate , ficando a guerra aberta. Ven-
do D. Jorge que Fernão de la Torre eíla-
va alterado , determinou de lhe fazer toda
.a que pudeíFe , em que fobre eíleve , por-
que entendeo em Gonçalo Gomes de Aze-
vedo Capitão mor do mar , que mais fol-
garia de fazer cravo , que guerra : e que
pelos poderes que levava , o não podia obri-
gar a coufa alguma. E por fe não vir de-
pois a achar cm faltas , defpedio Simão de
Vera em hum navio com as cartas , e pa-
peis contra D. Garcia , que eram os que
Vicente da Fonfeca tornou a trazer , pedin-
do aííi ao Capitão de Malaca , como ao
Governador da índia , que o foccorreíTe com
gente , navios , roupas , e munições , dan-
do-lhes conta do eítado em que aquella for^
taleza eftava. Simão de Vera fe fez á véla ,
€ foi tomar a Ilha de Mindanao pêra to-
mar mantimentos, ealli foi morto pelos da
terra ;, c quantos hiam com ellc. Fernão de
la
300 ÁSIA DE Diogo de Couto
la Torre foi logo aviíado do navio , que
D. Jorge mandava a pedir foccorro , pelo
que também defpedio Sayavedra na fua na-
veta pêra a nova Hefpanlia , efcrevendo
aquelle Vifo-Rey o eftado em que ficava ,
pedindo-lhe foccorro. E pêra teílemunhas
das vitorias , que tinha havido dos noíTos ,
mandou embarcar com elle alguns dos Por-
tuguezes , que foram cativos na galeota , em
que entrava hum Fernão Moreira , patrão
da ribeira , hum Comitre , e hum Efcrivao
do público judicial da fortaleza , e ouiros
dous , que por fuás vontades quizeram ir na-
quella jornada , Iium chamado Simão de
Brito Patalim , e outro Bernardo Cordeiro.
Sayavedra fe fez á veia a quatorze de Ju-
nho 5 e fazendo fua derrota foi tomar a
Ilha Hamei , cento e fetenta léguas de Ti-
dore , onde furgio pêra fizer agua , e le-
nha. Os noiTos que hiam contra fuás von-
tades, determinaram de lhe queimar o na-
vio , porque nao pudeíTe ir á nova Hefpa-
nha : c nao podendo achar com'modo pêra
iíTo , furtaram huma noite o batel , c com
quatro efcravos , que tomaram da náo , fe
foram caminhando pêra Ternate , de Ilha
em Ilha , foffirendo tantas fomes , trabalhos ,
e infortúnios , que de can fados fe deixaram
fícar três delles em huma daquellas Ilhas :
os outros três foram feguindo fua derrota
até
Década IV. Liv. IV. Ca?. VIII. 301
até chegarem á IJha Grandij do fenhorio de
Tidore , onde foram conhecidos , prezos ,
e mandados a Fernão de Ia Torre , que fa-
bendo quem eram , os mandou metter a
tormento , e confeílando o que paíTava ,
mandou degollar Simão de Brito Patalim,
e enforcar Fernão Moreira , o outro ficou
cativo. Deílas coufas teve avifo D. Jorge,
que fentio mxuito , e quiz fazer guerra aos
Caílelhanos : mas Gonçalo Gomes de Aze-
vedo fe efcufou diíTo , porque não tratou
mais que de cravo , e largou os cargos ,
pêra que os proveíTe em quem quizeííe , fi-
cando como mercador particular , forrando-
fe de todas as obrigações. D. Jorge deo os
cargos a hum Leonel de Lima , que fez
também tanto como o outro : pelo que fi-
cou pairando até lhe vir o foccorro que
mandava pedir. Álvaro de Sayavedra ven-
do-fe fem batel , efteve a rifco de fe tor-
nar , mas com.metteo a jornada até tomar
humas Ilhas , que por terem muitas arvo-
res , e ferem frelcas , lhe poz nome Bel-jar-
dim , que eílam em altura de dez gráos do
Norte , quafi duzentas e fíncoenta léguas
donde tinha partido. Os naturaes daqui são
homens alvos , de olhos pequenos , poucas
barbas ; parecem-fe muito com os Chins,
cpreiume-fc que fe perderia alli algum jun-
co feu , e que a gente ficaria na terra, de
quQ
302 ÁSIA DE Diogo de Couto
que fe veio a povoar muito , ( porque to-
dos trazem comfigo íuas mulheres per on-
de vam ; ) e como ficaram naquellas Ilhas
lem converfajão , fizeram-fe os que delles
procederam tao bárbaros , que pareciam fal-
vagens. Não havia naqucJias Ilhas criação
de aves, nem de gados; veíliam huns pan-
nos que faziam de hervas : não tinham fer-
ro , porque em feu lugar ufavam de cafcas
de amexas , e de oftras , com que cortavam
as coufas que queriam : pefcavam em hu-
mas aimadias de madeira de pinho , de que
havia muitas nas Ilhas: o feu pão eram co-
cos feccos ao Sol , a que na índia commum-,
mente chamão copra. Comião hervas piza-
das 5 e não ufavam fogo , porque nunca o
viram , fenão depois que eílcs da compa-
Tjhia de Sayavedra lho eníináram a fazer,
e comeram até então o peixe crú. Sayave-
dra deixou-fe ficar alli alguns dias , em que
lhe entraram os Ponentes , com que foi for-
çado arribar a Maluco , como adiante dire-
mos. Certo que são muito pêra confiderar
eílas couíàs 5^ parece que foi permiísão Di-
vina o mão fim que tiveram eílcs dous ho-
mens que hiam pedir foccorro , o Sayave-
dra , e o Simão de Vera , hum por parte
dos Portuguezes , c outro da dos Caftelha-
ros : no que moílrou Deos clariííimamente
quão defervido era daquellas guerras , que
huns
Década IV. Liv. IV. Cap. VIII. 303
huns Chriílâos faziam a outros , entre o mais
apartado paganifrao do Oriente , e onde a
lei de Mafamede fe começava a atear , e
que depois accendeo tamanhas labaredas por
aquellas partes : mas eíles avifos de Deos
não deixa entender a cubica humana , que
fempre mede as coufas mais por íeu appe-
tite , que por razão. Deixando eíla matéria ,
tornemos a D. Garcia Henriques , que efta-
va em Banda. Tanto que Gonçalo Gomes
de Azevedo fe partio , elle fc embarcou em
hum junco , e foi fua derrota pêra Malaca :
no caminho tomou huma embarcação de
Mouros Jaós com alguma fazenda , e che-
gando a Malaca , antes de furgir , mandou
pedir feguro a Pêro de Faria pêra elle , e
pêra todos os que hiam com elle , pelo ne-
gocio de D. Jorge que lhe elle mandou , e
defembarcando em terra , lhes tomou a fa-
zenda a todos , dizendo que elle lhes não
fegurãra mais que as peflbas , mas depois
lha tornou com fiança de fe aprefentar em
Goa , o que lhe concedeo por acudir a hu-
ma briga de Amoucos , que em Malaca
houve , que elle apazigou com. morte de
oito.
CA-
304 ASTA DE Diogo de Couto
CAPITULO IX.
Do que aconteceo a António de Miranda y
que invernou em Ormuz : e de como Dio^
go de Mefquita foi cativo da Armada
de ( 'ambaya , efoi mettido em huma bom-
barda , pêra que fe fize/Jè Mouro , e da
grande corift anciã que teve : e de corno
ejla Armada pelejou com Henrique de
Macedo , e da brava batalha que tive^
ram.
REcoIhido 5 como atrás diíTemos , An-
tónio de Miranda de Azevedo pêra
Ormuz com as prezas que tinira tomadas ,
mandou vender toda a fazenda das náos
que tomou , cm que fe f zeram feíTenta mil
cruzados : pagou aos foldados , e deo-Iiies
mezas. Como entrou Agofto foi-fe a Maf-
cate , e negociou a Armada toda , com que
íe fez á véla pêra ir efperar as náos de
Meca {c{VLQ haviam de ir pêra Cambaya)
na paragem da ponta de Dio , onde todas
vam demandar. E fazendo fua jornada , tan-
to que deo na coíla da índia , achou o
tempo tão groíTo , que não fe atreveo an-
dar ao pairo , porque o comiam os mares.
E fazendo fnial á frota foi-fe na volta de
Chaui , pêra onde todos o feguíram. So-
mente Henrique de Macedo , e António da
Sil-
Década IV*. Liv. IV. Cap. IX. 3^5'
Silva 5 que fe deixaram ficar na paragem de
Dio por foíFrercm., melhor o pairo. Os da
Armada de António de Miranda hiam tra-
balhados : o Çamorim pequeno , de que era
GapiLao Lopo de Meíquita , defviou-fe da
Armada, e os ventos , e aguas o levaram á
enfeada de Cambaya com mares que os co-
miam , onde quiz a Fortuna que cncontraf-
fe huma náo de Mouros m^ui bem artilha^
da , que trazia duzentos homens de peleja ,.
que também hia correndo com tempo , le-
vando hum bolfo de vela , com que hia
demandando Surrate. Lopo de Mefquita ,■
pofto que não tinha mais de trinta íblda-
dos , armou-fe , e dando o traquete foi de-
mandar a náo , e a inveftio , e da primeira
pancada que lhe deo fe lançaram dentro-
Lopo de Mefquira , e Diogo de Mefquita
feu irmão com alguns vinte foldados , que
foram recebidos dos inim.igos com muito
esforço, travando-fe dentro hum.a bem for-
mofa batalha. As náos como eílavam aíidas
huma da outra , davam tam.anhas pancadas
com os mares que eram banzeiros , que
abriram por algumas partes , por onde co-
meçaram a fazer muita agua : e fcmpre fe
desfizera huma com a outra , fe com a for-
ça não quebrara a balroa com que eílavam
prezas , com o que fe apartaram cada hu-
jna pêra fua parte , ficando Lopo de Mef-
Coutg, Tom. L P.L V qu 'ir
3o6 ÁSIA DE Diogo de Couto
quita com os feus pelejando na náo dos
inimigos com muito valor, ferindo, e ma-
tando nos Mouros cruelmente. Os do ga-
leão não puderam tornar a ferrar a náo , e
íbi-lhes forçado (pela muita agua que fa-
liam ) dar á vela pêra Chaul. Os que fíca-
Tam na náo vendo que fua ílilvaçao eftava
em feus braços depois de Deos , determi-
naram de fe livrar por elles , pelejando co-
ino leões famintos , fazendo tamanha def-
truiçáo nos Islouros , que depois de terem
os mais delles mortos , e os outros feridos ,
entregáram-fe-lhe , ficando os noílbs tam-
bém com muitas feridas. A náo com a mui-
ta agua que fazia hia-fc ao fundo , a que
os noflos acudiram , huns ás bombas , ou-
tros a tapar os buracos , mas a coufa hia
em crefcimento : pelo que Lopo de Mef-
quita mandou a feu irmão Diogo de Mef-
quita , que fe metteíTe no batel com alguns
Portuguezcs com clle , e mandou metter
muitos caixões de ouro , e prata que a náo
trazia ; porque fe fe ella foíTe ao fundo , fe
falvaíTe aquillo , e náo deixou de trabalhar
por vencer a agua. Os do batel havendo
que a náo náo poderia deixar de fe ir ao
fundo 5 receando-fe que os forveíTe com el-
la, e que os outros fe quizefiem metter no
batel , que era pequeno , o que feria caufa
de fe perderem todos , aíraíláram-fe da náo ,
e de-
Década IV. Liv. IV. Cap. IX. -^oj
e deram á vela , fem Diogo de Mefquita
(que gritava tal não fizcílem) lhe poder
valer ; e foram governando pêra Chaul , fa-
zendo-lhe Diogo de Meiquita íeus requeri-
mentos , e pedindo-Ihe que o puzeíTem na
náo onde ficava ieu irmão , de que lhe a
elles deo muito pouco. Lopo de Mefquita
que ficou na náo com outros tantos como
hiam no batel , que feriam oito , ou dez ,
tanto trabalharam ajudados dos Mouros ,
que tomaram algumas aguas por partes ,
com que ficou a náo pêra poder governar ,
e deram á vela pêra Chaul , onde ao outra
dia furgio , achando já alli António de Mi-
randa , que foube do que pafiliva , e ficou
muito agaílado pelos do batel , que fe não
fabia deiles. A fazenda defía náo fe tirou ,
e vendeo , dando-fe as partes aos foldados ,
e ficaram a ElRey forros mais de feíTenta
mil pardáos , a fór^a o ouro , e prata que
hia no batei , que montava mais. Os do
batel , que tomaram o camJnho de Chaul ,
quiz Deos pagar-Ihes fua deshumanidade ,
(porque não cuidem que ha quem poíTa fu-
gir a Icus caíligos , ) e aífi foram dar com
a Armada deDio, que já andava fora, que
feriam trinta e três gaieotas mui bem pe-
trechadas , de que era Capitão mor hunri
yalente Mouro chamado Aíixá. Efte vendo
o batel fe foi a elle, e o tornou^ recolhen-
V ii do^
jo2 ÁSIA DE Diogo de Couto
do-fe com huina preza tao folgada , e que
aos noíTos cliíIou tanto ; e fazendo-fe na
volta de Dio , encontrou com o galeão de
Henrique de Macedo, (que como já diíTe-
inos fe deixou ficar com o de António da
Silva naquella paragem , de quem fe tinha
apartado com o tempo.) Alixá vendo o ga-
leão , o rodeou com fua Armada , come-
çando-o a bater com fua artilheria de ca-
melos , e falcões de metal , de que trazia
muitos. Henrique de Macedo negociou mui
bem o feu galeão , repartindo o trabalho
delle pelas peílbas de mais confiança , e re-
cebeo os inimigos com muito animo , dan-
do-lhcs fuás falvas com a artilheria que tra-
zia léíles : com que lhes defapparelhou mui-
tas das fuftas por íima , porque como o
galeão era alterofo , paílavain-lhe os mais
dos tiros por alto , por ferem as galeotas
raíleiras , que fe mettiam debaixo da fua ar-
tilheria 5 batendo o galeão ao lume d'agua ,
por onde lhe abriram, muitos rombos , e fe
houvera de ir ao fundo , fe não fora a mui-
ta diligencia de Henrique de Macedo , que
acudia a tudo com muita preíleza , mandan-
do tapar os buracos com colchas , colchões ,
e com outras coufas. A bateria dos inimi-
gos era cada vez maior, e o galeão elbva
já todo deíapparelhado , os maftos quebra-
dos j as obras de fmia desfeitas de forte , que
fi-
Década IV. Liv. IV. Cap. IX. 309
ficava razo , e os noííbs no convés defcu-
berros a ícus tiros , fern deixarem feus lu-
gares , pelejando todos com muito vaior.
Henrique de Macedo corria o galeão dd
poppa á proa , animando , esforçando os
léus , tendo em baixo alguns homens de
muito recado com efcravos , e marinheiros
pêra acudirem aos buracos que fe abriíTem.
Todos eíle dia mereceram hum grandiílimo
louvor , porque com andarem feridos de
rachas , e frechadas , por huma parte pele-
javam com fuás efpingardas , com que ti-
nham mortos muitos dos inimigos ; e por
outra ajudavam a bornear as peíTas da arti-
Iheria , fazendo os mais delles o officio de
bombardeiros , carregando as peíTas , e ati-
rando com ellas como fc toda a vida o
ufiram , foíFrendo, e pelejando como ho-
mens que fe viam tao deílroçados , c per-
didos 5 e que queriam vender mui bem íuas
vidas. Alixá vendo o galeão todo arraza-
do , determinou de o abalroar , e entrar , o
que accommetteo com grandes gritas ; m.as
cuftou-lhe caro eíle accommettimento , por-
que achou nos noíTos tal refiilencia , que
com m.orte de muitos o fizeram aífafiar , e
aíli por outras algumas vezes que os torna-
ram a commetter. Durou efla briga quaíi
oito horas , fendo cada vez mais cruel , e
apertada , eílando os inimigos admirados
do
3IO ÁSIA DE Diogo de Couto
ào trabalho , que os noíTos tinham foíFrí-
do, e do novo animo com que, cada vez
que os accommettiam , os achavam. Efían-
do neíle riíco , e o Alixá determinado de
os nao hirííar até os render , foccorreo-os
-O '
Deos com a chegada do galeão Reys Ma-
gos , de que era Capitão António da Sil^
va , que acudio ao tom das bombardadas,
c vinha com as velas dadas , e portos em
armas ; e vendo o noíTo galeão tão piedo-
ío , deo graças a Deos pela mercê que lhe
fizera em o trazer aqueile tempo ; e pêra
alegrar a todos , mandou com muito alvo-
roço tocar as trombetas, que começaram a
tanger : Akgrai-vos , alegrai-'vos , que aqui
'vem os ires Reys Magos, Chegando ás ga-
leotas , metteo-fe em meio delias , e as co-
ineçou a varejar com fua artiíheria , em que
fez mui bom emprego. Alixá tanto que vio
o foccorro , tomando o remo em punho ,
fe foi fahindo, e António da Silva feguin-
do-o ás bombardadas , fazendo-lhe o -Alixá
fem.pre rofto com algumas galeotas, e ati-
rando-lhe tam.bem muitos tiros, de que quiz
a dcfaventura que accrtaíTe hum António
da Silva , de que cahio morto , nao peri-
irando outrem no {qm oraleao. Os feus foi-
dados ficaram muito triftcs , e voltaram pe*
ra o outro galeão. E fabendo Henrique de
Macedo tamanho defaílrC; o fentio em ex-^
tre-
I
Década IV. Liv. IV. Cap. IX. 311
tremo ; e porque o feii galeão nao tinha
niaílos , deo-lhe os Revs Magos hiima toa ,
e com muito trabalho o poz em Chaul tâo
deílrocado , que nao apparecia mais que
hum pequeno de calco ibbre a agua ; e aíli
apparece ainda hoje das varandas da Igreja
das Chagas em Goa , onde eílá eíla batalha
pintada , e cada anno fe renova por memo-
rável. OAlixá fe foi recolhendo pcra Cam-
baya , onde cliegou , e aprefentou ao Sul-
tão Badur os cativos , com que elie folgou
iriuito. E como era fraco, e cruel, (cou-
fas que fempre andam juntas , ) e fobre tu-
do maliílimo , mandando levar aos Portu-
guezes diante de íi , os perfuadio a fe faze-
rem Mouros, apertando multo com Diogo
de Meíquita , que foubc fer homem Fidal-
go , e grande Cavalleiro , do que eíle fem-
pre zombou , com Uv^ fazerem muito gran-
des promeílas , e mimos. E vendo que por
aqui o não vencia , o quiz fazer por tor-
mentos que lhe mandou dar , de quem fe
elie movco menos ; o que viílc pelo tyran-
no , mandou levar huma bombarda muito
groíTa , e o mandou metter nella , eílando
elie prefente , a quem o Cavalleiro de Chri-
fto com grande conílancia diíTe : Faze ,
cruel , o que quizeres , que eu por nenhum
temor ãa morte hei de deixar a Fé de fueu
Senhor Jefus Chrijlo , pela falfa , e raenti-
rO'
^^12 ÁSIA DF, Diogo de Couto
rofa lei ãe Mafameàe : matida pôr o fogo ,
^ue a morte he breve , e eu gozarei dos
bens eternos , que fe não acãbam. Tomara
que o tormento fora maior , e mais cruel ,
€ comprido , pêra mojlrar o gojlo com que
defejo de pajjar todos pela honra de meu
Deos, Palmado o Badur daquelle animo , e
conílancia , o mandou tirar da bombarda.
Os mais companheiros convencidos daquel-
la firmeza , não houve em algum deJles , a
quem promeíTas , e ameaças mudaíTcm. , e
foram todos m.ettldos em^ huma cruel pri-
zão 3 donde depois íahíram com honra ,
porque Deos não defampara os feus fervos.
E de Diogo de Me í quita fabcmos que lhe
deo ElRey D. João lo por ifto as fortale-
zas de Çofala 5 e Moçambique , como em
outro lugar fe verá.
CAPITULO X.
T)o que aconteceo na jornada a Martim
Ajfonfo de Mello Juzarte : e de como
fe per deo na cofia de Bengala : e
dos grandes trabalhos que paf-
fou até fer cativo,
COm todos os que no cabo do verão
partiram pêra fora , temos continuado ,
fomente cora Martim AíFonlb de Mello,
que guardámos pêra efte lugar , por não
^ con-
Década IV. Liv. IV. Cap. X. 313
contannos fuás couíiis por pedaços. Parti-
do eíle Capitão de Goa , foi tomar a Ilha
de Ceyláo , como levava por regimento ,
pêra foccorrer áquelle Rey da Cora , que
eflava já defapreílado da Armada de Cale-
cut ; porque t^.nto que teve rebate da noíTa ,
Jogo fe recoiheo , e o Madune levantou o
cerco que tinha poílo ao irmão. E porque
a cauía deíia guerra , e a origem deftes
Reys adiante em principio da quinta Déca-
da damos razão , por nos parecer alii me-
lhor lugar , o deixamos agora. Eilimou
aquelle Rey da Cota eíie íoccorro m.uito ,
-e ficou mais obrigado ao ferviço d^ElRey
de Portugal , cujo vaiTalio era. Martim Aí-
fonfo náo tendo aili mais que fazer , deo á
véla , e paíTou os baixos á outra banda , e
foi invernar a Paleacate , onde mandou def-
armar os navios , e concertallos , e alim.pal-
los muito bem , pêra na entrada de Agoílo
feguir fua jornada pêra Aialaca. O fegredo
delia não pode eílar tão cuberto , que fe
não vieíTe a romper pelos foldados , de que
•ficaram tão enfadados ( cuidando que hiam
-ás prezas) que fe amotinaram , e alteraram,
chegando a coufa a tanto, que trataram de
■queimar a Armada pelo avorrecimento que
:tinham todos á jornada da Sunda : e aíli
■lhe puzeram fogo , a que Martim Aífonfo
acudio ; e quiz Deos que o apagalTem , fem
nun-
314 ÁSIA DE Diogo de Couto
nunca fe faber donde lhe veio. Vindo Agoi-
ro , embarcando-íe Martini Affonfo , dei-
xáram-íè ficar na terra muita parte dos fcus
íoldados , e elle foi íeguindo fua jornada.
E por ter novas que na coíla do Pegu an-
davam algumas fuftas de Rumes, a foi de-
mandar , e furgio na ponta de Nagramale ,
onde fe deixou eílar por ver fe vinham as
fuftas dos Rumes dar com clle. Aqui lhe
deo tamanho temporal , que nao podendo
foífrer a amarra , levantáram-fe , e foram
correndo com os traquetes por onde cada
hum pode. Ao outro dia achou-fc Martim
AíFonío fem os navios, e como a tormen-
ta ceifou , tornou a voltar pêra Negra male
aos efperar. Ei navegando per antie humas
Ilhas , deo a galé em hum baixo onde logo
adornou. Caftanheda diz que era caravela ;
mas nos livros velhos dos provimentos das
Armadas defle tempo achámos nomeada
galé , que naquelle tempo eram carraças na
grandeza , e no pezo , e nao fe remavam
mais que pêra fe revocarem. Martim Af-
fonfo teve tal tento , que por feniir reboli-
ço na gente, poz cobro na bateira, c man-
dou metter nella André de Souía , mandan-
do-llie que fe aífaftaíle , e nao deixaíle met-
ter peííoa alguiPia dentro , porque tratou de
ver fe os podia falvar em jangadas , que lo-
go mandou ordenar de páos ; tavoas , e re*-
mos.
Década IV. Liv. IV. Cap. X. 315'
mos. E por for de noite cfciira , e medo-
nha , com as pancadas acnbou a galé de íe
abrir , ficando alguns pedaços grandes no
íecco 5 em que os Portuguezes lè deixaram
cílar , fazendo-íe preílcs alguns pêra fe lan-
çarem ao mar 5 ao que lhes foi á mão Ma r-
tim Affonlo , esforcando-os , e animando-
os 5 affirmando-Ihes que com o íav^or Di-
vino elle trabalharia por faívar todos. E
chamando a bateira , metteo-lè nella , e re-
colhco hum ^ e hum , os que clk chamou ,
e depois de fe encher, ficando fó leis Por-
ruguezes , e os efcravos todos , fe affaílou
por recear que fe os tomava fe perdeíFem ,
ficando os da galé pedindo milericordia ,
com palavras piedoíiílimas , que cortaram
bem a Martim Affonfo ; mas não pode fa-
zer outra coufa , promettendo-lJies , que
tanto que lançaííe aqueHa gente numa terra
que apparecia , tornaria a voltar por elles.
E foram remando com muito trabalho até
chegarem a huma Ilha , diftancia de huma
■ 'gua de caminho. E por fer de noite, e o
mar fazer grandes efcarceos , temeo chegar-
Jé a terra : e lançou dous marinheiros a
Jiado , pêra verem fe havia alii praia, ou
penedia , que não tornaram mais , nem fe
foube o que foi delles , pelo que tornou
Martim Affonfo a voltar pêra a galé, e to-
mou os Portuguezes que nella ficaram , c
tor-
3i6 ÁSIA DE Diogo de Couto
tornoií-fe pcra a terra , onde tomou coníc-
lho fobre o que faria , e alTentou de fe ir
de longo delia até Arracao , períuadindo ,
c esforçando a todos a foffrer os trabalhos
da fome , e fede , porque não levavam mais
que hum pouco de bifcouto que puderam
-lalvar , fem agua alguma , e todo aquelle
dia por caufa da fede não quizeram comer.
E indo feu caminho houveram vida de
huma aldea aíFaftada da praia. Marrim Af-
fonfo mandou á terra hum homem Fidalgo
chamado Francifco da Cunha , e com elie
hum João Fialho , pêra irem á aldea ver
fe lhe queriam dar agua , e chegados a ter-
ra foram cativos dos naturaes , que á vifta
dos noiTos os levaram amarrados. E por-
que o vento 5 e o mar crefcia , e elles eíla'-
vam fem agua , e havia dous dias que não
beberam , requereram todos a Martim Af^
fonfo 5 que os lançaífe em terra , porque
antes queriam fer cativos , que morrerem á
fede. Martim Affonfo trabalhou de os tirar
deíle propofuo , com os perfuadir a foíFre-
rem mais hum dia de trabalho até chega-
rem a Arracão , (que era terra onde os Por^-
tuguezes hiam todos os annos commutar ,
-c vender j) mas elles fem ter refpeito acour-
fi alguma fe puzeram em defembarcar , o
que Martim Affonfo fentío muito , e fez
grandes eflremos. Viílo eíle cafo por alguns
Fi-
Década IV. Liv. IV. Cap. X. 317
Fidalgos Cavalleiros , como Simão Ferrei-
ra 5 André de Souía , Gonçalo de Mello,
Nuno Freire , e outros dous Cavalleiros ,
lançáram-fe da parte de Martim Affonío ,
e fizeram com os mais , que dcfiftifTem de
feu propoíito , e que íe foíTem até Arracao ,
e que permittiria Deos que achaíTcm al-
guns dos navios de fua companhia , e aíll
foram correndo a cofta. Os dous que alli
ficaram foram, depois rcfgatados com Fran-
cifco da Cunha , que viveo depois muitos
annos no Algarve cafado. O batel foi de
longo da terra até darem em hum ribeiro,
que fahia ao mar , de agua doce , de que
mandou Martim Aífonfo encher huma jar-
ra , ao que foram Diogo Pires Deça , e
Nuno Fernandes Freire , com outros dous
companheiros , porque Martim Aífonfo fem-
pre fe guardou de chegar a terra porque
le não fahiíTem todos pelo riíco a que fe
poriam. Alli foi ter com elles hum negra
dos naturaes , com huma panella pequena
de arroz cozido que lhe reigatáram , com
que fc recolheram pêra a embarcação , aon-
, de fe repartio por todos ; e como eram
rperto de leííenta peiToas , coube a cada hum
leu bocado , e com eíTe pouco de bifcouto
que tinham , com.o tiveram agua ficaram
fatisfeitos , e foram feu caminho com pro-
yisão na jarra , que era pequena j de que
íe
3i8 ÁSIA DE Diogo de Couto
fe não dava mais ração , que quanto fe po-
dia molhar o pndar três vezes ao dia. Com
cftes trabalhos chegaram a Arracao , e toma-
ram dous Ilheos que eftavam á entrada ,
onde acharam logo na praia dous facos de
bifcouto todo molhado, ehum caixão com
alguns guingÓcs dentro , e pareceo-lhes que
feria de algum, dos navios de fua compa-
nhia. Neítes Ilheos acharam agua roim , e
falobra , e humas favas como as noíTas ,
humas verdes , e outras feccas , de que al-
guns comeram , e no mefmo inílante lhes
deo humas deílnterias , a que na índia cha-
mam corruptamente mordexim, havendo-fe
de chamar morxis , e a que os x\rabios
chamam f^chaiza , que he aquillo que Ra-
fis chama la h ida , que he hum mal , que em
vinte c quatro horas mata , cujos effeitos
são ficar logo o pulfo fubmerfo , muito del-
gado, com hum fuor frio, com grande in-
cêndio por dentro , c fede grandiilima , os
olhos mui fumidos , grandes vómitos, em
fim deixa a virtude natural tão derribada ,
que parece hum homem morto , como to-
dos os que comeram as favas ficaram. Mar--
tim AfFonfo acudio a cite negocio , defen-
dendo aos outros que as não comeííem. E.
porque não havia com que remediar os pa-
cientes, ficaram deitados porelTa praia, efc
perando pela hora em que elpiraíTem. Mar^
tiíU
Década iV. Liv. IV. Cap. X. 31Í?
rim AíFonfo anojado de ver dez , ou doze
companlieiros naquclJe eftado fcm lhes po-
der valer , toda a noite paíTeou , e o meí^
mo fizeram os sãos. E andando Nuno Fer-
nandes Freire , e PVancifco Mendes de lon-
go da praia , porque fazia luar , vigiando
ie viam alguma embarcação , viram. íahir
d'agua luima grande tartaruga , e baquean-
do-íe 5 foram mui efccndidamente apôs el-*
la 5 até a verem recolher em hum.a parte
onde tinha os ovos , e chegando a ella a
tomaram com trabalho , e acharam duzen-
tos ovos , que com muito alvoroço leva-
ram a Martim AíFonfo que os cftimou mui-
to 5 e logo mandou efcalfar as gemas era
huma bacineta de latão, que por acerto hia
no batel , e elle com a fua mão os foi dar
aos doentes , que eíiavam taes que não fen^
tiam couía alguma , e a tartaruga fazendo-a
em pedaços a mandou cozer em hum ca-
^ ^j j '^ cr
pacete , de que todos comeram com eiie
pouco bifcouto que tinham. Com iílo co-
braram os doentes algum alento. Ao outra
dia tomaram outra tartarug"a com outra fom-
ji^a de ovos , que fe deram aos doentes , e
com iílo faráram fem perigar algum ; no
que fe cumprio bem aquelle noíTo adagio
antigo (que a quem Deos quer dar a vida ,
a agua da fonte lhe he mezinha.) Alli eftí-
^'er^iíD três dias. e Martim AíFonfo fe cm-
bar-
320 ASIiV DE Diogo de Couto
barcoLi com determinação de paíTar a Cha-
íigao , porque Jiia alli hum companheiro
que já eíHvera naqueJhi Cidade , e navegan-
do pêra Já , foram tomar a praia de huma
Cidade chamada Suquriá , de que era fenhor
hum Mouro chamado Codavaícan. Aili eí^
tiveram três dias comando palmitos de que
lia via muitos. Codavaican foi logo avifado
de íua chegada , e defejou de os haver ^
por íe cijudar dclles em huma guerra que
tinha contra hum vizinho : e mandou a if-
fo ]]um Capitão com duzentos hoiriCns que
os tomaram , fem os noíTos lhes poderem
fugir , Jevando-os foltos com muitas pro-
incjras de honras , e mercês. Codavaícan 03
reccbeo mui bem , confoiando-os de feus
trabalhos , e que fizeíTcrn conta que eftavam
em Portugal , porque tudo fe lhes daria de
<]ue tivcliem neceílidade , e que dle lhes
promettia de os mandar pêra a índia ; e deo
cuidado a peíToas de recado que os agaza-
Jhaílem , mandando-os logo veíHr, porque
Liam quaíi niís. Ao outro dia que iílo paf*
iou 'chegaram áquella barra duas fufcas da
companhia de Martim Aífonfo , de que
eram Capitães Duarte Mendes de Vafcon-
ceilos , e João Coelho , que íouberam de
Iiuns pefcadores como alli tinham chega-
do hunb poucos de Portuguezes que eíía-»
vam na Cidade ; pelo que lançaram em ter^
ra
Década IV. Liv. IV. Càp. X. 321
ra hum Negro em trajo dos naturaes pêra
ir laber quem eram , que fallou com Mar-
tim AíFonlò , e fabendo dos feus Capitães ,
ficou muito alvoroçado , e foi-fe Jogo a
Codavafcan , e lhe pedio licença pêra fe ir,
lembrando-Ihe a proineíla que lhe fizera. Co-
davafcan lhe diíTe que lhe não negaria ir-fe
pêra a índia como lhes promettêra , mas
que por então tinha neceílidade de fua aju-
da pêra contra hum vizinho feu ; e que
mandafle recado aos Capitães dos navios
que fe deixaíTem eílar, que elle os manda-
ria prover de tudo. Martim Affonfo os
mandou avifar do que paílava , pedindo-lhes
fe deixaíTem ficar, como fizeram, mandan-
do-lhes ElRey dar mantim.entos , e logo fe
partio pêra a guerra , dando arrnas aos noí-
íbs , que levou pêra guarda de fua pcíToa.
E vindo á batalha com o inimigo , fizeram
Martim AfFonfo , e os companheiros tama-
nhas cavallerias , que elles fòs desbarataram
os inimigos , e Codavafcan lhe tomou a
fua Cidade, e terras, e recolheo-fe vitorio-
fo. Martim Affonfo lhe pedio , que , pois o-
tiivha fervido no que queria , o deixaíte env
barcar nos feus navios , aue os cfceravam-
^ ir
por feu mandado ; como todos os Mouros
não amam a Chriílão fenão por neceíTida-
de 5 ou intereíTe , lhes diííe , que fe refgataí^
fcm , e que então os foltaria. Martim Af-
Couto. Tom. L P, L X foii-
322 ÁSIA DE Diogo de Couto
fonfo ficou muito enfadado , dizcndc-lhe que
€om que fe havia de refgatar le eílava alli
perdido como elle via ? que puzeíTe elle o
preço ao relgate de todos , e mandaíTe com.
elle hum homem , que no primeiro porto
de Portuguezes lho daria íem lhe faltar
hum real. Codavaícan zombou daquillo.
Vendo Martim Aífonfo , e os mais aquella
tyrannia , determinaram de fugir , pêra o
que miandárnm recado aos Capitães das fuf-
tas peio mefmo Negro que lho trouxe dei-
las 5 em que lhes pedia , que em iium certo
dia (que lhes limitaram ) mandaíle pelo rio
aííima algumas almadias até hum certo lu-
gar pêra os recolher. Vindo a noite apra-
zada fahíram de cafa , porque não tinham
guardas , e efpalhados foram demandar o
lugar das almadias , que era dalli a quatro
léguas. O camiinho era mui roim , e com-
prido , em que fe perderam alguns , que
não tiveram outro remédio fenão tornar-fe
pêra a Cidade, onde entraram ainda de noi-
te ; e achando que nao foram fentidos , fe
deitaram nas fuás cam>as pêra diílimulação ,
e antre eíles era Diogo Pires Deça hum
delles. Martim AíFonfo com os mais foram
por diante , e como o caminho era peílife-
ro , tardaram tanto , que lhes amanheceo
nelle , e foi-lhes neceíTario embrenharem-fe.
Ao outro dia foube-fe de fua fugida , e
man-
Década IV. Liv. IV. Cap. X. 315
mandou Codavafcan levar perante- íl Diogo
Pires Deça , e os mais , a que perguntou
pelos companheiros j elle lhe dilTe que náo
dera fé de coufa alguma , nem os achara
menos , íenao pela manhã quando acorda-
ra. Codavafcan defpedio logo quatrocen-
tos homens apôs Martim Aííbnfo , e ap-
pellidando a terra foram dar com os nolTos
embrenhados , e os tomaram. Martim Af-
fonfo diíTe ao Capitão ( cuidando que Co-
davafcan lhes mandaíTe fazer algum mal)
que dÍQ fó tinha a culpa daquelia fugida,
e não feus companheiros , porque como feu
Capitão os levava , que fe merecia caíligo ,
que a clle fó fe déíTe. O Mouro lhe diífe ,
que não fe perturbaíTe , porque não havia
culpa em pertender fua liberdade : que Co-
davafcan não deixaria de lhe fazer muitos
gazalhados , e de cumprir a palavra que
lhe tinha dada. Eftando neílas praticas , che-
garam alguns Bramenes , e peitaram aquel-
ies Mouros pêra que lhes déíTem hum dos
Portuguezes pêra o facriíicarem a feus ído-
los , porque lhe tinham feito promettimen-
to , que fe lhos deparavam, de lhe facrifí-
carem hum delles. Hum Capitão dos Mou-
ros lhe entregou hum Gonçalo Vaz de Mel-
lo 5 que nas guerras paíTadas tivera humas
palavras , em que affrontára o Mouro , por-
que fe quiz vingar delle. Martim Affonfo
X ii " pro-
3^4 ÁSIA DE Diogo í)e Couto
prometreo por elle grande lefgate , mas não
pode acabar Gom elles couía alguma , e lo-
go alli á vifta de todos o degoliáram , mof-
írando grandes ados de Chriílao , e muita
firmeza na Fé de Chriílo. Do íangue d elle ^
e de outros muitos Martyres eftam todas
as praias do Oriente banhadas , pelo que
ainda ha Deos de permittir , que por todas
ellas fe vejam. Templos levantados , onde
elle feja venerado, e louvado. Martim Af-
fonfo ficou muito trifte do caio , e aííi foi
levado com os mais a Codavaícan , que o
tornou a mandar pêra íua cafa , como dan*
tes 5 íem mais prizao , dando-lhe todo o
necefíario. Vendo Martim x^ffonfo que eíle
negocio não tinha remédio , efcreveo aos
Capitães das fuílas tudo o que lhe tinha
acontecido , mandando-lhes huma carta pê-
ra o Governador ^ em que lhe pedia os
mandaíTe relgatar , (com.o depois fez , man-
dando a iíTo hum Mouro chamado Coge
Çabadim , que os trouxe a Goa já em tem-
po de Nuno da Cunha. ) Dos mais navios
da Armada de Martim Affonfo não achá-
mos em lembrança o que foi delles , nem
Caílanheda o diz \ mas quanto a nos y a
mor parte delles fe perderam.
DE-
f]^ '^^^r^ ''^ijf^ '*~;ir^ "-'-^r^ -^~iíf '^^""iir^- -^-jir^ '»"iir^ "^"^ir^ '»"^ir»^ «í
DÉCADA (QUARTA.
LIVRO V.
Da Hiftoria da índia.
CAPITULO I.
De como ElRey D, João mandou por Qo'
. vernador da Índia Nuno da Cunha :
e do que aconteceo na jornada.
Elas náos do nnno de vinte e feís ^
que chegaram da índia em Agoílo de
vinte e kl^ , de que eram Capitães
T-riflao Vaz da Veiga , Francifco de Anhaya ,
e outros , teve ElRey D. João novas das dif-
ferenças dantre Pêro Mafcarenhas , e Lopo
Vaz de Sampaio j e aííi meímo por via de
Veneza as teve da Armada que o Turco
fazia , e mandava ordenar pêra paíTar a ín-
dia. E fendo-lhe neceíTario acudir áquellas
coufas com huma groíía Armada , elegeo
pêra Governador da índia Nuno da Cunha
íeu Veador da Fazenda , pefíba de muita
confiança , e em quem concorriam as par-
tes , que o cargo requeria , ordenando-lhe
011-
326 ÁSIA DE Diogo de Couto
onze náos , e quaíi , ou mui perto de qua-
tro mil liomens. Correo Jogo a fama , e
por íer Armada contra Turcos , acudiram
muitos Fidalgos , e Cavalleiros á Corte a
fe oíFerecerem a ElRey , delpachandc-os ,
e fazendo-lhes mercês a todos : mandando
dar tanta preíTa á Armada , que quando foi
em Março , eílava toda poíla em Belém ,
onde ElRey foi eílar alguns dias pêra def-
pacliar muitas coufas. Aili deo a Nuno da
Cunha grandes regimentos , cujos princi-
paes pontos eram , que logo fizeíTc hum.a
fortaleza na Ilha de Dio pêra fegurança da
índia 5 pêra os Turcos nao virem alli ter
receptáculo , porque dariam grande opprcf-
são ao Eílado. E que aíIi melino fizeíTe ou-
tra no Reyno do Çamorim , na parte que
lhe melhor pareceíTe , pêra ter enfreado
aquelleRey, e pêra credito do Eílado, em
lugar da outra que D. Henrique largou em
Calecut ; e que lhe manda íTe prezo Lopo
Vaz de Sampaio, c lhe fizeíTe inventario de
fua fazenda , que foíTe em mãos de peíToas
abonadas. Que fe os Turcos paíTaífem á ín-
dia 5 ajuntaíTe todo o poder , e fe puzeíTe
na barra de Goa ao mar , até faber aonde
hiam demandar , e que depois de faber on-
de os tinha feguros , folTe pelejar com el-
les ; e outros da fazenda , e juftiça , que não
«ao da noíTa hiíloria. Embarcados todos , e
a Ar-
Década I\^ Liv. V. Cap. L 327
a Armada preíles pêra dar á véla , faltou-
Ihes o tempo , por onde nao pode fahir
pêra fora ienlo aos dezoito de Abril defte
anno de vinte e oito , em que Nuno da
Cunha fe fez á véla com onze náos , de
que eram Capitães ; elle , que hia embarca-
do na náo Roía ; Simão da Cunha Copei-
ro mor d^ElRej em Santa Maria do Caf-
tello; e Pêro Vaz da Cunha Eílribeiro mor
d'ElRey irmãos do Governador na nàc San-
ta Catharina. D. Fernando de Lima em
Santa Maria do Eipinhciro ; Francifco de
Mendoça em Santa Maria de Monferrate ;
António de Saldanha em Santa Maria da
Ajuda ; Garcia de Sá na náo Vitoria , e
hia provido da capitania de Malaca ; e Dom
Francifco Deça , João de Freitas , Bernar-
dim da Silveira , AfFonfo Vaz Zambujo.
Neílas náos mandou ElRey duzentos mil
.cruzados em Portuguezes , e outras moedas
pêra as neceííidades da índia , e pêra a car-
ga , que hiam repartidos por todas as náos.
Seguindo fua derrota , indo todas em con-
ferva na volta das Canárias , a náo de Si-
mão da Cunha , que hia por poppa da de
João de Freitas, por fe nao querer defviar
o feu Piloto (que nifto são todos mui tei-
mofos ) lhe deo duas pancadas tamanhas ,
que logo a abrio em dous pedaços , e por
ievarem o efquife em Uma fe lanjou com
mui-
328 ÁSIA DE Diogo de Couto
muita preíTa ao mar , onde fe merteo João
de Freitas com alguns que puderam , lobre
o que houve muiias cutiladas, e mortes, e
lè foram pêra a náo de Simão da Cunha ,
que logo amainou fentindo bem aquelle def-
aílre , e mandou lançar o batei fora pcra
recolher a gente , que andava já a nado
onde pereceram muitos : entre eíles foi hum
hom.cm caílido , que iia náo hia com fua
mulher , e três filhas moças, que vendo a
náo aberta , abraçando-fe todos íinco , com
hum pranto piedofiílimo , e gritos que pe-
netravam os ares , aíli liados todos íe fo-
ram com a náo ao fundo j expecT:aculo ,
que fez arrebentar a todos em lagrimas ,
com ter cada hum bem que chorar fua def-
aventura. Succedeo ifto ás dez horas do
dia 5 e foi tao fupito , que as outras náos
que hiam á viíia náo fouberam de coufa al-
guma fenáo quando viram fubmergir-fe a
náo debaixo do mar , e acudindo todos com
eíquifes fora falváram ainda muitos , e af-
fogáram-fe cento e íincoenta peflbas. Nuno
da Cunha fentio em eílremo efte roim fuc^
ceíTo , e feg;iindo fua viagem foram todas
as náos (tirando a de Bernardim da Sil-
veira que fe apartou) tomar a Ilha de Sant^
lago , onde fizeram, aguada , e fe prove-
ram de mantimentos em duas caravelas que
hiam carregadas delles pêra iflb. Dalli as
Década IV. Liv. V. Cap. I. 329
defpcdio Nuno da Cunha com cartas pcra
ElRey, cm que dava conta do fucceíTo da
viagem até li. E tomando fua derrota de-
ram na coíla de Guiné , onde acharam granr
dcs calmarias : e por a náo de António de
Saldanha ir muito zorreira , c andar íao
pouco 5 que toda a viagem foi Nuno da
Cunha fem velas de gávea por efperar por
elle , lhe requereram os Pilotos que a dei-
xaiTem , porque melhor era perder huma
náo viagem , que todas. Nuno da Cunha
mandou diílo recado a António de Salda-
nha 5 e que trabaihaíTe por arrumar a náo ,
c compaiíar-fe , porque lhe era neceííario
adiantar-fe por nao perder viagem. Antó-
nio de Saldanha lhe mandou dizer , que íe
foíTe muito embora , que eile trabalharia
tudo o que pudeíTe por ver íe havia remé-
dio no andar da náo. Com iílo deo Nuno
da Cunha com as outras náos os traquetes ,
e em pouco tempo defapparecêram. Antó-
nio de Saldanha ficou triíle , e todos os da
náo por fe verem alli ficar [ós, Hia com
elle embarcado o pai de Fernão Lopes de
Caftanheda , que ElRey mandava á índia
pêra efcrever os feitos daquellas partes , por-
-que foi Rey que fe nao contentou de pa^
gar a feus VaíTallos os muitos ferviços que
nellas lhe fizeram , com outras muitas hon-
ras , e mercês , mas ainda com lhes crder
nar.
330 ÁSIA DE DíOGo de Couto
nar, que viveíiem perpetuamente por fair.a
na cfcritura. Eíle homem andou na índia
cjuaíi dez annos , correndo a mòr parte del-
ia 5 até chegar a Maluco , efcrevendo as
coufas daquelle tempo mui diligentemente ,
que recopilou em dez livros , acabando o
ieu decimo com o Governador D. João de
Caftro. Eík volume nos diíTeram algumas
pelToas dignas de fé que ElRey D. João
mandara recolher a requerimeiíto de alguns
Fidalgos , que fe acharam naquelle raro , e
elpantoío cerco , porque fallava nelle ver-
dades. A eilcs , c a outros rifcos íc põem os
■efcritores , que as efcrevem em quanto vi-
vem os homens de quem o fazem ; c por
iíTo com menos receio efcrevemos as cou-
fas paliadas ( coqio ElRey nos mandou )
<^ue as prefcntcs , que também temos efcri-
tas 5 e aíli em humas , como em outras , nem
por refpeitos , nem por temor deixaremos de
as fallar : e poílo que também em algum
tempo fe mande recolher algum volume
dos iioiTos , outro virá em que fe ellas ma-
nifeílem. E tornando a António de Salda-
nha , os OíTiciaes da fua nao andaram ven-
do donde naícia o defeito delia , mudando
humas vezes a carga á proa , outras á pop-
pa , andando com os maílos , ora a ré , ora
avante , e tantas coufas deílas fizeram até
lhe acertarem o compalTo ^ e começou "%
náo
J
Década IV. Liv. V. Cap. I. 331
]ido a andar dalli por diante muito diífercn-
tciTicnte j c ícguindo lua derrota , encontrou
com a náo de D. Franciíco Deça , que íe
feílejáram bem , acompanhando-íe Icmpre
até irem na volta do Cabo de Boa Elperan-
ca , onde encontraram as náos de Nuno da
Cunha , de Fero Vaz da Cunha , de Dom
Fernando de Lima , e a de Aífonío Vaz
Zambujo , porque todas as mais eram eí-
palhadas , indo cada liuma ícguindo fui
derrota , que Jogo contaremos. Nuno da
Cunha , tanto que conheceo as náos , foi o
feu alvoroço mui grande, e chegados á fal-
ia fouberam o que lhes tinha acontecido,
e aíTi todos juntos foram demandar o Ca-
bo. No roíio delle , a íeis de Julho , lhes
deo tamanho temporal , que nao podendo
fofrVer o pairo por ferem os mares mui
groíTos , e cruzados , foram arribando em
poppa com pequenos bolfos de véla , falvo
António de Saldanha , que por ter náo no-
va 5 pode foífrer o trabalho ; dos mais foi
cada lium correndo por onde melhor pode.
Ao outro dia acahnou o vento , e Nuno
da Cunha , e D. Fernando de Lima vindo
á falia fobre o que fariam , aíTentáram que
foíTem por fora da Ilha de S. Lourenço ,
porque era já tão tarde que por dentro nao
podiam paliar á índia. E feguindo leu ca-
minho , eílando já do Cabo pêra dentro,
fo-
33^ ÁSIA DE Diogo de Couto
foram governando a Lefnordeíle , pêra fe
deitarem por fora da liha , onde os deixa-
remos por continuarmos com as outras náos.
D, Francifco Deça , Francifco de Mendo-
ça , AfFonío Vaz Zambujo , depois de paíTa-
da a tormenta dobraram o Cabo , e toma-
ram o caminho por dentro , e foram de-
mandar Moçambique , por irem faltos de
agua 5 e mantimentos ; e chegando áquclJe
porto ao entrar da barra , a náo de AiTonr-
ío Vaz Zambujo deo na Ilha de S. Jorge ,
onde ficou pêra fempre , falvando-fe toda a
gente , e por fer tarde licáram ai li inver^
nando. Bernardim da Silveira, que ao fahir
do Reyno fe apartou logo , foi feguindo
fua derrota , paliando alguns temporaes ,
que lhe deram muito trabalho , e depois da
dobrar o Cabo de Boa Efperança, indo de-
mandar Moçambique , foi o feu Piloto en-
calhar no parcel de Çofala , onde fe per^
deo , aíFogando-fe rnuita parte da gente , e
a outra . mais , que fe falvou em terra y foi
niorta pelos Cafres , o que depois fe foube
por alguns da terra.
CA-
Década IV. Liv. V. 533
C A P I T U LO II.
Do que fuccedeo as mais nãos da companhia
do Governador Nuno da Cunha : e de como
e lie fe per de o na Ilha de S. Lourenço : e
do que acontece o agente da companhia
de Manoel de Lacerda.
A temos dado relação do fucceíTo de íln*
CO náos , agora continuaremos com as
mais ; c como efta viagem foi deíaílrada ,
e teve vários fucceííos , hc neceffario que
relatemos todos : e aíli o faremos agora do
que aconteceo á náo de Garcia de Sá . e á
de António de Saldanha , que de toda eíla
Armada ellas fós paíTáram á índia. A náo
de Garcia de Sá , depois que fez fua agua-
da na Ilha de Sant-Iago , logo fe apartou
da con ferva , e foi fe guindo fua derrota ,
achando no rofto do Cabo o mefmo tem-
po que as outras , com que eíleve de todo
perdida. Paífado o Cabo foi tomando o ca-
minho por fora padecendo muitas fóm.es ,
fedes , e infortúnios , de que lhe morreo
muita gente , e chegou a eftado , que nao
havia na náo mais de huma pipa de agua,
mas foi em paragem que ao outro dia hou-
ve viíla da cofta do Malavar, como adian-
te diremos. António de Saldanha depois de
paíTada a tormenta , que elie efperou ao
pai'
334 ÁSIA DE Diogo de Couto
pairo , foi feu caminho até dobrar o Ca-
bo , achando muitos temporaes , e contraf-
tes , que lhe deram bem de trabalho. E paP-
fando á viíla da Ilha de S. Louienço na
paragem do rio de Sant-Iago , onde eilava
a gente das náos de Manoel de Lacerda ,
e de Aleixo de Abreu , que fe alli perde-
ram o anno paliado , como diiTem>os , onde
Todos tinham padecido graviílimas fómes ,
e trabalhos , eíperando que Deos os foc-
correlle com alguma náo que por aquella
paragem paíTaíle , pêra lhe fazerem linal ,
encommendando-fe ao meímo Deos em feus
corações , pedindo-lhe os tiraíTe daquella
terra : e como fuás efperanças eftavam em
clle trazer por alli alguma náo , não tira-
vam os olhos do mar , onde de continuo os
cftendiam por verem fe viam velas , e acer-
tando de verem eíla de António de Salda-
nha , em todos fez grande alvoroço, pare-
cendo-lhes que já eftavam remidos. E por-
que hia anoitecendo fizeram grandes fogos
em cruzes , pêra por elles moftrarcm aos da
Tiáo , que eííava alli gente perdida , que fo-
ram logo viíios de todos , e bem entende-
ram que eram Portuguezes os que lhe fa-
liam aquelle final , e tomando os traque-
tcs , puzeram-fe de noite a trinca. Como
amanheceo foram na volta da terra a que
não oufáram de chegar por não fer fabida,
' -. cf-
Década IV. Liv. V. Cap. IL 335-
efpcrando que da terra lhes vicíTe algum
em alguma aímadia com recado do que
era : e aíli aíthílando-fe de noite da rena,
e tornando a ella de dia , andaram alli oi-
to , fem íe determinarem a mandar o efqui-
fe a faber daquella gente , e no cabo dos
oito dias dando-lhes hum tempo rijo deiap-»
pareceram. Os da terra ficaram defconfola-
diífimos tanto que deixaram de ver a náo ,
e tomando coníelho íobre o que fariam ,
aíTentaram que fe paflaílem á outra banda,
aíli porque lá teriam mais mantimentos , co-
mo por ferem por lá as náos mais conti-
nuas , e poderiam fer viftos de algumas que
fe dilpuzeííem a tomailos , ou pela ventura
achariam alguma embarcação da terra , em
que fe pudeílem paíTar a Cofala , ou a Mo-
çambique : fazendo dous eiquadroes em que
haveria trezentas peiToas , tomaram o cami-
nho do fertão , ficando alli hum manceba
doente por náo poder feguillos. Eíles ho-
mens rodos defapparecêram neíle caminho ,
e até hoje fe não foubc delles coufa algu-
ma , por onde parece que foram mortos pe-
los da terra ; porque aquelles do fertáo sao
barbariílimos , fendo o remate de todos feus
trabalhos outros tanto maiores como fo-
ram os que lhes cuíláram as vidas. Vejam
agora os Reys fe ha na vida couía com
que fe fatisfaçam tamanhos trabalhos , como
feus
336 ÁSIA t)E Diogo de Couto
fcus vairallos paíTam neíla Conquifta da In-*
dia : e que preço ha com que fe pague
Iium fó rilco da inorte , quanto mais tan-
tos , quantos sao os em que cada dia íe
vem , no mar tanta tormenta , e perigos ,
nâ terra tanto rilco entre pelouros , e fo-
go : comendo mal , dormindo peior : pe-
lejando todas as horas por honra de leu
Dcos , e de feu Rcy. Por onde haviam de
trabalhar , que os homens que foliem re-
partidores dos gahirdoes , foíTem aquelles
que tem viílo , e experimentado os mehnos
rifcos , e trabalhos , porque dem com com-^
paixão 5 e não taxem com efcaceza , tendo
mais refpeito aos merecimentos dos ho-
mens, que á pretenção que muitos tem de
quererem valer com os Reys por hum mui-
to mal entendido xmeio , como o de quere-
rem accreícentar em fua fazenda , porque
r;unca ella creíce mais , que quando jufta-
mcnte fe pagam merecimentos. António de
Saldanha foi feguindo lua derrota com tan-
tos trabalhos , fomes , e fedes , que lhe mor-
reram leííenta homens , e lhe adoeceram
quafi todos , indo mais de hum mez a
quartilho de agua por dia a cada pelToa. E
em fim de todos eíles trabalhos , havendo-
fe cada dia por perdidos, foram a ferrar a
coíla da índia , com.o adiante diremos. E
tornando a Nuno da Cunha , c Fero Va:5
da
Década IV. Lív. V. Cap. IÍ. 337
da Cunha , e D. Fernando de Lima , de-
pois de paliada a tormenta , foram fempre
cm companhia com roins tempos , e com
calmarias que lhe deram, e com muito tra-
balho foram ferrar terra na Ilha de S. Lou-
renço , na paragem do rio de Sant-Iago , já
no lim de Outubro , onde lhes foi forcado
furgirem pêra fazerem aguada , de que hiam
muito faltos. O Governador Nuno da Cu-^
nha mandou o efquife a terra pêra verem
aonde havia agua , e fendo na praia , acu-
dio a qWq aquelle mancebo que atrás dilTe-
iríos ficara da companhia de Manoel de La-
cerda por doente , (que parece que ordenou
Deos ficar ai li pêra fe faivar.) Eíle tanto
que vio o batel em terra , remetteo aos que
hiam nelle como doudo abracando-fc cora
todos 5 chorando com prazer de os ver ; e
elles de dó de o verem daquella maneira
•arrebentaram todos em lagrimas , e folu-
ços , e tomando-o no batel o levaram a
Nuno da Cunha , a cujos pés fe lançou ,
contando- lhe fua defa ventura . e a perdição
daquellas duas náos ; e como havia n\tz j,
e meio que Manoel de Lacerda , e Aleixos
de Abreu com todos os da fua companhia
iè partiram dalli defefperados de poderem
alli vir náos táo cedo. Nuno da Cunha fen-
tio muito a defa ventura daquella gente , e
houve-fe pormotino em não chegar a tem-
Couto, Tom, L P. L Y po
33^ ÁSIA DE Diogo de Couto
po que os pudera falvar a todos , mandan-
do a feus criados que agazalhaííem bem
íiquelle moço , e o curaflem , que depois
Viveo muitos annos ca fado em Goa , e foi
Meirinho. Nuno da Cunha , e os mais Ca-
pitães mandaram fazer aguada em abaílan-
ça. E havendo quatro dias que alii efta-
vam 5 deo-lhes hum temporal travefsao tão
rijo 5 que a náo de Nuno da Cunha , que
eftava fobre huma fó ancora , começou a
eaíTar pêra a terra , e hirgando outra que
deo fobre pedra , foi logo cortada , e o
mefmo fizeram outras até féis , que todas
foram trincadas do rato , (fallando ao mo-
do marinheiro , ) de maneira , que foi a náo
encalhar em terra fobre hum areal , aonde
fe encheo de agua até a cuberta debaixo
da ponte. As outras duas náos quiz Deos
que tiveram amarras de cairo , que fe nao
cortaram , e puderam ter , e foífrer o tem-
po , eílando porém muito arrifcadas. Eíla-
vam a efte tempo os batéis em terra fazen-
do aguada, e querendo acudir á náo, não
puderam fahir pêra fora , porque o vento
fazia na boca do rio mui grandes efcarceos.
A gente da náo ficou toda fobre os caftel-
los , e na ponte , onde eíliveram até o ou-s
tro dia , andando Nuno da Cunha toda a
noite vigiando , e mandando tirar aífima o
cofre do cabedal , e algumas coufas , que
mais
Dec. IV. Liv. V. Cap. II. e IIL 339
mais puderam , porque fc não perdeíTe tu-
do. Ao outro dia acalmou o vento , e vie-
ram os batéis , em que o Governador man-
dou embarcar o cofre , e a mais fazenda
que pode , e a artilhcria que hia por fmia :
c depois de ter recolhido o que havia , el-
le fe pafibu com parte da gente pêra a náo
de feu irmão Pêro Vaz da Cunha , e a ou-
tra mandou pêra a de D. Fernando de Li-
ma. Dalli fe fizeram á vela , com tenção de
íe irem pôr dentro de Moçambique , to-
mando aquella derrota , em que os deixa-
remos por continuarmos com as coufas ,
que nefte tempo fuccedêram na índia , por
guardarmos a ordem dos tempos.
CAPITULO IIL
De huma Armada noffa , que partio de Co^
chim y e fe per de o no rio de Chatuá : e
de como o Govertuidor Lopo Vaz de Sam-
paio partio pêra Cochim , e desbaratou
huma grande Armada do Camorim,
AFfonfo Mexia Veador da Fazenda ,
que eílava em Cochim , foi avifado •
que o Camorim fazia algumas nãos preíles
pêra mandar a Aléca carregadas de pimen-
ta , que tinha a carga em differentes rios ,
e querendo impedir que não fahiííem pêra
fdra 5 armou com multai preíTa treze navios-
Y i.i da
340 ÁSIA DE Diogo de Couto
de remo , a cujos Capitães não achámos es
nomes , e a oito de Setembro fe fizeram á
vela , e indo pcra a coíla de Calecut , dco-
Ihes huma tormenta , a que chamam a Va-
ra de Chorom.andel , tão groiTa , e grande ,
que deo com todos os navios á cofta no
rio de Chatua , Tem eícapar hum fó j afFo-
gando-fe a mor parte dos noíTos , e os que
le fal varam em terra , delles foram mortos
pela gente delia , e delles cativos. Camo-
rim ficou foberbií]]mo com cíle íiicccíTo , e
mandou com muita preífa preparar huma
groíTa Armada , ajuntando todos os fcus na-
vios de feus portos , pcra fahirem a dar
guarda ás náos que havia de lançar fora em
fim de Setembro. Os Mouros de Cananor
que eftavam de pazes , com efta defaventu-
ra com.eçáram-fe a alterar. De tudo foi lo-
go o Governador Lopo Vaz avifado , e
com muita prefteza dcfpedio Simão de
Mello em hum galeão , e íeis fuftas pêra
guarda daquella coíla , c elle fe ficou pre-
parando pêra acudir a elía em peiToa , pri-
ineiro que os movimentos dos Mouros de
Cananor foíTem por diante , efperando por
António de Miranda , que fabia que eftava
em Chaul 5 que não tardou muito. O Go-
vernador o reccbeo muito bem , pedindo-
Ihe fícaíTe em Goa defcancando dos traba-
lhos, e elle fe fez á vela com féis galeões,
in-
Década IV. Liv. Y. Cap. IIL 341
indo ellc embarcado em S. Diniz , e dos
■outros eram Capitães Heitor da Silveira ,
Fernão Rodrigues Barbas , Lopo de Alef-
xiuiía , Henrique de Macedo , c António de
Lemos da Trofa , a que deo o galeão Ma-
gos , que foi de António da Silva , que as
^aleotas de Dio mataram. Levava o Go-
vernador mais fete fuílas , de cujos Capi-
tães não achámos os nomes de mais que de
D. Triíláo de Noronha. E fazendo fua jor-
jiada tanto avante como monte Deli, achou
Simáo de Mello com íua Armada , de quem
foube , como D. João Deça Capitão de Ca-
nanor lhe mandá-ra recado , que em Trema-
patão ellava huma frota do Çamorim de
a:ento e trinta velas , ferfeiíta paraos bem
artilhados , e as mais n:-ios , e pagueis de
carga , que hiam pêra Meca carregadas de
íd rogas , e que os paraos lhe hiam dando
guarda. Defta frota era Capitão lium Mou-
ro , natural do Reyno de Tanor, chamado
Cotiale , havido entre elles por homem fan-
to , que aqueile verão paliado tinha vindo
de Meca de fe oíFerecer á cafa do feu San- ■
carrão.. Tanto que o Governador foube ef-
ta nova , havendo confelho com aquelles
I Capitães , aíTentou-fe que fe lançaíTem ao
imar defronte de Cananor, que alli havia a
frota de ir dar com elles , porque fe os to
Eiaffem a terra haviam todos de fugir dei-
la.
34^ ÁSIA DE Diogo de Couto
la. O Governador mandou as fuftas de lon-
go da coita vigiar a Armada inimiga , e
tanto que foi noite , furgio com os galeões ,
e mandou Serqueira o Malavar no íeu na-
vio 5 que era muito ligeiro , efpiar os ini-
migos , e faber que derrota tomavam. Co-
tiale fabendo que Simão de Mello eílava a
monte Deli , não tendo ainda novas do Go-
vernador 5 determinou de ir pelejar com el-
le , e tomallo , e voltar íobre a fortaleza de
Cananor , e commettella , havendo que fe-
ria facil levalla nas mãos , e vinha com to-
da aquella frota , que cubria o mar á vela.
O Serqueira em a vendo voltou ao Gover-
nador , e lhe deo de noite a nova , e logo
fe preparou pêra pelejar com eile , maur-
dando recado aos galeões pêra que fe íi-
;zeirem preíies. Cotiale de madrugada houve
vifta da Armada do Governador , e cuidan^-
do que era Simão de Mello, aíli ã vela co-
mo hia a foi demandar. Os noífos vendo
tamanha frota ficaram embaraçados , porque
tudo o que viam em tanto navio era mul-
tidão de gente que os cubria , muita , e
groíTa artilheria, que por fuás proas appare-
cia , c muitas , e bailas armas de todas as
fortes que reluziam , muitos , e miuito difFe-
rentes inftrumentos de guerra que vinham
tocando : em fim tantas carrancas , e amea-
gos de morte ^ que pudera efpantar outra
mui-
Década IV. Liv. V. Cap. III. 343
muito maior Armada que aqiiella. O Go-
vernador chamou a íi os Capitães , e lhes
aiile, que ellc havia de pelejar com os ini-
migos , que fe fizeííem prcftes. Alguns dos
Capitães lhe diíleram que pareceria temeri-
dade, que o bom feria ajuntarem-fe os ga-
leões , e encadearem-fe , e fazerem-le fortes
pêra fe defenderem , fe os inimigos os fof-
Jem commetter. Outros foram de parecer
que pelejalfem , porque os navios inimigos
eram raiieiros , e que forçado haviam de
receber muito damno. E baralhando-fe o
negocio em porfias , chegou Serqueira o
Malavar , e como era muito esforçado , e
fabia bem da guerra daquella cofta , e co-
nhecia aquelles Mouros , diíTe ao Governa-
dor : )) Senhor 5 queefperais, que vagar he
» eíle ? Porque ]ião commetteis aquelles ini-
)) migos que vem chegando ? Porque aíli he
» muito peior , que como são muitos , e fe
yt vos fentirem , receio hao-vos de fazer
» damno. Commettei os inimigos , que vem
)) efpalhados por huma ilharga daquellas çom
)) as fuílas y e primeiro que os outros lhe
)) acudam , os desbaratareis , e chegarão os
» galeões com a tormenta de fua artilheria ,
» e tudo farão franco. » Ao Governador
pareceo-lhe bem , e levantando-fe , diíTe :
)) Ora fus 5 hei de pelejar , a elles com o
)) nome de Jefus j e quem quizer acompa-
» nhar
344 ÁSIA DE Diogo de Couto
^ nhar o íeu Governador , e a bandeira de
-)) íeu Rey , liga-me. » E tomando hurna cí-
-pingarda ás coftas fahou em huma fufia ,
de que era Capitão João Fernandes o Ta-
ful , valente Toldado , e dos do Teu galeão
ip.Itáram com elle Ruy Vaz Pereira , Dom
Sancho Manoel , João Rodrigues Pereira ,
Braz da Silva de Azevedo , Garcia de Mel-
lo, Oiuirte Coelho, Fernão da Silva, Nu-
no Pereira , André Cako de Évora , Ma-
noel de Brito Cabral , Francifco de Bairros
de Paiva , e outros Fidalgos , e Cavaileiros.
Embarcado o Governador , achou-fe com
treze fuílas , porque áqueila hora VhQ che^
gáram três de Cananor , cheias de muita ,
e boa gente , cujos Capitães eram Francis-
co Mendes de Braga > Martim da Silva , e
Jorge Vaz , que D. João Deça lhe manda-
va de foccorro ; porque tanto que teve vií-
•ta da Armada do Governador , e vendo ar-
rancar a do inimigo da terra , defpcdio os
navios. De todos fez o Governador duas
batalhas, ou alas, dando huma a Simão de
Mello , a quem encommendou a dianteira , e
comclle Lopo de Mcíquita , e Fernão Ro-
drigues Barbas nos batéis de feus galeões ,
e neíla ordem foram demandar os inimi-
gos , que vinham efpalhados , e os com-
ntettêram por huma ponta , dando-lhes a
primeira falva de bombardadas , de que def-
tro-
I
Década IV. Liv. V. Cap. III. 345'
(rocánim alguns , e fem quererem inveílix-,
:ornáram a metter cargas nos falcões , c de-
ram outra furriada , com que tanibetii met-
íêram alguns no fundo. Sere navios noílbs
inveu/ram logo com outros tantos dos ini-
migos ; fendo os primeiros que ferraram ,
Serqueira rvlalavar , Francifco Mendes de
i^raga , e Martim da Silva todos de Cana-
nor. E deitando logo nos inimigos huraa
fom.ma de panellas de pólvora , os abrazá-
ram de todo. O Governador com o ièu
terço chegou também dquelía quadra, e deo
fua falva, de que desbaratou muitos ^ e fer-
rou com outros com muito animo , fendo
qUq dos primeiros que os inveílíram , c tal
preííii lhes deo , que rendeo toda aquella
quadra , primeiro que Cotiale lhe foccor-
rcíTe. Os galeões hiam em meio da Arma-
da , ficando-lhe toda a inimiga defcubcrta ,
com que tiveram lugar pêra jogarem com
fua artilheria ; e como a Armada vinha
muito eílendida , e a noíla pelejava em Im-
ma das quadras , empregaram ieus tiros de
maneira , que mettêram. muitas nãos no fun-
do. Os noílbs tinham já axorados mais de
vmte navios ; e vendo os mais tamanho
damno , começáram-fe a defmandar , e re-
colher pêra a terra. Andava já neíte temipo
o mar coalhado de corpos mortos , e os
galeões já. baralhados com as iiáos inimi-
gas.
346 ÁSIA DE Diogo de Couto
«ras. Durou ifto até o meio dia que a vi-
ração começou a ventar , com que os ini-
migos deram á véla , e íe foram fugindo
pêra a terra. O Governador os não quiz
leguir j porque eflava com alguns feridos ,
e todos caníiidos , e contentou-fe com a vi-
toria que lhe Deos tinha dado , que era ta-
manha , que ficáram dos navios dos inimi-
gos 5 antre mettidos no fundo , e tomados ,
trinta e linco , e foram tomadas fincocnta
peílas de artilheria ; e Mouros antre cati-
vos , e mortos foram dous mil , fcm da
noíTa parte haver mais que alguns feridos :
o que pareceo milagre pela muhidao das
frechas , e pelouros groíFos , e miúdos , de
que os navios todos eftavam encravados ,
e o mar parecia de cor de langue. A Ar-
mada inimiga que hia fugindo hia tal, e
com tam.anho medo , que alguns navios va-
raram na primeira terra que adiaram , fem
irem bufcar rios , ou barras. Foi eíla gran-
de vitoria defronte de Cananor , cuja praia
ellava cuberta de Mouros , efperando ver o
desbarato dos noíTos j e vendo a prcfteza
com que os feus com tamanha Armada fo-
ram desbaratados , ficaram pafmados , e em
todo o Malavar fe fez hum geral pranto,
porque poucas cafas houve em que não fal-
taííe marido , filho , ou irir.ao. IÍÍo'quebran-
tou tanto a iodos , e atemorizou o Çamo-
rim
Década IV. Liv. V. Cap. III. 347
rim de feição, que receando queElRey de
Cochim , com o favor do Gov ernador Lo-
po Vaz lhe tonialTc Cranganor, defpedio
com muita preíTa o Principc herdeiro pêra
ir íl^gurar aquella fortaleza. O Governador
pareccndo-Iiie que Cotiale fc quizcílc def-
affrontar , e que ajuntafle pêra iíTo mais
^Armada , como cftava com a mão Jevc da
vitoria , deixou-fe eílar dous dias efperando
por elle , e vendo que não vinha , determi-
nou de ir por todos os rios em que os feus
navios haviam de eítar recolhidos, pêra os
acabar de abrazar , e aíTolar , mandando
diante Simão de Mello , que levou comíigo
o Serqueira por efpia , porque íiibia todos
aquelles rios ; e achando em hum delles
doze paraos varados , entraram de m^adru-
gada de fupito , e puzeram-lhe fogo, em
que todos arderam. E defembarcando Si-
mão de Alello em terra , cortaram todos os
pahnares que havia ao derredor da povoa-
ção , a que também fe deo fogo. Dalli fe
paíTou ao rio de Chatua , onde a noíTa Ar-
mada fe perdeo , pêra dar hum caíligo a
feus moradores peia morte que deram aos
noíTos , e entrando nelle de madrugada
queimaram quatorze paraos , que eílavam
varados , e a povoação , com morte de
m.uitos Mouros : e aíii foram deítruindo
outros lugares até cJiegarem a Cranganor,
cn-
34^ ÁSIA DE Diogo de Couto
onde acJiáram huns navios noíTos em guar-
da daqueile rio , que AíFonlb Mexia tinha
mandado , depois que foube que o Princi-
pe de Calecut era chegado , pêra defende-
rem a pagaílein daqueile rio aos íeus.
CAPITULO IV.
De CQino o Governador l.opo Vaz de Sarn*
paio dcfiruio o Arei de Porca : e da
Armada que do Reyno partio : e do
que lhes aconteceo f2a jornada
até chegar a Cochira,
CHegando o Governador a Cranganor,
lembrou-lhe que tinha adiante o Arei
de Porca , que havia vinte annos vivia a
defpcico do Eílado , recolhendo muitos la-
droes , e lançando outros de íeus portos ,
X}ue faziam muita guerra aos Portuguezes ,
€. lhe linha dado muitos trabalhos , ícm
Governador algum o poder caftigar , tendo
por iílo cobrado tamanho bico , que publi-
camen:e deitava Armadas fóra , oue corren-
do a coíia até a de Chorom.andel rouba-
vam os Portuguezes , com o que fe tinha
feito poderofo , e rico. E pelos defcuidos
dos Governadores , de pobre pefcador fe
fez fenhor de terras , e Eílados , e inimigo
declarado da índia , o que fe lhe diffim.u-
lou pelo muito perigo , e pouca honra
que
Década ÍV. Liv. V. Cap. IV. 349
que fe ganhava com o quererem deílruir:
e tinha feitos tantos damnos por eílar ban-
deado com o Cnmorim , que quando o
Governador D. Henrique eílava em concer-
to de pazes com elle , a primeira coufa que
lhe p-edio foi que lhe entregaíTe eftc Arei.
E iíio nao foi fó agora , porque ainda de-
pois noíTos dcfcuidos deixaram crefcer de
pada inimigos , que deram bem de traba-
lhos ao Eílado, como pelo decurfo da hií^
toria apontaremos : o que nafceo dos Go-
vernadores da índia cílarem com o olho
em feus refpeiros particulares , e cem o
tento em fe lhes virá fucceííbr , ou não, a
quem como chegava lhe lançavam ( como
lá dizem ) o gato nas barbas : e diílo tem
nafcido todas as miferias da índia. E certo
que parece hum jogo de dochelo vivo , que
de máo em mão fe vai apagando hum pou-
co, e praza a Deos que o não faça de to-
do. E deixando eíla matéria , Lopo Vas
de Sampaio como hia vitoriofb , não quiz
deixar arrefecer fua Fortuna , e determinou
de dar hum caftigo a eíie Arei y porque nãa
viveíTe tão folgado. E dando rebate aos
Capitães pêra que fe fizeíTem preíles, man-
dou a Simão de Mello , que com a gente
dos navios de remo levalíe a dianteira , e
elle com toda a mais dos galeões a reta-
guarda. E chegando de madrugada fobre
aquel-
35'o ÁSIA DE Diogo de Couto
aquella barra , defcmbarcáram todos em ter-
ra em deus batalhões de quatrocentos ho-
mens cada hum : e Sim ao de Mello fem fer
ientido entrou a povoação , e deo nas ca-
ías do Arei , que eram de madeira , pon-
do-lhe logo o fogo por muitas partes, que
começaram a arder com grande braveza. O
Arei efcapou por defaírre , c qucimou-íe-lhe
a mulher , e mais familia , e a povoação
foi mettida a ferro , e a fogo , e lhe toma- \
ram trezentos paraos mui bem feitos , e
muitas peíTas de artilheria de bronzo , fal-
cões , berços , e dous camelos , hum de me-
tal, e o outro de ferro , e lhe cortaram to-
dos os palmares que puderam , de ibrte
que ficou deflruido de todo. Feito eíle ne-
gocio , que foi muito honrofo , embarcáram-
ie os noíTos a feu falvo , c a outro dia en-
traram em Cochim , onde o Governador
foi muito bem recebido. Foi iíto aos deze-
feis de Outubro , e aos dezefete chegaram
as náos de Garcia de Sá , e de António de
Saldanha com muita gente merros , e todos
os mais doentes , que o Governador man-
dou defemíbarcar , e curar m.iiito bem, efef-
tcjou aquelles Fidalgos muito. Deiles íoube
como Nuno da Cunha era partido por Go-
vernador com huma groíTa Armada , e que
não fabiam delle , mas que conforme ao*
tempo que fe tinham apartado ;, pois o não
acha-
Década IV. Liv. V. Cap. IV. 35'!
achavam na índia , que nao poderia já
nquelle anno vir a ella. O Governador le
deixou ficar até quinze de Novembro efpe-
rando por elle pcra fe embarcar pêra o
Reyno , le eJIc vieíle : e vendo que tarda-
va , affirmando-lhe que eílaria em Moçam-
bique , defpedio cm bufca delle hum BaC-
tião Freire em huma naveta com regimen-
to 5 que tomaíTe a cofta de Melinde , o
mais aíTima que pudeíTe pêra Guardafú , e
que dalii folTe difcorrendo por ella abaixo
até Moçambique , pêra ver fe havia algu-
mas novas do Governador Nuno da Cu-
nha. Baftiáo Freire fe fez á vela a vinte de
Novembro ; e de fua viagem adiante dare-
mos razão. O Governador ficou defpachan-
do as náos pêra o Reyno , e depois de to-
marem a carga as fez á vela entrada de Ja-
neiro de vinte e nove , em que com o fa-
vor Divino entrámos , e nao achámos lem-
brança alguma , de quem foi por Capitão
delias 5 porque os que trouxeram ficaram na
índia. Partidas as náos , o Governador fe
embarcou , e foi correndo a cofta do Ma-
lavar , na ordem que levou quando foi pê-
ra Cochim 5 mandando diante Simão de
Mello com a fuftalha , e o Serqueira por
efpia , que entrava todos os rios , e toma-
va falia donde havia paraos j e fabendo que
em Marabia (que he hum rio do Reyno
de
3)2 ÁSIA DE Diogo de Couto
de Cananor) eílavam recolhidos quatorze
navios de CaJecut , dando rebate a Simão de
Mello , ( que de madrugada entrou áquelle
rio ) poz fogo a todos , por fc nao emba-
raçar em os tirar , tendo liuma muita arre-
zoada briga com os da terra , que acudi-
ram aos defender, (por eílarem a mòr par-
te delles abicados em terra , ) em que os
noíTos faltaram pêra os queimarem d fua
vontade ; e depois de feitos em cinza , fe
embarccáram a feu falvo , c fe foram pêra
o Governador que chegou a Goa , e man-
dou ordenar luuna Armada grande , em que
mandou António de Miranda pêra o Ma-
]avar , de cujos Capitães não acham.os no-
nics, fomente Chriílovao de Mello que hia
em liuma galé , e Francifco de Mello em
huma galeoía ; e do que lhes aconteceo,
adiante daremos razão.
CAPITULO V.
De como o Governador Lopo Vãz de Sayn-
paio foi avifado de hmna Armada de Cam-
bada que ajidava fora : e de como a
foi bífcar , e pelejou com ella , e a
desbaratou de todo.
T T Avendo poucos dias que o Governa-
Xx dor era chegado a Goa , lhe veio
hum recado apreíTado de Francifco Pereira
de
Década IV. Liv. V. Cap. V. 35^5
de Berrcdo Capitão de Chaul , cm que o'
aviíava como ficava a Armada de Cambaya
fobre aquelle porto , e que receava o qui-
zeíTem commettcr , e que Jhe podia acon-
tecer hum deíaílre pela pouca gente com
que eílava. O Governador como tinha aia^
da os galeões no mar , mandou-lhes metter
m^intimentos , e munições , e negociar as
fuílas que havia com muita brevidade ; e
começou-fe a embarcar contra parecer de
todos os Fidalgos, e Capitães por dizerem
que era defcredito do Eílado ir a peíToa
do Governador da índia bufcar hum Capi-
;! táo d'ElRe7 de Camba}^a , o que podia
i fazer outro Capitão com o mefmo poder
(! que levava , e deixar-fe ficar em Goa por
íj opinião do Eíbdo j porque fempre fe ha-
f; via de cuidar antre os inimigos , que íican-
i- do elle , ficava mais cabedal. O Governa-
)j dor por fima de todas as razoes fe em bar-
)| cou , e fe fez á vela entrada de Fevereiro ,
levando íinco galeões , duas galés , e qua-
renta e quatro navios de remo. Os Capi-
tães que foram, nefta jornada nos galeões ,
e galés foram : António de Saldanha , Gar-
cia de Sá 5 António de Lemos , Lopo de
Mefquita , Heitor da Silveira , Simão de
Mello , Henrique de Macedo ; e os Capi-
tães das fuílas adiante nomsaremiOs os maig
deiles. Dando á véla defpedio Heitor da
Cauto, Tom. L P. /. Z §11-
35'4 ÁSIA DE Diogo de Couto
Silveira com todos os navios de remo , pê-
ra que fclTem cingindo a ribeira , e elle com
os galeões , e galés íe foi ao mar. Chegan-
do a Chaul não achou os inimigos , pelo
que defpedio hum navio ligeiro a eípialios :
e dlc com toda a Armada furgio a hum
Ilheo 5 que eílá huma légua ao Norte da-
quella barra. Alixa Capitão mor da Arma-
da de Cambava eílava com toda ella (que
eram feíTenta e quatro galeotas) mettido no
rio de Bombaim , e íabendo da Armada do
Governador defpedio treze fuílas , pêra que
foííbm haver viíla delia. E o dia que o Go-
vernador furgio no Ilheo , lhe appareccram
a balravento , cílando Heitor da Silveira a
terra comi as fuílas furtas. Os inimigos de-
pois de notarem tudo , chcgáram-fe ao Go-
vernador a tiro de falcão , e lhe deram hu-
ma boa falva. Heitor da Silveira tanto que
os vio 5 arrancou donde eftava apôs elles,
que como o viram fe foram recolhendo. O
catur , que o Governador tinha mandado a
efpiar os inimigos ,• chegou o m.efmo dia ,
e lhe diíTe , como todos eílavam mettidos
em huma enceada na boca do rio de Bom-
baim 5 o que fabido pelo Governador cha-
mou todos os Fidalgos , e Capitães a con-
felho 5 e lhes diííe que llie parecia bem fa-
zerem-fc na volta de Dio , porque havia
de eftar fraca aquella fortaleza, e fem gen-
te.
Década IV. Liv. V. Cap. V. 35'5'
te , porque toda andava na Armada , e que
feria muito fácil tomarem-na ; e que os da
dentro quando o viíTem fobre aquella bar-
ra haviam de cuidar que deixava a fua
Armada desbaratada , e que fem dúvida
o não cfperariam , e lhe largariam a forta-
leza 5 e que depois fe bufcariam os inimi-
gos. António de Saldanha , e Garcia de Sá
que votaram primeiro , diíferam que lhes
não parecia bem aquillo , que muito me-
lhor feria ir bufcar aquella Armada , e pe-
lejar com. elía , e que depois de desbarata-
da fe poderia fizer o que elle dizia ; mas
que aíu, vendo Alixá que defapparecia , cui-
daria que lhe fogiam , e cobraria animo, e
voltaria fobre Chaul , que lho feria tão fá-
cil de tomar , como elle o fazia a Dio , e
que feria muito grande perda , e aíFronta ;
que fe não podia fufpeitar que cftiveíre Dio
tão defapercebido , que fe pudeíTe tomar
com a facilidade que dizia : e que também
lhes não parecia bem ir fua peíToa bufcar
as fuílas de Cambaya ; que íe deixaíle alli
ficar , e mandaíTe hum daquelles Fidalgos
áquelle negocio , e que todos o acompa-
nhariam , e que iífo bailava pêra os inimi-
gos; e feria maior credito, e reputação di-
zer-fe , que hum Capitão desbaratara tama-
nha Armada , que não que a peíToa do Go-
vernador fe achara niíTo. Com eíle parecer
Z ii fe
35^ ÁSIA DE Diogo de Couto
fe foram todos os mais Capitães. O que
vifto pelo Governador , deo-lhe a defcon-
íiança de cuidar , que cada hum pertendia
aquella lioiira pêra íi , e tomar-lha a elle ,
e diíle 5 que eJle havia de ir pelejar com os
inimigos 5 e que quem o quizeílb acompa-
nhar "O fizefle : e dcfpcdio dalli Heitor da
Silveira , que foíTe com as fuflas todas dian-
te a pôr-fe na barra , e o Governador á
fua viíla hum pouco ao mar foi demandar
o rio de Bombaim. Eíla noite fe vio liuma
coufa no Ceo maravilhofa , que foi hum fi-
nal branco , e luzente , comprido á feiçáa
de cfpada larga , que corria do Noroeíle a
Suefte , e ficava com a ponta pêra a parte
em que eílava Dio. Os Mouros notaram
ifto a roim final. A eftes cometas chamam
os Gregos Xip]iia , porque xiphos he o
mefmo que efpada : e os que efcrevem def-
tes cometas dizem que sao de cor luzente ,
e que acabam em ponta , como efte tinha ,
que era aquella que cahia fobre Dio. O Go-
vernador amanheceo fobre Bombaim aos
féis de Fevereiro , que foi ao outro dia lo-
go , em que cahio dia de Cinza , e houve-
ram viíla da Armada do inimigo , que ef-
tava na ponta daquella barra. O Governa-
dor metteo-fe em hum navio ligeiro , e foi
correr as noíTas fuftas , e fez a todos huma
muito breve falia , pondo-Ihes diante fuás
obri-
Década IV. Liv. V. Cap. V. 35*7
obrigações, fácil itando-lhes a vitoria, affir-
mando-lhes que eílava íò no commetd men-
to : que lhes mandava da parte d'ElRey ,
que nenlium navio tiraiTe bombardada , fob
pena do cafo maior , ao tempo do commet-
timento , porque íe nao eftorvafTem os ma-
rinJieiros , que os aíFerraíTem primeiro , e
que ganhalTem aquella honra á efpada , por-
que aíli ficaria a vitoria mais formofa , e ao
primeiro que inveftiíTe navio lhe prometteo
cem cruzados , e o navio , tirando artilhe-
ria , encommendando a dianteira a Heitor
- da Silveira , que poz todos os feus navios
em ordem. O Governador receando que os
inimigos lhe fugiíTem pêra o rio de Bando-
ra , que eílava diante meia legua , mandou
a hum Capitão , que tanto que a batalha fe
travaíTe , foífe com oito navios , ( que lhe
norneou , e a quem mandou recado , ) e to-
maífe a boca daquelle rio. Heitor da Sil-
veira efcolheo os melhores navios pêra a
dianteira , de que eram Capitães Diogo
Coelho 5 Gafpar Paes , Francifco Alvares ,
■ João Rodrigues o Chatim , Pedralvares de
Mefquita , António Corrêa , Lourenço Bo-
telho , Chriftovão Lourenço Carracão , o
dalafate de Chaul , Diogo Qiiarefma de
alcunha o Malu , Fero Barriga , António
-Colaço , Chriftovão Corrêa , Jorge Dias , e
António Fernandes j com efte hiam embar-
ca-
35'^ ÁSIA DE Diogo de Couto
cados eíles Fidal8:os CJiriílovao de Mel^
o
lo de Sampaio , íbbrinho do Governador,
D. Francilco de Caftro , João Pereira , Ma-
noel Rodrigues Coutinho , André Calco ,
Francilco de Barros de Paiva , Luiz Couti-
nho , Duarte Coelho , João de Mello, An-
tónio Barbudo , Joáo da Silveira , Maneei
do Carvalhal , Nuno Pereira , Lançarote de
Alpoem. De todos os navios de remo fez
o Governador três batalhas , e nas duas
hiam as duas galés , e pêra as fufras le paí^
íliram todos os Fidalgos , e Capitães da Ar-
mada ; e aíli neíla ordem foram demandar
o rio. Alixá vendo ir os noíTos navios os
fahio a receber com grande determinação ,
e chegando a tiro de bombarda , deram fua
íalva Icm os noííos fazerem cafo delia , com
choverem fobre todos os navios nuvens de
pelouros , e paíTando os no (Tos pelo meio
de rodos eíles perigos, e bombardadas , os
foram aíFerrar , dando-Ihes ao mefmo tempo
a fua ilirriada , de que lhes mataram mui-
tos , inveílÍ!ído-os logo. E o prinieiro que
poz a proa cm huína galcota muito formo-
fa foi António Fernandes , com quem hiam
.embarcados os Fidalgos , que aíllma no-
meámos , onde fe baldeou Jogo Francifco
de Barros de Paiva , que hia no cfporam ,
e da pancada que a fufta deo , tornou a re-
cuar pêra fora , ficando elle fó dentro fo-
bre
I
Década IV. Liv. V. Cap. V. 35-9
bre a poíliça , que cra de apj3cllaçao , onde
íedefendeo com muito valor de muitos que
o commetteraQi. A fuíla tornou logo a fer-
rar a galeota , e os noflbs trabalharam pe-
ja entrar ; nuns foi-lhes mui bem defendi-
da , ficando Francifco de Barros em gran-
de aperto , porque carregavam fobre elle
muitos tiros, c golpes, de que fe defendia
com m.uiro trabalho. O5 noííos trabalha-
vam pelo foccorrer , commettcndo a entrada ,
fobre o que ie fazia huma muito afpcra ba-
taiha , porque os inimigos eram muitos.
Eftando a coufa mui baralhada , acertou de
cahir da meia gavia da galeota dos AIou-
ros huma panella de pólvora na mefma ga-
leota do maíto á poppa , que quiz Deos
délTe em outras , que todas tomaram fogo ,
com que a fuila arrebentou , deitando por
eíTesares a todos quantos nella havia. Fran-
cifco de Barros quiz fua ventura que cahif-
fe dentro na nolTa fuíla ferido de huma
zargunchada. Ficaram mais fendos João Pe-
reira de huma frechada no roílo , D. Fran-
cifco de Caíiro de huma pedrada na cabe-
ça. Heitor da Silveira, que foi dos primei-
ros que abalroaram , trabalhou por chegar
á galeota do Alixá , mas por eftar na reta-
guarda afferrou em outra que logo axorou ,
e o mefmo fizeram os mais Capitães cada
hum á fua, apertando tanto com os inimi-
gos.
3^0 ÁSIA DE Diogo de Couto
gos , que os fizeram Innçar ao mar depois
de mui bem eícalavrados. Aiixá vendo o
eftrago dos íeus mudou-fe a hum navio pe-
<]ucno 5 e tomando o remo foi-fe acoliien-
do. Os mais da ília companhia vendo-o ir ,
trabaliiáram por íc falvar , e feguindo-os
os noíTos 5 03 foram alcançando , e axoran-
do y ficando-lhes dcfta feira nas mãos qua^
renta , e féis galeotas , cm que íe tomaram
oitenta bombardas groíías , e outras miú-
das 5 e das outras foram queim.adas três.
Das quinze que efcapáram re^oiheo Alixá
fete , com que fe foi pelo rio dentro até
Taná , as outras fe mettéram pelo rio de
Nagotana , onde foram tomadas pela gente
do Meiique Rey de Chaul. Venceo-fe eíla
batalha ícm cuíiar da noíTa parte mais que
hum homem que cahio ao mar. Perderam^
fe dos inimigos antre m.ortos , e cativos oi^-
tocentos homens brancos Turcos Rumes ,
e mais de duzentos bombardeiros , e da
gente da terra mais de dous mil. Foi cou-
fa milagrofa , que o cometa , com fer dia
claro 5 fempre appareceo no Ceo até aquella
Jiora que fe a batalha venceo , que fe eC-
condeo. O Governador Lopo Vaz de Sam-
paio deo muitas graças a Deos por tama-
nha m.ercê , e armou muitos Cavalleiros ; e
pondo em confelho dos Capitães fe volta-
ria pêra Dio com tamanha vitoria , cuja fa-
ma
Década IV. Liv. V. Cap. V. 3Ór
ma hnvia de ter os inimigos erpantados , e
atemorizados , foram muitos de parecer que
ílm ; mas Garcia de Sá , e António de Sal-
danha foram do contrario , antes lhe reque-
reram da parte d^ElRey que não roubai^
fcm a honra a Nuno da Cunha , que vi-
nlia fó áquelle negocio , pedindo ao Secre-
tario que lhe déíTe inftrumento daquillo , e
o Governador também lhe pedio outro , de
como quizera comm.etter aquella jornada,
e que os feus Capitães lha eílorvárani. E
certo que fe entendeo que fe voltara a Dio ,
tomara aquella fortaleza , fegundo todos fi-
caram quebrantados com a perda de tama-
nha Armada , em que elles tinham toda íua
força , e cabedal. Vendo-fe o Governador
contrariado , determinou de ir dar em Ta-
vÁ , e deílruir aquella Cidade , pêra dar
hum íacco grande á fua gente , por irem
cheios de honra , e de proveito ; e cami-
jihando com todas as fuílas pelo rio den-
tro , lá nos paíTos que são perigofos , deo
cm fecco toda a Armada , onde ficou aquel-
la maré a riíco de fe perder , trabalhando
todos até lhes rebentar o fangue das mãos,
A alguns Capitães que ficaram em nado ,
deo-fe-lhes pouco do trabalho em que o
Governador eílava , porque como efpera-
vam por outro novo , já lhes não tinham
muito reípeito. Como a maré tornou a cur
cher ,
3Ó2 ÁSIA DE Diogo de Couto
cher , alevantáram-fe os navios do íccco , e
fahíram-le pcra fóra. O Governador por
não experimentar outra deíobediencia , e
por fer já fim do verão , determinou de fe
ir pêra Goa , deixando Heitor da Silveira
com vinte e lete navios de remo pcra fi-
car na cofta de Cambaya , fazendo toda a
guerra que pudeífe , e eIJe fe recolheo a
Chaul 5 e daíli a Goa.
CAPITULO VI.
J)a guerra que Heitor da Silveira fez na
cofia de Cambaya : e de como defiruhto
a Cidade de Bacaim , e as Vi i las de
Tand , Bombaim , e outras : e do que o
Governador Lopo Vaz de Sampaio fez
em Goa , e do que aconteceo no Ma lavar.
Artido o Governador Lopo Vaz de
__ Sampaio pêra Goa , determinou Heitor
da Silveira de ir tomar huma fortaleza af-
faítada da agua duas léguas por aquelle rio
de Nagotana dentro , em que cftava hum
Capitão d'ElRey de Cambaya com feiscen-
los homens de cavallo , e dous mil de pé ,
.€ indo demandalla não pode chegar a ci-
la , porque o eílreito que entrava até lá era
baixo , e de pouca agua ; mas defembarcan-
do onde pode chegar a Armada , queim.ou
•féis povoações muito grandes que havia na-
^ quel-
Década IV. Liv. V. Cap. VI. 363
quclla parte cm que dcfcmbarcou. O Capi-
tão que eílava na fortaleza foube de como
os noíTos andavam em terra , acudindo com
toda a gente que tinha , foi a tempo , que
os noíTos tinham já tudo feito , e fe come-
çavam a embarcar. Os de cavallo que hiam
diante remettêram a elles com grandes gri-
tas , e apupadas , chamaudo-lhes nomes.
Heitor da Silveira, que ainda eftava em ter-
ra , foi-ihe forçado fazer roílo aos ir.imi-
gos , pêra terem os feus tempo de fe em-
barcarem ; e tomando cem cfpingardas, te-
ve-ihes o encontro , derribando-ihes alguns ,
com que os fizeram parar. Hum foldado
dos noíTos , homem não conhecido , e fem
nome , (a que muito defejámos de o faber ,
•pêra lho darmos muito honrado neíla hif-
toria 5 ) adiantando-fe hum pouco com hu-
ma lança , e rodela, efperou hum Mouro
de cavallo a pé , que des que vio nelle
romper feu encontro com a lança alta , o
foldado correo a fua , e o tomou por de-
baixo do braço da lança , e paílando-o to-
do, deo comelle no chão; e ainda não eí^
tava bem nelle , quando já o foldado ( que
lhe levou logo as rédeas do cavallo na
mão) faltou em fima com muita ligeireza ,
e ar ; e enreftando a lança , voltou a outro
de cavallo que remettia com elle , e o le^-
vou pelos peitos ^ dando com eile de per-
nas
364 ÁSIA DE Diogo de Couto
nas aíUma muito mal ferido , a que os nof-
fos deram huma grande apupada , e logo
furriada da eípingardaria. O foldado em
derribando o Mouro , rcmctteo ao cavallo ,
■e o tomou pelas rédeas , e com muita con-
fiança fe veio recolhendo pêra Heitor da
Silveira 5 cavalgado em hum, e com outro
a deftro ; e chegando a elle lhe pedio o ar-
maíTe Cavalleiro , o que elle logo eftava.
Louve agora Livio o ícu Marco Corvino ,
por matar hum Francez em defafio , por
■cujo feito lhe mandou Oftaviano Augufto
alevantar eítatua em meio de feus apofen-
tos. Engrandeça o feu Torquato pelo co-
lar que tomou a outro , que cu não farei
mais que contar íingclamente efles , e ou-
tros feitos fem.elhantes , mais dignos de eí^
tatuas , que os dos feus Romanos. Mas o
tempo que deixo de gaitar em íeus louvo-
res 5 gaílarei em eftranhar o defcuido dos
Rcys nefta parte , que a eítes taes nem com
eílatuas , nem com pão fatisfízeram nunca
feus feitos : pelo que muitos , e muito va-
Jerofos Cavalleiros , que obraram façanhas
dignas de memoria eterna , eftam hoje tão
poílos em efquecimento , que até os nomes
ie lhes não fabem , como a eíle noíTo Ca-
valleiro , que por eíle feito não teve mór
galardão , que em quanto Lopo Vaz go-
vernou depois diílo chamar-lhe o feu Ca-
vai-
DECá.©A IV. Liv. V. Cap. VI. ^6^
valleiro , e tello na Igreja apar de íi em pé ;
e depois que acabou , pode bem fer que o
acabaíTe também a fome. E tornando a Hei-
tor da Silveira , com aquella boa ventura
do Toldado carregou fobre os inimigos , e
os fez affaftar , e elle , e todos fe embarca-
ram a feu falvo , e fe tornaram a fahir do
rio. Dalli foram pela cofta aílima até a Ci-
dade de Baçaim do Reyno de Cambava , c
chegando áquella barra , mandou Heitor da
Silveira fondalla , e reconhecer o fitio da
Cidade por Chriílovao Corrêa Capitão de
humBargantim , que foi entrando pelo rio,
e notou que antes de chegar á Cidade ef-
tava huma tranqueira de madeira de duas
faces entulhada com três baluartes grandes,
e fortes , em que havia feíTenta peíTas de
artilheria ; e por huma almadia que tomou
foube eftarAlixá Capitão das galeotas , que
depois de desbaratado fe recolheo áquella
Cidade , e a fortificou , com receio que o
Governador foíTe dar nella , e ajuntou três
mil homens de pé , e quinhentos de cavai-
lo que comíigo tinha. Informado Heitor da
Silveira de tudo , poz em parecer dos Ca-
pitães fe daria na tranqueira , emi quanto o
confelho durou , os foldados da Armada
todos bradavam que deííem na Cidade , e
concluio-fe que fe déíTe , e negociando-fe
pêra de madrugada defembarcarem , tanto
que
366 ÁSIA DE Diogo de Couto
que rompco a alva , entraram os noíTos pe-
lo rio dentro , e chegando á tranqueira ,
que eftava eftcndida de longo da praia , em
que haviam de deíembarcar pêra commet-
terem a Cidade , puzeram os proizcs em
terra por meio de muitas , e mui amiuda-
das bombardadas , que lhes atiravam dos
baluartes : e os primeiros que faltaram em
Terra , foram duzentos Canarins , que fica-
ram na Armada, de que era Capitão Malu ,
Mocadao mor dos marinheiros , que Hei-
tor da Silveira lançou diante pêra quebra-
rem nelles aquella primeira furriada dos ini-
migos , que deo por antre elles fem IheS'
fazer damno. Heitor da Silveira defembar-
cou muito á fua vontade, mandando dian-
te hum Capitão com huma companhia pê-
ra comm.etter as tranqueiras , e dle com a
bandeira de Chriílo , e toda a mais gente
foi na retaguarda. Chegados os noílos á
tranqueira , a commettêram com muito ani-
mo , achando os de dentro poftos em de-
fensão , antre quem fe ateou hum.a muito
crefpa briga , de que os de dentro ficaram
de ventagem , porque de fima lançavam fo-
bre os noíTos toda a coufa que achavam de
páos 5 pedras , fogo , pólvora , e todos os
mais inílrumentos mortaes ; os noíTos fem
temerem coufa alguma ás efpingardadas , fi-
zeram aíFaflar os Mouros de alguns lugares
com
Década IV. Liv. V. Cap. VI. 367
com morte de alguns , com o que outros
muitos ajudados huns dos outros cavalga-
ram pelos lugares vaíios a tranqueira, e de
fíma appellidáram Portugal ^ Portugal, Os
Mouros vendo os nolTos em íima largaram
tudo , e fe recolheram á Cidade até onde
os noíTos os feguíram , entrando de volta
com ellcs. Alixá não eílava na tranqueira ,
porque entendendo , que fe os noíTos def-
embarcaííem a haviam de cavalgar , foi-fe
pôr em íilada fora da Cidade , porque quan-
do os noíTos accommetteíTem lhes fahiflem,
e os desbarataíTem. E aííi foi, que indo os
noíTos no alcance dos feus até a Cidade ,
arrebentou da íilada com a gente de ca-
vallo , e detrás toda a de pé , e foi deman-
dar os que entravam na Cidade. Heitor da
Silveira que eílava fora , vendo os inimi-
gos tocou a recolher , e ordenou hum eír
quadráo com toda efpingardaria á roda ,
ajuntando todos a íí , que logo voltaram,
tanto que fentiram os inimigos , e aíli fe
poz com propcfito de pelejar com qWq* Ali-
xá cuidou que os noíTos fugiam , vendo-os
recolher ao efquadrao , e os foi feguindo
até chegar a Heitor da Silveira , que os de
cavallo foram commetter com grande de-
terminação , cuidando que rompeíTem o ef-
quadrao ; os noíTos defparando fua arcabu-
zaria , derribando muitos , fizeram voltar os
maisj
368 ÁSIA DE Diogo de Couto
mais ; porque os cavallos com o eílrondo-
efpantados voltavam pêra trás rompendo os
feus de pé , que vinham, chegando , e aíli
huns 5 e outros fe desbarataram deitando a
fugir , e ícm pararem na Cidade fe foram
recolhendo huns pêra a ferra , outros pêra
outras partes. Os noííos não os quizeram^
fcguir por eftarem can fados , e m^andando-
os efpiar 5 fabendo que defamparáram a Ci-
dade, a entraram, e faqueáram , roubando
muita fizenda , ouro , e prata , porque ef-
tava rica , e profpera ; e depois de fe far-
tarem bem 5 lhe puzeram fogo em que toda
ardeo. Heitor da Silveira efteve fempre á
porta com a bandeira de Chrillo , e tocan-
do a recolher foi-fe a tranqueira , e man--
ííou embarcar toda a artilheria delia , e pu-
deram fogo a tudo , que ardeo até os ali-
ceíTes. No rio tomaram três Taurins carre-
gados de madeira mui formofa , que logo
mandou pêra Goa , que o Governador efti-
m.ou pêra o concerto das Arn^iadas. Os Ta-
jiadares vizinho? ficaram difto tão amedron-
tados , que o de Taná mandou oíferecer a
Heitor da Silveira quatro mil pardaos de
páreas cada anno , que lhe dle acceitou , de
c[ue fe fizeram papeis, que não apparecem,
nem são neccííarios , porque o direito fe-
nhorio deílas terras ficou depois melhor pe-
la doajão j que o Sokao Badur Rey de
Cam-
Década IV. Liv. V. Cap. VI. 369
CcUiibaya fez delias aos Reys de Portugal V
coií.o adiante diremos. Heitor da Silveira
deo outra volta pela eiiceada de Cambaya ,
e deieinbarcou em alguns lugares que def-
truio, e abrazou 5 e como foi tempo fe re-
colheo a invernar a Chaul. O Governador ,
tanto que chegou a Goa , defp^chou Garcia
Deca pêra ir entrar na capitania de Mala-
ca , mandando provimentos pêra Maluco ;
c pêra Ormuz mandou três galeões carre-
gados de fazenda d'ElRey y de que eram
Capitães D. Francifco Deca , António de
Lemos , e Lopo de Mefquita. António de
Miranda fabendo no Malavar,- onde anda-
va 5 que no rio de Chael cila v a luima náo
carregada de pimenta , entrou dentro , e a
tomou 5 e tirou pêra fora , e a maqdou a
Cochim 5 e queimou aquella povoação , e
quatro paraos que eftavam varados , e to-
mou outros quatro que eRavam no rio ; e
depois deíle fucccíTo , andando correndo a
coíla , fuccedeo andar Chriftovão de Mello
ao longo da terra com a ília galé , e féis
navios mais ,e António de Miranda ao mar
dclle , não fabendo os Mouros do Capitão
inór , e vendo aquella g^lé , e poucos na-
vios de longo da terra , armaram fincoenta
paraos , e o foram demandar. Chriftovao
úe Mello tanto que liouve viíla delles , foi-
íe remando pêra o mar , alli pelos aíFaftar
Couto,Tom,LF,L Aa da^-
370 ÁSIA DE Diogo de Couto
da terra , como pêra clicgar ao Capitão mor;
Os inimigos cuidavam que lhes fugia , e
foram-no fcguindo até haverem viíla do
Capiráo mor , que vendo aquella Armada
ir apôs a noíla , como tinha o balra ven-
to , dando á véla defcarregou fobre eWes .,
é o meímo fez Chriftovao de Mello. Os
inimigos vendo o Capitão mor ficaram em-
baraçados , e voltaram pêra a terra ; Chri-
ílovao de Mello 5 que lhes ficou mais perto ,
lhes chegou com léus navios , e pondo-lhes
as proas os foi axorando , ficando-lhes nas
mãos quatorze navios , e os mais por ligei-
ros efcapáram. Eíla vitoria foi a derradeira
defte verão , e Chrifrovâo de Mello fe re-
colheo a Goa , e António de Miranda a
Cociíim.
CAPITULO VIL
De como ChrifÍGvão de Islendoça CâpitãQ
de Orynu% majídou António Tenreyro por
ierí^a ao B.eyno com as no'xias das chalés ,
e da jornada que efte homem fez pelo
deferi o de Arábia : e de como chegou ao
Reyjio ^ e ElRey viandou Manoel.de Ma-
cedo a Onnuz a prender Rax Xarrafa,
A Trás temos dito como Chriílováó
de Mendoça foi entrar na capitania
'de Ormuz, levando- em fua companhia Rax
f
Década IV. Lrv. V. Cap. VII. 371
Xarrafo , que como era homem alterado ,
e foberbo , tornou logo a uíiir de lua na-
tureza , e a le levantar contra Ellley, re-
volvendo aquella Cidade , e tyrannizando-a ,
pelo que deixavam as Cáfilas de vir a ella,
e a Alfandega a render menos. E porque
no meímo tempo em que chegou a Ormuz
luccedco o caio de Rax Soleimao , porque
fe desfez a Armada , que era fahida contra
a índia , pareceo-llie a Chriílovao de Men-
doça obrigação avifar ElRey de tudo , ef-
crevendo-Ihe aíli ifto , como as coufas de
Rax Xarrafo ; e elegeo pêra efta jornada
hum António Tenreyro, natural de Coim-
bra , homem nobre , que já fora com Bal-
thazar PeiToa ao Xeque límael , donde to-
mou o caminho pêra Jeru falem , e foi pre^-
zo pelos Turcos , cuidando fer efpia , e le-
vado ao Cairo , onde foi depois folto , e
dalli pníTou a Chipro 5 e por hum cafo que
lhe naquella Ilha aconteceo , fe tornou pê-
ra a índia ; e deíbrabarcando em Trypolí
atraveíTou o deferto , e foi ter a Baílbrá ,
e dahi a Ormuz , onde havia pouco que
era chegado deíla jornada. Eíle homem lá-
bia bem a lingua Turquefca , c Perfica , e
pelo muito que importava Icvar-fe recado
a ElRey , acceitou a jornada , e a vinte deC*
te Setembro paflado partio de Orm.uz pêra
.BafTorá ^ até onde poz quarenta dias , por
Aa ii cau-
'372- ÁSIA DE Diogo de Couto
caula dos ventos qne achou contrários. Nef-
ra Cidade íe deteve vi;;te dias, porque níío
achou já a Cáfila que hia pcra Damaíco ,
,e o Xeque que era nolTo amigo o não que-
lia deixar atraveíTar o delerto fó, nem dar-
]he pêra iíTo guia ; e foi tão importunado
delle , que lha houve de conceder. E com-
prando duas camelas de leite , huma pêra
clle 5 outra pêra o Piloto , provendo-fe de
mantimentos , de tâmaras , bifcouto , fari-
nha 3 alguma carne de fumo , e odres de
agua 5 partiram entrada de Novembro deíle
anno de vinte e nove , depois de meia noi-
te , porqiie não foííe viílo. Caminhando o
que reíiava delia , ao outro dia íe mettêram
por aquelle efpantofo deferto , por onde tu-
do o que alcançavam com os olhos eram
4iuvens , e ferras de aréas foltas , e movedi-
:ças , que com qualquer vento eram levadas
de huirja parte pcra a outra , como fazem
as, ondas do mar com grandes tempeíladcs,
"não encontrando por todo o caminho fe-
não urfos , tygres , Icóes , lobos , e alimárias
iravas , de que Deos fempre os guardou,
governando-fe o Piloto pela ellrella do Nor-
te de noite, e de dia por algumas balizas
'que os caminhantes tinham poílas em para-
gens que os ventos as não pudeíTcm. arran-
.car^ e aíli caminhavam vinte c iinco léguas
,por dia ^ dormindo em íima das cameíasf,
"..,-/j . 011-
Década TV. Liv. V. Cap. VIL 373
onde também comiam , fem fe defcerem ,
alli par amor das alimárias bravas , e feras,
eomo por fe não enterrarem , e fiur.irem
naquelle mar de áreas ; dando a cada ca-
mela Jiuma quarta de farinha hiima vez aO'
dia , e alguma pouca de agua , e cada qua-
tro , finco dias as fartavam delia em char-
cos, que a paragens havia em partes duras,
e feccas , em que as aguas do inverno fe re-
colhiam. E em certas paragens como cilas
fe acham alarves , grandiílimos ladroes , que
vivem de faltear as Caiilas. Ao derredor
deíles charcos fe criam alguns cardos bra-
vos de que as camelas comiam. António
Tenreyro foi commettido duas vezes das
alimárias , de que Dcos , e a ligeireza das
camelas o livraram. E huma madrugada
fugindo á rédea folta de dous leões , corre-
ram daquella feira duas léguas , ficando a
camela de António Tenre}^ro manca de hum
pé dum eftrepe que fe lhe metteo , e foi-lhe
forçado deter-fe , defcer-fe , e tirar-lho , c
curallo como pode , e deíla feira efreve três
dias fem caminhar, e no cabo delles torna-
ram á fua jornada , padecendo grandes fó-
ines , fedes • e medos; e a cada oito dias
achavam aquellas partes feccas , em que fe
refaziam de agua ainda que roim , e em
cada huma delias fe detinham hiUm d;a,
por dar folga ás camelas. Em duas partes
def-
/
374 ÁSIA DE Diogo de Couto
<ieftas achdram dous CapLoIios arruinados ,
onde já íc agazalháram Alarves ; e a cabo
de vinte e dons dias de camiiiho chega-
ram a huma pequena Villa acaftellada , cer-
cada de muro , e taipas groíTas , c povoa-
da de Alarves , na entrada -delia eílava hu-
ma fonnoía fonte , de que regavam íuas
fementeiras , e por derredor havia alguns
palmares de tâmaras. Aqui acharam huma
Cáfila já de caminho pêra Damafco , em
que fe mettco António Tenreyro , defpe-
dindo dalli o Piloto , tendo-lhc bem pago
leu caminho. Eíle dia qu^ partio a Cáfila ,
foram dormir a outra fortaleza perto , e
deíla a quarenta léguas fahíram do deferto ,
e entraram peias terras de Alepo Cidade
grande de Soria , cercada de muros , proC-
pêra de tudo , povoada de muitos , e mui
ricos mercadores , que alguns prcfumem que
foíTe edificada das relíquias da muito antiga
Hierapoiy de Alepio Prefeito do Empera-
dor Juliano , c que dclle tomou o nome.
Mas o Bifpo D. Ambroílo , PenitcPjciario
que foi do Papa Júlio Terceiro , que veio
á índia por l\nx]uia , e Arábia , e eíieve
jieíta Cidade de Goa no Convento de S.
Domingos , de cuja Ordem era , homem
douto nas letras Divinas , e nas línguas
Chaldea . e Arábia , diíle que quando Deos
livrara Abrahao de Ur Cidade dos Chal-
de- ■
D-ECADA IV. Liv. V. Cap. vil 37J
deos , fora ter a Alepo Cidade cabeça de So-
ria ; e como trazia muitos gados, eera ho-
mem de grande caridade, eílando aqui apo-
feiuado dava cada dia aos pobres do Jeitç
de íciis gados , e tinham já eik ração por
ordinária , que acudiam pela manhã aos
criados de Abrahao , e lhe perguntavam ,
Je/ep , que na língua Chaidca quer dizer,
ordinhajle jd ? e que daqui íicou eíle no-r
me a ella Cidade ; e que os melmos Ará-
bios doutos de Alepo , que aíli o tinham em
fuás efcricuras , e que lem dúvida cila Ci^»
dade fora habitada , e fenhoreada de Abra-
hao. lílo contava clle aos Padres de S. Do-
mingos 5 de quem o nós foubemos. Eftc
Biipo morreo em Cochim , indo-fe embar-
car pêra o Reyno , e fegundo a noíía lem-
brança em tempo do Conde do Redondo.
Aqui nefta Cidade fe deixou ficar António
Tenreyro pêra cfperar por hum Venezea-
no chamado Micer Andreas pêra quem le-
vava cartas , e lerras pcra JJie dar dinhei-
ro , e aviamento pêra paílar á Europa , que
era ido a Gonttantinopla , e ficou efperando
por elle ; e também porque o inverno era
grande, e de grandes neves eíleve aqui trin-
ta ciias , até vir Micer Andreas , que o
aviou , e fe raetteo em huma Cáfila que hia
pêra Tripoli de Soria , onde fe embarcou ,
e foi ter a Chipro , e dalli fe pafibu a Ve-
ne-
37^ ÁSIA DE Diogo de Couto
«eza 5 paíTando muito grandes rrabailios , e
tormentas ^ e tomando o caminho por ter-
ra 5 chegou a Portugal pouco depojs de ier
partido Nuno da Cunha pêra a índia. Ei-
Rey eítimou muito as cartas de Chriftovao
de Mendoça , e as novas das galés ferem
defarmadas ; e por faber que por terra , e
em eípaço de três mezes podia ter recado
de Ormuz , porque nao poz eile homem no
caminho ordinário mais , que todo o outro
tempo foram detenças por impedimentos
que Jhe fuccedéram. Eíla viagem , e che-
gada de António Tenreyro poz grande es-
panto no Reyno , por íer o primeiro que
a commctteo fó com hum Piloto. Succe-
■deo-lhe no cabo de todos ePres trabalhos ,
que o primeiro dia que chegou ao Reyno,
que eíleve com EIRey até bem de noite ,
dando-Ihe novas da índia , fahindo dos Ef-
taos onde Eillcy pouíava pêra ir defcan-
çar , indo Tcílido em hum alberiioz , que
todo o caminho levou , íaltáram com elÍQ
no Rocio 5 c lhe deram dczeíere , ou dezoi*
to cutiladas , e eílocadas , de que o deixa-
ram por morto , e foi dalli levado , e cu-
rado. Soube-o lo^o EiRev , mandou ao
feu Surgião mor que o curaíie como fua
pefToa 5 e que fe inquiriíTe aquelle negocio ,
fobre que as Juftiças fizeram mui grandes
.diligencias ^ lem fe alcançar coufa alguma ,
nem
Década IV. Liv. V. Cap. VIL 377
nctii elle íiifpeitou nunca donde lhe aquilla
podia vir. Viveo eíle homem depois ; mas
íicáram-Ihe algumas fontes que lhe purga-
vam, em que trazia canudos de prata. Apo*
fentou-fe em Coimbra onde calou , e vi-
veo de tenças , e comedias , que lhe ElRey
deo. Ellley pelas novas que teve das in-
quietações do Guazil , vio que lhe era ne-^
ceíTario acudir ás coufas de Ormuz primeiro
que Rax Xarrafo acabaíTe de as damnar;
pêra o que mandou ordenar huma náo pê-
ra partir em Outubro pêra a índia , porque
determinou de mandar prender Rax Xarra-
fo j e levallo pêra o Reyno ; e eíle nego-
cio encarregou a Manoel de Macedo , que
chegou da índia nas náos da viagem , de-
pois do Tenreyro chegar , pelo ter por ho-
mem determinado pêra todo o negocio , e
lhe deo por regimento que foíTe tomar Or-
muz , e como entralTe do eílrcito da Perfía
pêra dentro abriíTe hum regimento que le-
vava , e que fizeíTe o que lhe nelle manda-
va 5 porque nem delle quiz fiar aquelle ne-
gocio por fe não vir a romper. Eíla pref-
fa , e fcgredo metteo em confusão Triílao
da Cunha , pai de Nuno da Cunha, por-
que fez todas as diligencias poíliveis por
faber ao que hia Manoel de Macedo , fem
nunca o poder alcançar. Pelo que efereveo
Jiuma carta por elle ao filho ^ que continha
eC-
378 ÁSIA DE Diogo de Couto
eftas palavras : » Filho Nuno , lá vai huni
» mancebo em huma náo mui apreíTado por
y> mandado d'ElRey , nunca pude íaber ao
» que vai , deixa-lhe fazer tudo o que lhe
» ElRev manda , íem lhe ires á mao a cou-
)) fa alguma , manda pimenta , e deita-te a
)) dorm.ir. » Ha-fe de íaber , que Triftao da
Cunha a todos os Icus iilhos nomeava pe-
los nomes , e fobrenomes , e llies faliava
por vós ; lo a Nuno da Cunha com íer
o mais velho Veado r da Fazenda d' El-
Rey 5 do íeu Conlelho , e Governador da
índia , nunca o nomeou fenao por Nu-
no, e não lhe fallou fenao por tu. Manoel
de Macedo deo a vela em Outubro , e de
fua viagem adiante daremos razão.
CAPITULO VIII.
Das coufas que aconteceram em Malaca
. até chegar Garcia de Sâ : dos ardis de
que o Acheyn tifou com Fero dic Faria ,
' : por ^cer fe podia colher em Jeu porto
algum navio : e de outras coufas
que mais paffãram,
COm a tomada da galé de Simão de
Soufa , como atrás temos contado , fi-
cou o Achem muito foberbo ; e como era
maliífmio , e falfo , parcceo-lhe que podia á
con-
Década IV. Liv. V. Cap. VIII. 379
conta daqiiclles Portuguczcs que tinha ca-
tivos , colher naquclle porto algum navio
noílb pcra o tomar. Pêra ilTo determinou
de ufar de ardis , e manhas com o Capitão
de Mahica , como logo diremos. Andava
elle ncPce tempo cm guerra com ElRfy de
Aru 5 que era* noíTo amigo, e como eííe ti-
nha mandado a Malaca a pedir íbccorro ao
Capitão , do que logo o Achem foi avifa-
do 5 e receou que com o noíTo, íoccorro
lhe déiTe aquelle Rey grandes trabalhos ,
pelo que determinou de ataliiar , e eítorvar
o foccorro que mandava pedir. E toman-
do hum dos Portuguezes cativos da galé
de Simão de Soufa , chamado António Cal-
deira 5 com outro companheiro , liies deo
hum bantim , mandando-lhes que foíTem a
Malaca , e diíTeflem da fua parte ao Capi-
tão 5 que elle defejava miuito de ter com elle
paz , e amizade , e que pêra princípio del-
ia lhe queria dar todos os cativos Portu-
guezes , e a galé com toda a fua artilheria ,
e a que tomara na fortaleza de Pacem , e
a de huraa náo noffa que dera á cofta , e
que bem podia mandar logo por tudo. Che-
gado efte homem a Malaca , ( ellando na-
quella Cidade o Embaixador d'ElRey de
Aru 5 com prom.ettimentos da ajuda que pe-
dia 5 ) e dando recado ao Capitão Pêro de
Faria , que o grangeou muito , parecendo-
Ihe
380 ÁSIA DE Diogo de Couto
íhe que Deos lhe abria o caminho pêra ha-
ver aquellas coufas cm que ganhava mais
que no íbccorro d'EIRey de Aru , que já
negociava , rendo commcttida aquella jorna-
da a Diogo de Macedo Capitão mor do
mar fle Malaca , que eftava com toda a Ar-
mada que tinha no mar , peio que determi-
nou de a recolher , e fazer pazes com o
Achem. Ifto níio pareceo bem a Martiin
Corrêa , que conhecia a maldade daquelle
Rev 5 e dilíe a Pêro de Faria que tanto of-
fereciraento parecia invenção , que aquilio
era mais elpiar a fortaleza , que commctter
pazes , e ver fe dava foccorro ao Rey de
Aru 3 pêra o fazer ibbreeílar nclle ; porque
bem fabia ellc a grande caufii que havia
pêra eílarem cfcandalizados delle pela to^
mada da galé ^ e que forçado fe havia de
tratar de latisfaÇvío , e vingança por todas
as vias : que eile havia de temer , e arre-
cear que a mor , que por então fe podia
tom.ar delle , era dar-fe ajuda a Elllcy de
Aru pêra o poder desbaratar , e que enten-
deiTcm que Mouros nao commertiam nunca
pazes 5 fenao por intereflc , ou neceííidade ,
e que edn nao tinha elle agora por parte
dos Portugueses , mas que receava tella , fe
mandalTe Armada contra cWe ao Aru ; e que
tantas promeíTas juntas fem ver ainda o fia-
gello fobre fi , era coufa que dava bem a
1 en-
Década IV. Liv. V. Cap. VIII. 381
entender fua tenção. Eílas razoes parece-
ram bem a Pêro de Faria , e dilTe a Antó-
nio Caldeira perante o inelmo Martim Cor-
rêa j o que lhe tinha dito , pedindo-llie que
lhe diíTelTe o que íbfpeirava , q [q [c podia
arrecear lerem aquilio invenções do Achem ?
António Caldeira lhe diííe que o que en-
tendia eram tamanhos defejos no Achem
de pazes , que fem dúvida daria tudo o que
tinha oííerecido ; e quanto a elle em ne-
nhuma forma deixaria de fe tornar pêra el-
le, pela vontade que íentia pêra com todos
CS Portuguezes , e porque lho promettéra ,
que lhe déííe refpofta , porque logo havia
de voltar. Com eíla confiança defte homem
ficou Pêro de Faria mais crente que o Achem
lhe fallava verdade. Pelo que determinou
de acceitar as pazes , porque defejava de
haver ás mãos os Portuguezes , e tanta ar-
tilheria como lhe ofierecia , pelo que o def-
pachou logo 5 e efcreveo ao Achem que ac-
ceitava fua amizade em nome d'ElRc7 de
Portugal , e que dalli por diante o havia
por amigo^ e que como a eíTe , o ajudaria
em tudo o que lhe foíTe neceíTario , e que
logo mandaria pelos Portuguezes , e mais
coufas 3 e que não favoreceria ElRey de
Aru , e que logo mandaria recolher a Ar-
mada que pêra iíTo tinha preíles , e mandou
com eílc homem hum cafado de Malaca-^
aue
3^2 ÁSIA DE Diogo de Couto
-que ftbiu a lingua Malaya , com prociira-
-çoes baílaiitcs pera aíTentar as pazes com o
Acliem , raandando-lhepor eile algumas pe-
^as 5 e brincos. Eftes homens foram romar
himia liha na cofta do Achem, , que era po-
voada de Mouros , que vendo os dous Por-
-tuguczes fós os mataram. O Em.baixador
■:de Aru que cíiava em Malaca ciperando
-pelo íoccorro defpedio Pêro de Faria com
-deículpas pera ElRey de lhe nao mandar
-foccorro , porque pera Iiaver aquélles Por-
tugueses , e mais couías que o Achem of-
fcrecia , lhe era aíli necelTario ; mias que el-
•le era leu amigo , e aíH o moftrarla em to-
das fuás coufas que lhe cumpriflcm. Com
eíla refpofla íè foi o Embaixador deícon-
Tcnte , e fe embarcou fem fe defpedir de
-Pero de Faria , de que elle ficou hum pou-
co pejado , porque defejava de poupar a
amizade deíle Rey , porque era muito fícl
amiigo ; pelo que logo defpedio Fernão de
Moraes 5 que aili cílava por Capitão de hum
galeão , pera fe ir ver com aquellc Rcy,
e tempera lio , e dar-lhe fatisfaçoes das cau-
•fas por que então o nao ajudara contra o
Achem. Fernão de Moraes chegou ao por-
to de Aru poucos dias depois do Embai-
xador , c como ElPvey eílava tomado de
Pero de Faria , mandou que nenhuma pef-
,.jba foiTe abordo do galeão. Fernão deMo-
> raes
Década IV. Liv. V. Cap. VIII. 385
raes eílcve quatro dias fem vir recado da
terra , pelo quê entendeo que naícia aquil-
]o do aggravo d^EIRcy ^ e como era ho-
mem de muito animo , muito arrifcado ,
contra o parecer de todos fe metteo em
iium balão com alguns criados , c foi a
terra , e caminhou pêra os Pa^os , e entran-
do muito confiado aonde eílavaEIRey, lhe
fez fua cortezia. ElRey vendo aquella con-
fiança o agazalhou com bom roílo ; Fernão
de Moraes Jhe deo todas as fatisfaçoes que
pode 5 c CS reípeitos por que Pêro de Faria
o não ajudava por então contra o Achem ,
€ que quanto as obrigações que lhe tinham ,
cíías lhe não podiam negar , porque bem
fabiam quão leal amigo fora fcmpre do
Eílado. EIRcy pareceo por então que fica-
va defalivado com o que lhe elle diíTe ,
mas era ao contrario , porque o efcandalo
que dentro tinha era tal , que determinou
de prender a Fernão de Moraes , e tomar-
Ihc o galeão j mas quiz por então diíUmu-
iar até ver o que fuccedia á fua Armada ,
'que havia poucos dias era partida a Pacein
a bufcar a do Achem ^ porque fe vieíTe com
vitoria 5 então fiiria o que determinava , e
quando não , pela neceííidade diíTimuíaria;
c por efta razão deteve Fernão de Moraes
oiro dias , fem no galeão fe fabcr novas
■delle , e o tinham já por morto , e eílive?-
ram
384 ÁSIA DE Diogo DE Cou Ta
ram algumas vezes pêra fe irem pêra Ma-
laca. Paliados eftes dias chegou a Armada
d'ElRey, que teve com a do Achem huma
grande batalha , de que íc aparrárani lera
vitoria de nenhum : eíla Armada trazia ou-
tro Portugr.ez dos que cfravara no Achem,
que o meimo Rey torjiava a mandar a Pe-
IO de Faria , porque lhe tardava o recado
de António Caldeira , e lhe mandava por
€Íle dizer que mandaíle logo bufcar a galé ,
e Portuguezes , e artilhcria: eíle Poriuguez
foi tomado cm hum balão. Vendo ElPvcy
a Arm.ada lem vitoria , lançando fuás con-
tas 5 vio que lhe não vinha bem quebrar
com os Porruguezes , porque pela ventura
os haveria ainda mifter , ou ao m.enos por-
.que fe não ajuntaíTem com o Achem , pelo
que largou Fernão de Moraes , e lhe deo
,0 Portuguez. Fernão de Moraes chegou ao
galeão 5 onde achou todos defconfíados del-
Je 5 e fazendo-fe á vela pêra Malaca , deo
.conta a Pcro de Faria de tudo o que lhe
íiiccedeo. Os Reys ambcs como eram Mou-
;ros iiouve pouco que fazer em fe concerta-
,rem fazendo pazes , com cócegas que am-
•bos tinham hum do outro do favor dos
•Portuguezes. E como o Achem fe vio def-
apreliado , não quiz mais nada de Pêro de
'Faria , oue fem dúvida fe acudira com hu-
Tna Armada áqucile negocio 3 houvera-lhe
de
Dec. IV. Liv. V. CAP.VIII. E IX. 38 j
de entregar tudo , ao menos a galé , e os
Porruguezes , porque receara que nao o fa-
zendo , íe foíTe ajuntar com ElRcy de Aru ,
e o deftruiíTem j e aíTi fe perdco eila occa^
íiao , e os Portuguezcs morreram em cruel
cativciror
CAPITULO IX.
De como ElRey do Achem tomou por enga^
no hum galeão , de que era Capitão Ma-
noel Pacheco : e de como foram defcuber^
tos huns tratos que Sinaya de Raya Che-
ly de Malaca trazia com o do Achem y
€ de como foi morto,
^T Eíle tempo chegou Garcia de Sá áqueí-
^ la fortaleza , e tomou poíTe delia , do
que logo foi avifado o Achem , e houve
que com o Capitão novo faria melhor feu
jiegocio. E porque de ambos es recado
que tinha mandado a Malaca não tinha re-
fpoíla alguma , nem fabia o que fe lá trata-
va , mandou hum homem feu áquella Ci-
dade em muito fegredo a faber do Bando-
rá Sinaya de Raya (com que tinha intelli-
gencias fecretas) o que fe lá praticava fo-
bre as oíFertas que mandara fazer , e que
gente haveria na fortaleza , porque defeja-
va de a tomar. Eíie homem fe vio com
Bandorá , que lhe dco conta de tudo o que
Couto. Tom, L P. L Bb Pe^
380 ÁSIA DE Diogo de Couto
Pêro de Faria paíTára com António Caldei-
ra , c como leguro cm fua amizade man-
dava fazer pazes , e bufcar os Portuguezes ,
c CjUe fempre ícgundára , fe nao chegara
Garcia de Sá. Com clle recado defpcdio o
Achem logo hum Embaixador a pedir pa-
zes 5 e chegado áquella fortaleza defenibar-
cou em íima de hum elefante com grande
acompanhamento que trazia , e foi corren-
do a Cidade de fora com hum p'ato de
ouro nas mãos, em que levava acarta, que
p Achem efcrevia ao Capitão , e diante del-
Ic hia hum homem , como Rey darmas , que
ao fom de alguns inílrumentos hia gritando 5
e publicando alto , que ElRey do Achem
mandava comm.etter pazes , e amizades aos
Portuguezes: (eíla ordem guardava em to-
das as que commertia,) e aíli foi levado ao
Capitão , que o recebco com apparato. El-
le lhe deo fqa embaixada , cuja conclusão
foi defculpar-fe do que fora feito a Sim.ao
de Soufa na fua barra pelos feus fem o el-
le faber , e que eílava preíles pêra emendar
aquelle aggravo , aíli em caíligar os culpa-
dos 5 como em reOituir a galé, Portugue-
ses , e artilheria , e que lhe pedia corref-
fem em amizade , e commercio j e que fe-
guram.ente podiam os Portuguezes ir , e vir
a feu porto , comprar , e vender , fem re-
ceberem aggravo algum. Garcia de Sá ou-
vio
Década IV. Liv. V. Ca?. IX. 387
vio tudo muito bem , nao lhe parecendo
que pudcíTe haver tamanho fmghnento , e
maldade em homem que tinha titulo de
Rey , cuja obrigação era guardar verdade,
c juíliça. E accejrando-lhe as oírertas , nego-
ciou hum ca fado , que mandou em compa-
nhia do Embaixador com procurações , e
apontamentos pêra concluir as pazes com
o Achem. Chegados áquclía Cidade , foi o
iiofio recebido d^EIRey com muitas hon-
ras , dando-ihe pecas a elle . e a todos os
que com elle hiam. E praticando nas pa-
zes lhe concedeo tudo o que levava por
apontamentos , como quem íe nao queria
deíconcertar no preço , pêra ver le podia
cíieituar feus concertos. AíTentadas as pa-
zes 5 mandou-as pregoar por toda a Cidade
com grandes íolemnidades. Feito tudo iílo,
defpedio o ncíTo Embaixador com mofuas
de amor , e amizade. E embarcado na bar-
ra de noite , foi falteado , c morto dh , e
todos, e o balão fumido por mandado d^El-
Rey em tanto fegredo , que nunca fe fou-
be 5 e Garcia de Sá prefuniio que fe perde-
riam no mar. O Achem foi io.í^o a valado
de tudo porSinaya dePvaya, que lhe man-
dou dizer que nada fjfpeitaa^am , antes o
Capitão edava muito faiisfcito das honras,
que elle lizera ao feu Embaixador, com o
que o Achem defpedio logo outro Embai-
Bb ii ■ xa-
388 ÁSIA DE Diogo de Couto
•xador a Garcia de Sá com o peza-me do
dcfaparccimento do Teu , que lhe pedia inari'-
daíTe conrirmar as pazes por algum ho-
mem honrado , já que o outro íe perdera
com os papeis , e capitulos delias. Garcia
■de Sá enganado com eílas moítras , mandou
fazer prelks hum galeão , e Manoel Pache-
co pêra ir nelle, avifando-o alguns da mal-
dade daquelie Mouro , que elle nunca cui-
dou que houveiTe tanta em nenhum peito
'humano 5 como houve neíle. Negociado Ma-
noel Pacheco , embarcáram-fe com elie mais
de oitenta Portuguezes mercadores com mui^
•tas fazendas peio proveito que efperavam
daquelie novo commercio. Sinaya de Raya
avilbu logo ao Achem , aconíelhando-lhc ,
que tomaíle o galeão , porque depois feria
facli ir tomar aquella fortaleza , pela pou-
ca gente com que ficava , porque a mor
parte delia hia nelle. Manoel Pacheco foi
tomar a barra do Achem , c andando aos
bordos lhe fahíram muitas lancharas , pou-
cas 5 c poucas , que o foram demandar , co-
3Tio que hiam de paz ; e afu carregaram
tantas que pareceo mal a alguns , que dif-
feram a Manoel Pacheco , que bom feria
precatarem.-fe , e armarem-fe , que aquillo
era alguma manha do Achem. Já no galeão
havia alguns Achens , e derredor delle mui-
tas lancharas , que vendo a confiança dos
^ Por-
Década IV. Liv. V. Cap. IX. 389
Portuguezes arremefráram-fe dentro , e re-
mettêram com elles , e primeiro que tornai^
fem armas foi morto Manoel Paclieco , e
os mais delles , e todos os outros foram to-
mados ás mãos , fem efcí^par hum fó. O
galeão foi levado dentro I e entregues os
Portuguezes a ElRey , que logo os fez ma-
tar a todos 5 e aos que lá tinha , e com if-
to mandou dizer a Garcia de Sá , que lhe
agradecia muito o galeão que lhe manda-
ra , que lhe nao faltava mais que hum bar-
gantim que lá tinha , que lhe rogava lho
mandaíTe , fenao que cedo o iria tomar.
Garcia de Sá vendo tamanho engano ^ e
maldade ficou pafmado, e parecia que que-
ria arrebentar de pezar , do que lhe tinha
acontecido. Sinaya de Raya mandou di-
zer ao Achem que mandaíle huma Arma-
da 5 que dÍQ cumpriria a palavra que lhe
tinha dado de lhe entregar aquella forta-
leza , o que o Achem fez , mandando fe-
tenta lancharas com três mil homens ^ que
foram dar viíla a Malaca. Garcia de Sá
com eíTa pouca gente que tinha fe fechou
na fortaleza , tendo grande guarda , e vigia
nella. Os Achens andaram por aquella cof-
ta aguardando recado de Sinaya de Raya ;
c permittio Deos pêra evitar tamanho mal ,
que fahiffem hum dia em terra, e fe puzef-
fem ao longo de hum tanque , que cha-
mam
390 ÁSIA DE Diogo de Couto
niam d'ElRe7 , a comerem , e beberem os
Achens com os Mabyos de Sinaya de Raya ;
e foi o banquete de feição que ficaram os
Achens bêbados , e contaram aos Zvíalayos
todos os tratos , que íeu amo trazia com
o feu Rey , e de como tiniia ordenado hum
Domingo (eibndo o Capitão com todos os
homens na Igreja) ter levado ham camelo,
que eílava defronte da porta principal , e
borneallo pêra dentro , c dar-lhe fogo , com
que niataíTe todos , e abrir-lhes as portas
da fortaleza j e afli lhe contaram da morte
do Embaixador , e de Manoel Pacheco. Re-
colhidos daqui , infpirou Deos no coração
de hum Malayo daquelles , que fc foíle lo-
go á fortaleza , e contou ao Capitão tudo
o que ouvira , de que Garcia de Sá ficou
fobrefaltado, e efcondendo o Malayo man-
dou chamar Sinaya de Raya , que logo foi
com hum enteado feu chamado Tuao Ma-
famede, e recebendo-cs bem , recolheo-fe
com Sinaya pêra iima , onde tinha homens
que o tomaram , e deram coni eile de hu-
nia janella em baixo , onde fc fcz em pe-
daços , porque cahio de altura de fmco h-
brados. E vindo pêra baixo dilTe a Tuao
Mafimede o que fizera , e o porque y ao
que lhe elle refpondco , que fe tal era que
fizera muito bem. Garcia de Sá o fegurou,
e lhe ditíe , que ferviíTe ElRey de Portu-
Década IV. Liv. V. Cap. IX. 391
gã\ j que elle llie faria muitas honras , e
mercês , e que fe recolheíTe , e quietaíTe ,
niandando-o acompanhar até fua caía, e fez
mercê ao Malayo que lhe defcubrio a traição ,
que teve em fegredo , fem fe faber que veio
delle. Logo correo a nova da morte deSi-
naya , pelo que os Achens fe recolheram ,
e o feu Rey ficou mui magoado do fuc-
ceflb. Tuão Mafamede aíTombrado do que
vira, logo defappareceo com mulher, e fi-
lhos , e fe paíTou a Viantana , onde eftava
o Rey que Pêro Mafcarenhas desbaratou
em Bintao.
Fim do Livro V. da Década IV.
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